Irma Galhardo - Ensaio Poético



RIOS E GÊNEROS LITERÁRIOS 


Conheço muitos rios: Rio das Éguas, Rio São Francisco, Rio Formoso, até o Rio Tâmisa! O Rio Tocantins, porém, é especial!

Nasci às margens do Rio das Éguas, um rio corrente, de águas puras e cristalinas, o mais lindo que já vi. Para mim, é como se fosse poesia. Poesia em seu mais amplo sentido! Tive minha infância e adolescência banhada por suas águas e chorei sua ausência quando fui estudar em Goiânia, onde rios com nome de meia e leite* não calçaram nem nutriram minha saudade. O Rio das Éguas continua em meu coração como o poema mais lindo já escrito.

O Rio São Francisco foi meu segundo rio. Eu, com apenas quatro anos o atravessei pela primeira vez em um pequeno barco a remo. Uma coisa gigante que parecia que não acabava mais! Depois continuei atravessando, pois ficamos morando por um tempo em Bom Jesus da Lapa, na mesma época que o Capitão Lamarca desertou e passou por lá. Eu sempre assustadíssima, pelo rio, pela história mal contada sobre o Lamarca e pelos peixes que sabia que haviam ali: surubins gigantes que comíamos na semana santa, ao leite de coco, postas enormes que denunciavam o tamanho. O São Francisco, para mim é como uma novela. Sua existência em minha vida não foi longa, porém intensa. Cheia de episódios marcantes, como a chegada do meu irmão, minhas primeiras memórias de cinema e minha consciência de muita coisa no mundo.

O Rio Tâmisa eu o cruzei por cinco meses. Há tanta história em seu leito, que deixo a extensa produção cinematográfica falar por mim sobre o assunto. Direi apenas que também morri de amores por ele. Trouxe comigo pedrinhas do seu leito, bem lisas e redondas, lapidadas por milênios! Em termos de comparações literárias, para mim se assemelha a um conto. Claro que um conto muito envolvente, de um medalhão tipo Machado de Assis. Ou, para ser mais europeu, tipo um Tchecov ou Maupassant.

Tem um outro Rio bem cantado,aquele que Gilberto Gil insiste que continua lindo. Tom Jobim disse que foi feito para ele e Vinícius popularizou seu bairro na canção mais ouvida no mundo! Dele não vou falar, porque só irei conhecê-lo em Janeiro. Nem sei se existe rio por lá, sei do mar e de suas famosas praias. Rio, rio demais! Para mim, não passa de um ensaio. Longo, pois são tantos anos que ensaio conhecê-lo, que até perdi as contas.

Muitos outros rios passaram por minha existência. Envolvi-me com todos sentimentalmente, pois tenho muito de elemento água em mim. Foram assunto do meu dia, porém, breve, duraram apenas o tempo de uma crônica.

Mas, o Rio Tocantins... Ah, esse é denso, longo, interminável como um romance! Apaixonante como aqueles romances que não queremos que acabem nunca, como uma Montanha Mágica do Thomas Man. Ou para ser mais nacional, um “O tempo e o Vento” do Érico Veríssimo ou “A República dos Sonhos” de Nélida Piñon.

O Rio Tocantins toca fundo, ao mesmo tempo é mistério e poesia. É história, fonte de alimentos e elementos folclóricos, possibilidade de locomoção que ajuda no desenvolvimento da região. É vida! A vida do tocantinense está intimamente ligada ao rio, não é à toa que ele empresta o nome ao estado. Quem banha em suas águas fica eternamente refém dos seus encantos. Em cada cidade ele assume um charme diferente! Quem conhece Miracema sabe bem do que estou falando. Lá a praia, ou o local de lazer assim chamado, é submerso. Com mesas, cadeiras e pessoas com água até a cintura. Os bares e palcos são flutuantes ou palafitas e o salão de dança fica na água. Com a alegria inundando tudo!

Do outro lado do rio está Tocantínia. É impressionante como o mesmo rio assume características diferentes na outra margem. Os moradores também. Tocantínia e Miracema, separadas apenas pelo rio, tem habitantes com realidades tão diferentes como suas margens. Só quem morou em Tocantínia sabe dos seus predicados, escondidos na simplicidade e aconchego do seu minúsculo mundo. Cidade de muitos índios, para mim é o lar da Buiúna, personagem lendária de um livro meu. Foi lá que ouvi sobre a Buiúna, a primeira vez. Ali crianças me contaram da cobra gigante e de como as águas saiam do leito para dar lugar ao monstro, tão caudaloso como o próprio rio. Morei em Tocantínia, concebi aí minha primeira filha e tive que cruzar águas para trazê-la ao mundo em Miracema. Foram tantos acontecimentos importantes testemunhados por esse rio, tantos sentimentos como só em romance! Um longo romance que fica para sempre, como o rio Tocantins, que deságua em nossas vidas transformando tudo em uma linda história de amor, um verdadeiro romance!

Francisco Perna Filho - Conto



Do lado de cá 




                                                                                                           
Era sexta feira, me lembro bem, eu acabara de deixar a Faculdade de Direito do Largo São Francisco, quando ouvi pelo rádio do carro a notícia fatídica, estava atônita, descontrolada, enfiei as mãos no apito, joguei o carro para o acostamento, não sabia mais o que fazer. Só pensava no pior. “São inúmeros os cadáveres, não se sabe ao certo, quantos são. Uma verdadeira chacina”, dizia o locutor da Rádio Bandeirantes. 
                                                                                                                                                                     
São pavorosos os olhos da morte, mas pavor mesmo é quando ela vai em direção à vítima, sem lhe dar tempo, como o projétil que ganha velocidade e consistência impulsionado pelo ódio de quem desfere o tiro.

Não importa como, apenas mata-se ou morre-se. Ou você está do lado de cá ou você está do outro lado. Matar ou morrer pode ser conjugado a qualquer tempo, em qualquer lugar. Pode ser agora, como ele aí no chão, estrebuchando. Pode ser depois, no futuro, como foi comigo, quando jurei matá-lo.
 
Quando abri os olhos, o ambiente era outro, calmo, as pessoas usavam branco. Levantei um pouco a cabeça e pude ver a minha mãe que se aproximava, a percebi um tanto abatida, quis chorar, mas não o fiz, até porque não me lembrava de quase nada. Naquele momento dei-me conta de que estava num hospital, de que havia batido o carro. Apenas flashes, apenas confusão mental. “Ele morreu, o Marquinhos morreu, o seu primo estava entre os mortos do Carandiru”, disse a minha mãe. “Foi brutalmente assassinado, como qualquer um ali.” Não lhe deram chance alguma. Coitado, tinha apenas vinte e dois anos. Não acreditei, o que era flash foi tomando consistência, lembrei-me da notícia ouvida no rádio do carro. Quis levantar-me, mas fui contida pela enfermeira.
 
Nada arrefece o ódio, principalmente quando ele é de morte, pois contraria os ditames do perdão. O que vale mesmo é a intenção, a vontade de consumar o ato. A certeza de que não vamos falhar. Dependendo da vítima, o projétil pode ser de chumbo, prata ou ouro, mas para ele foi de chumbo mesmo, com a sua própria arma, um único e exclusivo tiro, à queima-roupa: pá! Assim mesmo, seco, como a batida de uma acha de lenha. O que importava naquele momento era o ódio, era o alvo.
 
Ainda era cedo, acabáramos de transar, porque amor mesmo eu não fazia, eu não trazia este sentimento comigo, até porque, mesmo que quisesse, não poderia, eu não estava ali para amar, apesar dos momentos agradáveis que vivemos e dos presentes que ele me dava. Eu já havia me vestido, ele insistira em deitar-se no sofá, falei para ele do recado na secretária eletrônica, da declaração de amor que ficara gravada. Perguntei quem era aquela mulher. Ele, ríspido, gritou comigo, falou que eu era paranóica, ciumenta, que daquele jeito não dava mais para continuar. Pedi explicação, ele esquivou-se, falei que não aceitaria aquela vagabunda entre a gente, ele retrucou. Levantou-se bruscamente, veio em minha direção, era o que eu precisava, dei um passo para trás, peguei a arma que ele guardava na estante lateral (ele tinha uma em cada lugar estratégico da casa, disso eu sabia, motivos das minhas hesitações), engatilhei-a, ele tentou me conter, pediu “por favor”, disse que me amava. Mas não adiantava mais, era tudo o que eu precisava. Naquele momento só me lembrei do coronel autorizando a invasão ao presídio, talvez imaginasse que estivesse fazendo uma limpeza justa. “Eram todos bandidos, mesmo”, só não pensou nas conseqüências, pensou que aqueles “ali” não tivessem família, que ninguém choraria por eles. Mais grave, entre os mortos, muita gente era primária, estava ali por interpretações mal feitas de algum juiz. 

Aos olhos da sociedade, o que eu fiz foi bárbaro, não tão bárbaro como o meu estratagema para atraí-lo, para seduzi-lo e matá-lo. Lembro-me bem, foi nos jardins, na casa de um ex-professor da faculdade, que era muito amigo do coronel. A partir dali, ensaiei cada lance, cada jogada. Muitas vezes vacilei, senti vergonha de mim, mas resisti. 


Se eu me arrependo? Claro que não, só sinto por não estar atenta às câmeras de segurança. Vacilei, mas quem não vacila? 

Imagem retirada da Internet: alvo

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