João Henrique da Costa Novaes

João Novaes - Acervo do autor

Eros e Thanatos: a sublimação do Poeta




A Revista Banzeiro, ao longo de sua trajetória, tem se dedicado ao que há de melhor no campo das Artes e da Literatura. Nesta edição, não se desvencilha desse propósito e brinda os seus leitores com a poesia de João Henrique da Costa Novaes (João Novaes), que, em 2017, lançou o livro Sublimações: a imortal tragédia do amor mortalpela Lei de Incentivo à Cultura, da Prefeitura de Goiânia, cujos poemas, sonetos, vêm ilustrados  com primorosas fotografias do autor. O livro é dedicado ao pai, jornalista Washington Novaes.

Ao optar pelo soneto, João Novaes, além da luta com as palavras, empreende com maestria e esmero uma verdadeira tessitura: métrica, ritmo e rima, distribuindo, nos catorze versos a que dispõe (dois quartetos e dois tercetos),  inventividade e beleza, quando empreende viagem aos meandros do amor, sob invocação do deus Dionísio (Baco), ao contrário da invocação épica, cujo apelo o poeta faz à musa, como proteção ao canto. Em João Novaes, a invocação é outra, o poeta busca a orgia, o prazer, a magia, o vinho,

Dionísio, ó deus louco, meu deus trágico,
Vem a mim com seu tírso belo e mágico,
Ungir de mania e orgia todo meu ser,
Traga as bacantes, o prazer

a força de Eros em oposição a Thanatos , como exercício de prazer, gozo, e morte, daquilo que nos fala Georges Bataille: "O ápice do prazer é a morte". O texto Poético como objeto de prazer, que se realiza desde a idealização até a materialização, e se completa no momento da leitura, do embate, do debate: o ápice do prazer: poeta e leitor. Escrever também é uma forma de sublimação, de mostrar-se vivo, de legado existencial, como no último poema do seu livro:

SUBLIMAÇÃO

Estranhamente, se assim vai terminando este alfarrábio
Mas sublimação final só mesmo com a morte,
A reencarnação, outros poemas, uma nova sorte
De palavra enviadas por aquele sábio astrolábio!

Se existe um remédio, este milagre chama-se tempo
Entre músicas diversas, absolutamente aleatórias, dispersas
Buscando luz nos interstícios, seguem as vidas desconexas
De todos nós, do cosmos, de um mundo sem templo!

Difícil atingir este estado de espírito, a felicidade,
Construída no silêncio, no vazio, na perene santidade
Repleta de significante e significados da Asseidade!

Este livro é para aquele menino tímido e sombrio
Que só pensava no fim, pobre, cego e frio
Mas a quem a vida ensinou um novo brio!

João Henrique da Costa  Novaes é natural do Rio de Janeiro, mas ainda bem jovem veio para Goiânia, onde formou-se em Filosofia, pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás, e pós-graduou-se em cinema. Apaixonado pelas artes, com verdadeira devoção à Literatura, escreve desde os 14 anos, quando começou a ler Cruz e Sousa, Alvares de Azevedo, Rimbaud e outros grandes poetas. Segundo ele, sua fixação por sonetos vem daí. João Novaes também é diretor e produtor executivo de cinema, televisão e sites. 

Tenham todo(a)s uma excelente leitura!
 Francisco Perna Filho*




by João Novaes 






DIONÍSIO



Dionísio, ó deus louco, meu deus trágico
Vem a mim com seu tírso belo e mágico,
Ungir de mania e orgia todo meu ser,
Traga as bacantes, o prazer

Iremos juntos às vinhas festejar
A vida, folia, sangrento manjar,
Entre os deuses só tu és morte e vida,
Loucura e a alegria perseguida

Sátiros, selenos nos guiarão
Ao paraíso terreno e astral
Num orgasmo sem fim, descomunal

Iremos às ninfas em sofreguidão
Longe dos Titãs gozar do teu vinho,
Ébrios, doidos e depois sozinho!


SONETO DO AMOR MORTO


Som amordaçado, frio e afiado,
Primavera apodrecida no azul,
Desnorteia, deixando sem oeste ou sul
O estúpido poeta encouraçado

Clave de sol límpida, encaixotada,
Pomba-gira sanguinária escarlate,
Não mate este amor sem limite,
Partitura de Bach na chuva, borrada.

Lilith em Lesbos, torpe, degredada
Mata o amor na luxúria degradada
Insano modelo da decadência

Medeia, marafona da indecência
Narcisa não reconhece o respeito,
Não pense que é rancor ou despeito!



ORFELINS EREMITAS

A vida parece uma grande espera,
Banquete profano roubado de Osíris,
Que Afrodite cuida, lambe, esmera,
Dádiva e samsara, bulbo de Amarílis;

Ferida, sangue, muitas cicatrizes.
A vida é medo profundo da solidão,
Cor universal de todos os matizes,
Estrela cadente da grande paixão!

Se me perguntas onde nascem os ventos,
São flores de cactos de corações sem lamentos,
Vêm de pulsares galácticos, intactos

Rompem sempre a barreira temporal
Cavalos selvagens do ar magistral
Orfelins eremitas do amor carnal .




by João Novaes




BODHI

Ainda não atingi a sabedoria sagrada
Superconsciência alada dos Ríshis, nos sutras,
Todo dia nos cinemas, vagando às escuras
Continuo corpo inerte, mente castrada;

Li o Mahabharata, os Upanishads, a Bíblia e o Alcorão
E sei que não se produz santos às fornadas
Até não haver mais almas deformadas
Por sua estranha filha, Maya, Karma da ilusão...

No Dharma, Buda Maitreya, conceda-me o samádhi
Cristal do templo, mente diamante de Bodhi
Finalmente o caminho por sua óctupla senda:

Rache minha cabeça com uma enorme fenda
Cravada no lótus de mil pétalas de luz,
Cegue os olhos e amplie a visão que reluz!



O PASSADO II



Eros afoga-se na tinta escura do papel
Transforma a luz num borrão impresso
E comete um só erro, réu confesso
Da alma disparada num tropel,

Mas o passado não é somente sombra,
Antes e sempre será luz divina
Não traduzível em palavra viperina,
Manchas de tinta, sentimento que assombra,

Escurece o céu e os olhos encobre,
Deus do amor em busca de sua Psiché,
Feriu a si mesmo com a flecha de cobre

E agora não tem ou deseja mais cura,
Somente a transformação do real em arché
Mármore eternamente trincado pela fissura!


    
 ABOIO


Por onde andará você na madrugada
Agora que me tornou uma besta humana
Só saciável de carne, podridão mundana
E a luz barata dos desejos, alugada

Onde estará finalmente a última revoada
De garças brancas voltando pro entardecer
O casulo de uma nova alma, envelhecer;
Leveza do tempo que jamais será aboiada,

Onde estará você , ó bruma açoitada ?
Pros confins de outra vida, recriada
Para o eterno retorno do que sentimos

Como o gado em busca d´água sombreada
Fresca, pura, nova, límpida, adocicada
E assim, sem rumo nem destino, partimos ...



kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk
by João Noves




ASSOMBROS SONOROS



Os assombros sonoros consonantais dos sonetos
São aliterações do espírito em matéria,
Logos transformado em verbo rasga a artéria
E nunca termina com simples tercetos!

Verso tísico transmutado em velhos abetos
Olhar físico e quântico eternamente cantado
Em rima e prosa, Van Gogh sublime pintado!
Eu vos amo, meus pequenos e solitários sonetos

Mesmo assim, sem métrica ou metáfora alada
O que vale sempre é a poesia trovejada
Raios e lampejos em transe da consciência,

Êxtase da palavra perdida no vento, onisciência,
Vozes ventríloquas vividamente vociferadas,
Ao pé do ouvido, por seres de luz sopradas!



SONETO SARRACENO


Na roleta russa desse louco amor
Não sei o que é antidoto ou veneno
Que possa destilar a minha dor
Sem ar ou sublimação, peito sarraceno.

Só não quero ser mais uma flor do mal
Mas sim aquele que conduz o fogo, Prometeu,
Pois vejo em todos os cantos o sinal,
Era de Aquárius, luz que ainda não ardeu!

Saudades de ti neste tempo iluminista,
Aconchegada, serena em meu peito,
Mas também lembro do horror, vida fetichista,

Então fica este soneto, sem pré-conceito
Do beduíno das palavras, um anarquista,
Seu amante delirante, um suspeito!



RIMA


Quando as retinas derretem-se em poesia
 A ficção do cinema vira a rotina do dia a dia
Fulgura na mente a luz passada da alegria
Queimando as sinapses daquela outra maresia

Momentos que tostam a estúpida solidão
Ao entender no crepúsculo do divino perdão,
A insignificância de toda e qualquer paixão
Perdida na seca, no ar árido desse sertão!

Vá pensamento doido, cavalo sem bridão
Beber da água doce do pequeno ribeirão
Escondido entre os buritis e capins dourados

Reavivando momentos sutis e refinados,
Longe da estagnação e do horror passados,
Rima cabocla, obscura, riscada no coração!




by João Novaes




SONETO ÁSPERO

Estes dias eternos, de angústia e espera
Em que a morte passa a cada caminhão
Cruzando a estrada, a palmos da carcaça áspera
Neste pedaço sujo, imundo, de estrada de chão.

Concerto de harmonia estranha, dissonante
O vazio da solidão cala fundo na alma:
Só sei que não quero mais um amor exasperante
Que me tire o sono, os sonhos, a calma .

Se a realidade não é mais sensível ao toque
E os dias perderam o brio, a mágica sutileza,
Mas você ainda não encontrou sua outra natureza

Reveja os hábitos, dê na vida um retoque,
Pra que ela também te empurre pra frente
Pro futuro, ali no sol vermelho ardente!



SERENDIPITY

Ela chegou assim, de repente, sem nada dizer
Mansa calmaria do amanhecer, felicidade serena
Evapora toda e qualquer lascívia obscena,
Sem nenhum gesto é o gosto do prazer

Sua pura presença, encarnação sutil da paz
Encontrada ao acaso, coincidência, serendipidade
Rebuscada alegria amena, divina santidade,
Mais nada questiona, no orvalho Tudo traz:

O sorriso e a calma, de volta a tua alma,
O perfume amarelo e delicado do Ipê,
Tela a óleo de Turner, difusa, em degradê

Colore as avenidas com flores e conclama
O curvo escriba, antes cinza, empoeirado
A rever a magia da luz de um céu estrelado!



PÁSSARO SEM ASAS

O nome veio num instante fecundo
Num dia de chuva, cinza, nauseabundo
Pássaro que voa sem asas, louco, incerto
Segue a corrente do ar o soneto liberto!

O nome veio assim, num dia profundo,
Kerouac na estrada, iluminado vagabundo:
O tesão pela palavra, em mim mesmo um incesto
Sem pecado ou culpa, não mais um manifesto!

Pássaro estranho, de plumagem cor de chumbo
Em cujas artérias corre a tinta que não pinta
Nem colore, mas escorre a cada bicada no peito

Que ele mesmo se dá, arrancando lá do fundo
Novas linhas que são veias!- não, não sinta,
É seu fado, ser pássaro sem asas, é seu jeito!



by João Novaes



VOLTA


O meu corpo sem o teu se esqueceu
De todas as sutilezas do amor carnal
Que nunca nada de bom prometeu,
Foi brilho do dia inesquecível, sensual!

Hoje vivo nos escombros escuros sentidos
Sussurrando em teus ouvidos só em sonhos
Estranhos pesadelos tortos, tão medonhos
Que todos os sentimentos foram perdidos!

Não sou capaz de pedir para que volte
Pois já não há vida por onde passou
Rastro de gente é o pouco que restou!

Não quero pensar que foi tudo um grande erro
Perda, despreparo, estúpido desespero,
Volte, por favor amor, um dia volte!




SONETO DO AMOR MADURO

                                                                    Para Sandra


O amor quando maduro não mais apodrece
Deixa de ser fruta estranha, árvore em que  se pendura
Um corpo negro degolado, violência sem mesura!
É outra coisa, leve, algo de inefável textura.

O amor quando matura, não mais arrefece
Ao sabor do vento ou qualquer estranha conjectura,
É conjurado na brisa, na eletricidade do trovão,
Ateando um fogo brando na escuridão do carvão,

Sentimento que perverte a rima com a suavidade,
Liberta paranoias e ridiculariza pequenas neuroses,
Limpa os neurônios e cura estranhas escleroses!

O amor maduro implode de vez o ego e a maldade
Traz consigo o arejamento e o brilho do novo,
Apaga o spleen, repinta o blues, afasta o corvo!




* Francisco Perna Filho é Doutor em Letras e Linguística: Estudos Literário (UFG), Poeta e Contista.










Francisco Perna Filho




Óleo sobre tela - [recorte] by Francisco Perna Filho



 Nelson da Luz, a céu aberto


Em outubro de 2011, Nelson Renato da Luz, um cidadão brasileiro, miserável, morador de rua, foi preso ao tentar furtar placas de zinco da estação República do metrô de São Paulo. Dois dias depois, a juíza da 14ª Vara Criminal da Capital converteu o flagrante em prisão preventiva e, posteriormente, por intercessão de alguns advogados, defensores dos oprimidos, descobriu-se que o “meliante” era inimputável, por sofrer de transtornos mentais, o que fez com que o relator da 1ª Câmara de Direito Criminal cogitasse interná-lo num hospital de custódia e tratamento, mas concluiu que tal medida só se aplicaria nos casos de crimes violentos ou praticados com grave ameaça, o que não era o caso de Nelson, daí a decisão de converter a prisão preventiva em prisão domiciliar.
Até aí, tudo bem, o hilário nessa história toda é que o mendigo é morador de rua, sem teto, sem residência fixa, sem “domicilio”, vivendo a céu aberto, quando não, sob as marquises dos prédios da grande cidade de São Paulo, não podendo, portanto, cumprir prisão domiciliar aos moldes da Justiça Brasileira, já que prisão domiciliar pressupõe permanecer em casa, sem direito de sair à rua, o que, no caso dele,  contraria a determinação do juiz, e o coloca na condição de descumpridor de uma ordem judicial,  podendo ser preso a qualquer momento, mesmo já estando preso.
Pensando de outra maneira, já que sua prisão é domiciliar e ele é um sem-teto e vive nas ruas,  pela lógica, o seu domicílio são as ruas, sendo assim, não poderá, em hipótese alguma, ser considerado um infrator da lei, uma vez que das ruas não se ausenta, nelas permanece, mesmo sem ter consciência do que seja prisão domiciliar; mas é certo que saiba muito de privações, de frio, de fome, de abandono, e, mais do que isso, de ausências.
Não sabemos o que se passa na cabeça do ser que furta placas; não sabemos com que pretensão ele as furtou. Talvez, quem sabe, tenha fixação pelos signos, pelos símbolos, pela linguagem. Ou mais simples, queira apenas proteger-se das intempéries: do frio, da chuva, dos ditos “humanos”, empedernidos pela própria estupidez. Ou, talvez, sonhasse mesmo com um cantinho, um abrigo para si, onde pudesse cumprir a sua prisão mental, o que, por ironia o levara à prisão e ao constrangimento de cumprir uma pena a céu aberto, passagem que me faz lembrar um dos maiores poetas da língua Portuguesa, o goiano José Décio Filho, que insistia em vender um terreno, de sua propriedade, em Goiânia (se não me falha a memória), ao também escritor e imortal da ABL, Bernardo Elis, que, não resistindo aos inúmeros apelos do amigo, fora conhecer tal terreno, estacando admirado ante a  pequenez da gleba, o que o fez interrogar José Décio:
 -  É este o terreno, Zé?  No que José Décio respondeu:  - Já viu o tamanho do céu?
Assim como em José Décio Filho, talvez, para Nelson, o céu seja o limite, onde poderá refestelar-se com algumas boas lembranças, sem os privilégios dos “ladrões sofisticados”, que usam terno e gravata e não têm bons sentimentos.


PEDRO TIERRA

Casaldáliga e Milton Nascimento estão entre parceiros artísticos de Pedro Tierra (Foto: Divulgação)
Casaldáliga, Pedro Tierra e Milton Nascimento

Revista Banzeiro, com muito orgulho, traz uma das maiores vozes da Poesia Brasileira, Pedro Tierra, que nos brinda com o poema inédito Invisível para deleite e reflexão.

Pedro Tierra é pseudônimo de Hamilton Pereira da Silva (Porto Nacional, 1948), poeta, político e ex-guerrilheiro. Foi duas vezes agraciado com o Título de Doutor Honoris Causa: Universidade Católica de Brasília (2013); Universidade Federal do Tocantins (2014). Também, por duas vezes, foi secretário de Cultura do Distrito Federal. O autor tocantinense escreveu: Poemas do Povo da Noite (1977); Missa da Terra sem-males - com Pedro Casaldáliga e Martins Coplas (1979); Missa dos Quilombos - com Pedro Casaldáliga e Milton Nascimen.to (1981); Água de Rebelião (1981); Inventar o Fogo (1986); e  A Palavra Contra o Muro (2013). Escreveu, ainda, dois livros infantins: Passarinhar (1992), e Bernardo Sayão e o Caminho das Onças (1997); em (2019), estreou na ficção com o livro  Pesadelo — Narrativas dos anos de Chumbo.    
                                                                                                                           Francisco Perna Filho*




O Invisível




*I.*

Invisível, o Inimigo
nos cerca, nos invade,
asfixia.

Invisível, o Inimigo
nos separa,
nos confunde.

Está em toda parte.
Na oficina de trabalho,
nas ruas, nos becos, nos cais.

Sob o viaduto
que me abriga do frio,
o Inimigo se esconde.

Dentro do túnel da 9 de julho,
no Santa Ifigênia,
na Ladeira da Memória,

no degrau da soleira
onde deito meus ossos...
na noite da metrópole.


*II.*

Invisível, o Inimigo está
em Wuhan, na Lombardia,
em Nova Yorque,

nos objetos que amamos,
nos corpos e nas almas. Nas mãos?
Sim, nas mãos que modelaram esse mundo que morre.

O Inimigo tomou de assalto nossas mãos.
E busca fechá-las contra nossa garganta.
Lançados entre a epidemia e a fome,

por alguns tostões percorremos as veias
de cidades vazias acossados
pelo chicote incessante dos smartphones.

Os que querem nos manter no trabalho,
expostos ao Invisível, ocupam as ruas em carros blindados
e gritam por converter em pedra nossos pulmões,

nós os conhecemos desde que o primeiro negro enfermo
foi lançado pelo convés de um Tumbeiro aos dentes dos tubarões
para que os braços de seus irmãos chegassem ao porto e aos canaviais. 



*III.*

Invisível, o Inimigo está
em Madrid, em Frankfurt, em Santiago,
em nossas mãos.

E o que antes era o abraço,
nesses dias será apenas
um aceno.

Chega um tempo de assombro
em que o gesto de amor
se converteu em cultivar distâncias.

O tempo de aprender a amar com os olhos:
concentrar nos olhos toda a ternura
e o desejo –
nos olhos de quem amamos,

para receber de volta, como alento,
a fugitiva centelha
que nos aquece o peito e nos convoca à vida.

Aprender a amar com os olhos,
quando em silêncio miramos o rosto dos avós,
ainda que seja a última vez que os miramos,

a notar aquela ruga mais profunda
que não distinguimos ontem
no rosto do pai

e enxugar a lágrima diante do vagido
desta criança que acaba de deixar o ventre da mãe
no meio da pandemia... para recomeçar o mundo.

Permanecer em casa, os que ainda temos casa.
Casa é o lugar para onde retornamos
no fim da tarde.

Outros terão apenas a soleira da porta
para onde os expulsou
o mundo que morre.



Brasília, 28 de março de 2020.

*Poeta, Mestre e Doutor em Letras e Linguística: Estudos Literários pela UFG.

POIESIS: A METONÍMIA URBANA DE M. CAVALCANTI



M. Cavalcanti



Por Francisco Perna Filho*


Técnica mista sobre papel -  99x66
Foram trinta e uma exposições individuais, dezenas de  exposições coletivas, mundo afora: Estados Unidos,  França, Espanha, Portugal, Suíça, Argentina, Inglaterra, e, claro, aqui no  seu País. Ganhou vários prêmios, participou de salões e bienais, só para termos a dimensão do artista que é M. Cavalcanti. Mesmo com todo esse currículo, o artista não para, transita entre técnicas e materiais, experimenta, inventa, reinventa, ampliando o olhar, traduzindo uma natureza,  para muitos imperceptível,  em quadros, esculturas, instalações, criando mundos, possibilidades, pois assim se refaz.

De volta à cidade do coração, Goiânia, que o projetou para o mundo, vive uma nova fase, uma ótima fase, agora, ao lado do filho Felipe, que também é artista, pintor, com quem divide o Ateliê e o aprendizado: irmãos de alma e de cores.


Felipe Cavalcanti, também artista, filho do Pintor
No seu particular mundo de cores, M. Cavalcanti, incansavelmente, traça novas rotas, desconstrói paradigmas, reconfigura o olhar, na construção metonímica da cidade imaginada, que brilha, iluminada pelo seu desejo de urbanidade, há muito perdida, em vários lugares, mas que, na mente do artista pode ser recriada. Foi nesse ambiente poético que o artista nos recebeu, quando falou sobre sua nova fase, sua vida e planos para uma próxima exposição:


Revista Banzeiro - Fale-nos um pouco sobre esta nova fase:


Neste momento atual do meu trabalho, existe uma nítida manifestação do “eclat” urbano apesar do cinza predominantemente nas cidades. Nas minhas pinturas e/ou desenhos, a representação do “eclat” acontece representado ora pelas folhas de ouro aplicadas, ora pelo dourado da própria tinta.

Revista Banzeiro - Em que se diferenciam sua nova fase e Caligrafias urbanas?:


Essa série é na realidade uma “evolução” da anterior denominada “ Caligrafias urbanas”. Foi incorporado elementos geométricos: cubos e retângulos que passam a fazer uma marcação intencional nas composições.A busca do ouro - entenda-se- fortuna, está incrustada, internalizada na memória coletiva, mas, os cubos e retângulos urbanos são obstáculos que as vezes favorecem uns e não a outros. O uso do grafite vem sendo também incorporado no meu trabalho, adotado como mais um recurso estético.



  1. Técnica mista   0.70m x 1.00 - papel  
  2. Técnica mista - 1.20m x 1.80m - papel 
  3. Técnica mista s/papel - 1.20m x 1.80   
  4. Técnica mista s/papel - 0.35m x 0.35m 

Revista Banzeiro - As suas telas chamam a atenção pelos traços, manchas, emaranhados. Você parece privilegiar o grafismo. O que isso representa para você? 

A imprecisão das manchas aparentemente aleatórias, cumprem a função e representar as manchas reais dos muros, viadutos, becos e paredes nos lugares urbanos. Os traços feitos a “pastel”, ajudam a formar pequenos bordados e tramas e vão preenchendo alguns setores como se fossem bairros e condomínios. Depois de passar por várias fases, tantas viagens e nas minhas andanças, meu trabalho está mais universal.



Técnica mista s/papel
Técnica mista s/papel
M.Cavalcanti é um estudioso, perscrutador de desvãos, tem um vínculo muito forte com as cidades, para as quais se volta sempre, não importando o tempo, a estação, sempre atento, assesta seu olhar em busca de novas cores, texturas e formas. Passeia pelas ruas, becos, praças e  rios; mistura-se à multidão, observando os transeuntes, os dramas urbanos, matéria humana para sua invertida poética, seu desejo de reinvenção. Tal impressão é corroborada pelo critico de arte,  Marcos de Lontra Costa, que sobre ele, M. Cavalcanti, assim se manifesta:

Técnica mista s/papel, 0.40m x 0.45m

M. Cavalcanti caminha pela selva urbana com o olhar curioso e investigativo do artista. Como um cientista, ele delimita campos de ação, desenvolve teorias, pesquisa espaços e formas, seleciona elementos de análise a fim de dissecar e estruturar características específicas do objeto em questão. Como criança, ele examina cada canto, cada objeto com a curiosidade do olhar revelador, da descoberta encantada de uma verdade que se desnuda quando se tem a mente, os olhos e o coração abertos para o inusitado e o surpreendente. O artista vê na urbe uma floresta repleta de histórias. Cada muro da cidade revela uma profusão de cores, formas e matérias numa curiosa simbiose entre a ação humana e o acaso, permeadas pela implacável ação do tempo. São impressões, mapas, registros, mantos, sudários que fazem de cada superfície pintada uma espécie de palimpsesto contemporâneo.
M.Cavalcanti - no seu Ateliê
A visão do crítico amplia o olhar do espectador, do diletante, para além das telas, das esculturas e montagens. Há, por certo, um desvelamento do artista, e, com ele, uma percepção de que a arte é muito mais do que simples traços e cores misturadas, barro moldado, pedra esculpida. Ela nos dá a dimensão da grandeza humana, do ser criador, na sua constante busca de conhecimento e expressão. A arte pode nos tirar do aprisionamento de uma vida insípida e nos livrar da estupidez, tão presente no nosso tempo, principalmente no campo político, onde a desfaçatez e a insensibilidade ganham força e seduzem.  M. Cavalcanti, muito atento a tudo isso, compôs uma série Stan Lee, que são máscaras, com a qual homenageia o artista americano e as suas criações maravilhosas: seus/nossos super heróis. Mas as máscaras também têm o seu lado nefasto, escondem e revelam, elegem e condenam, despertam admiração e repulsa, comportam a contradição.

ArtRio 2019: Máscaras, M. Cavalcanti
Esta série fez parte da ArtRio 2019, sob a curadoria da Arcervo Galeria de Arte de Salvador - BA, da qual participaram renomados pintores: Aureliano dos Santos - BA, Carybé- BA, Elenildo Café- BA, José Pancetti -Campinas -SP e Mário Cravo Jr - Salvador - BA..

*Poeta, Mestre e Doutor em Letras e Linguística: Estudos Literários
Contatos:
Instagram: @MCAVALCANTTI
Tel.: +55 62 99319-6794



H. Martins



Goiano de Anápolis, H. Martins é autor de vários livros de poesia e prosa. Como Ambientalista, publicou as seguintes obras: Método para Venda de Sequestro de Carbono, MDL - Uma composição  Sustentável, Elementos para Concepção do Crédito de Carbono. Na área literária,poesia, publicou: Unha e Carne, Vaso Chinês, Todas as Cores das Flores. No campo da prosa, escreveu os romances: Lábios que Beijei, Mais que Perfeito Simples, Roseiral de Inácio e Viúvas Fogosas da Rua Direita, e agora nos brinda com o livro Alguns botões de Madrepérolas, do qual selecionamos dez poemas para você, caro leitor. 

H. Martins

                                       

   Os líricos caminhos de Martins



                                                                                            Por Francisco Perna Filho*
                                                                                                                                              Descendente de árabe, traz em si o andarilho, o mascate, as várias culturas, a  paixão  arraigada  pelas    cidades, a música entranhada na alma, a culinária, tudo isso se reflete na sua escrita, no seu humor cativante, no fingir poético, em cada passo que dá em direção a si mesmo, como nos poemas a mala do mascate e certas histórias:



a mala do mascate


é duma vez vendo tudo
traquitanas e embalagens
que desafiam não dar pra quem quer tudo levar.

é seda falsa
loção barata
poesia descalça
mala sem alça.

Fonte da imagem: Caderno do Oriente



certas histórias

quando as conto, desconto as reticências
e me abrevio.
porque somente entende a mesma coisa
quem coisa igual se revelou.

e é bom que eu veja neste instante
o quanto viajante ainda sou
desmontando a tenda, resumindo a lenda
cantando o estribilho
que volta sempre
ao mesmo lado que nem sei se estou.

é duro arder na onda infiel dos dias
tramar, fazer, interessar as cenas
ratificar, se desculpar, rever-se
nos mesmos fiascos das
razões pequenas.

tiveram todos os mesmos dilemas
sofreram o tanto, ou mais, que as pequenas razões
destas pequenas glórias.
e todos não vivem a repetir memórias
repisar as delusões e o engodo
de reprisar sempre as mesmas histórias.

Apaixonado, como o homem do mediterrâneo, H. Martins também é só ternura, e traz no seu canto a presença serena da sua musa,  traço recorrente nos seus livros, seja em prosa ou poesia, reflete a paixão do poeta , que ameaça ir embora, mas olha para trás e sempre volta: aviso

aviso


não deixe a porta aberta quando eu sair.
fosso de irremediável ilusão
é uma porta aberta.

tranque-a
e esconda todas as chaves.

porque sou daqueles
que olham pra trás
sou daqueles
que voltam.



ou, ainda, quando o poeta assesta o seu olhar para as várias formas de amor: amores de tela, sem cubículo, virtual, mas que, no final das contas, é real, quando a força de Eros se estabelece: 

contextual

de que amor falas tu?
desses - digamos, comuns amores de tela
amores de telenovela
cujas entranhas não se veem à mostra
e aos abissais sarmentos da dor não conhece nem revela?

ou do amor sem cubículo, lotado no próprio vício
das salas que só existem nesse mundo virtual
chamado de amor virtual
gravado num universo de silício
embora conceitual?

e ao amor não espreitou a demasia, o termo e o tempo gastos
da saliva na pele amada, sob o pincel da língua úmida
penteando os pelos ao ir, eriçando os pelos ao vir
sob essa língua que não tão pesada, sequer muito leve demais
que míngua a consciência ao roçar nos bicos e nos atavios
e trilha na salgada salmoura do sexo, derramando dos
lábios a saliva
nos lábios da porta do meio do labirinto sem curvas.

posso não parecer normal,
             pouco contextual
só desse amor entendendo eu
amor nada virtual.







Sua poética soa como advertência para o leitor sobre as possibilidades de decifração, ao mesmo tempo gera uma desconfiança, no que se diz  previsível, o elemento mágico, feito coelho sem cartola, gerando uma tensão que, somada à incompreensibilidade, causa certa dissonância. Daquilo que fala T.S. Eliot: A poesia pode comunicar-se, ainda antes de ser compreendida, o que é corroborado por Hugo friedrich: Esta junção de incompreensibilidade e de fascinação pode ser chamada de dissonância, pois gera uma tensão que tende mais à inquietude que à serenidade**, como pode-se ler nos poemas advertência,  limite íntimo a fantasia e a demência:



advertência

entenda-me no meu poema
longe dele sou teorema.
impressão errada do que vai por fora
        erudição previsível,
feito coelho sem cartola.



limite íntimo

ser rei de si próprio
ninguém resiste
sequer se limita o tempo e a dimensão
sequer importa a luta de poder
entre o domínio real do quase nada
e a submissão igual da mesma coisa.

ruídos, estigmas
há mais por cento
que percentagens em glória e sedição
há mais domínio vivo em quase nada
e o nada vivo em quase tudo ali.

confunde o mando magistral
com a humilde aparência súdita
serviçal.
fronteiras, nem se fala.
a ninguém importa ou exista
que demande por tomar o que não há.

não há nenhum fulgor ou interesse
sequer litigue alguém, algum vizinho
ninguém aporta nesse campo
soberano campo de reinar sozinho.

Memorial 11 de Setembro NYC



a fantasia e a demência

duas razões que se fazem
formas caludas que jazem
em picadeiro silente
desavisadas em cartazes
pro espetáculo ausente
de fantasia e demência.

uma razão é fogosa
amargo no amor é essência
doce no amor é invento.

outra razão é doente
de velha e espreitada não sente
quando o amor bate à porta
não sente tão velha e espreitada
que dor antiga não importa.


H. Martins não é desses homens que foge à luta, possui vínculos profundos, alimenta-se de uma materialidade que lhe é tão cara para composição poética: a família. Em tempo de poesia, evoca os filhos, a cor dos olhos de cada um, como a uma bênção, uma dádiva, nos olhos que se voltam para o lar, na solidão madrugadora do Poeta: 

tempo de poesia

miguel possui a benção da vida
nos profundos olhos negros
que joão enfeita de quase verdes
e pretextas riscas azuladas

é tanta poesia enfeitando o quarto nessas
madrugadas.

branca

não chore, ana
que por ser ana
          porcelana
de fino trato
dar-te-ei flores
todas do florista.

nem que para comprá-las
eu precise de avalista


by Francisco Perna Filho

Na sua imersão, H. Martins se apropria das várias possibilidades de ser ele mesmo, e, ao mesmo tempo, tantos outros. Um homem dado às humanidades, à consciência da linha tênue que percorre, equilibra-se, cai e se levanta, na dança dos hemisférios, quando o homem se completa:



hemisférios

existe uma face
que comigo vive
ostenta, mente
e bebe demais.

por trás
doutra face
apartada
(que é minha face, também hemisfério
          do homem sério que sou demais)
voltada às coisas
que a incoerência faz.

o mundo e as guerras, a fome e a sede
eu, numa face que bebe demais.

só que a noite tirou-me o sono
e é no hemisfério do abandono
que minha outra face
desfalece e reflete
este mundo que verdades esconde demais.

temi que esta face
tomasse outra face
e eu passasse a viver
         de disfarces demais.


* Mestre e Doutor em Letras-UFG.
**FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da Lírica Moderna. 2ª ed.. São Paulo, 1991.

Poemas retirados do livro Alguns botões de madrepérola. Guaratinguetá-SP: Penalux, 2019.

Francisco Perna Filho - Poema


Resultado de imagem


Aos 12 anos,
Sharbat Gula
tivera a alma roubada e impressa em papel fotográfico
[na prensa do mundo.
Tornara-se famosa, cultuada,
cultivada nas paredes de ricos escritórios e apartamentos,
enquanto quedava sobrevivente em um campo de refugiados na cidade de Peshawar, no Paquistão.
17 anos depois, já com 30 anos, desta vez no Afeganistão, fora mais uma vez fotografada por Steve McCurry, que lhe falara da fama, do mundo, mas nada lhe dera, e,
mais uma vez, nada lhe prometera, levando consigo a imagem de uma alma dilacerada.
Aos 46 anos,
largada à própria sorte,
autora de três filhos
e refugiada em si mesma,
Gula, agora, está só, como sempre estivera,
fincada nos dias intermináveis de solidão e preconceito,
à procura da identidade
que lhe fora negada.
A menina afegã não existe mais.
Os seus olhos, outrora verdes e selvagens,
São agora tristes e opacos.
Sharbat Gula
Amarga seu destino,
Aguarda sua sentença,
sem que lhe reconheçam a efêmera fama da qual fora vítima.
Resultado de imagem para Sharbat Gula
(Francisco Perna Filho)
Fonte da notícia: El País.
Imagens: Internet

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