Resistência e Linguagem: O Inventário Poético de Ítalo Francisco Campos



Nesta Edição, a Revista Banzeiro traz a poesia de Ítalo Francisco Campos. Ítalo é goiano de  Uruaçu, mas vive em Vitória,Espírito Santos, desde 1976.Psicanalista e psicólogo formado pela UFMG, é Membro da Escola Lacaniana de Psicanálise de Vitória. É também membro da Academia Espírito-santense de Letras e da Academia Uruaçuense de Letras. É criador do Varal de Poesia, evento cultural que se realiza anualmente no Vagão Espaço de Arte, em Manguinhos (Serra/ES). Com ampla participação na vida cultural e política da cidade, o autor colabora regularmente na imprensa com artigos e resenhas. Destaca-se ainda sua participação como organizador de importantes publicações na área da saúde: "Drogas em Debate" (1991); "DST/AIDS: uma experiência capixaba" (2003); e "Vidas Interrompidas" (2009). Escreveu e publicou "Interiores" (1995); "O Sádio e o Mentecap-to" (1998); "Sabor da Letra" (1999); "Anil Bucólica(s)" (2006); e "Embaralhando Palavras" (2011).




Filho de escritor, irmão de poeta, Ítalo passeia com desenvoltura pelas sendas da poesia. Na sua poética estão consubstanciadas memória e história, não somente a memória do passado, de evocação, mas a memória do futuro, na qual se projeta, num ir e vir constantes.Consciente da fluidez do tempo e da perecibilidade das coisas, deles se alimenta e com eles constrói o seu mundo particular, via linguagem, no qual pode transitar sem os empecilhos dos opressos dissabores da sua contemporaneidade.

Poeta, psicólogo, psicanalista, tem nas formas o substrato de suas representações poéticas, sejam líricas,épicas ou dramáticas, não importa, o que importa mesmo é a plenitude de sua tessitura. Poeta e linguagem fundem-se, dão-se as mãos, se fazem, como no dizer do poeta e crítico literário mexicano Octavio Paz (1996, p.116-17): "A linguagem cria o poeta e só na medida que as palavras nascem, morrem e renascem em seu interior ele é, por sua vez, criador." Ítalo sabe muito bem do que fala  o poeta mexicano, pois é a linguagem sua matéria diária, a cada momento a ela se funde, por ela se faz representar, por meio dela passa a existir. A sua poesia também é resistência, suplanta a estupidez, sempre se refazendo, daquilo que fala Alfredo Bosi (1997, p.117): "Há na poesia como na linguagem (de que ela é a forma suprema), uma capacidade de resistir e de reproduzir-se que parece ter algo das formas da natureza."

A sua poesia é vária, muito bem tecida, traz em si a força das representações humanas, imagens da vida, "signos em rotação. Nela estão presentes o humor, a memória, a metalinguagem e o erotismo, como se poderá comprovar nesta coletânea por nós selecionada.

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O TREM É ESSE

Acordem, vovô Afonso e vovó Leonídia,
Ouçam a toada
Do trem chegando...
Não, não é sonho! Levantem Diva,

Cristovam, Carolina e Olimpia,
Abram os olhos e vejam.
Não é sonho.Vá chamar Adelino.
Acordem, Dito de Jesus, Dulce,
Derci, Luluca e 
Lá vem a Maria Fumaça escrevendo no céu.
Vejam a esperança! Ouçam os pássaros fazendo coro.
Apreciem o vuc-vuc-vuc da máquina de fogo.
Acordem Ditão,
Venham ver o cavalo-de-ferro rompendo o cerrado,
Arrebentando lagoas, espantando os animais.
A onça, o macaco, as capivaras e as antas observam.
O bicho centopeia de patas redondas e olhos brilhantes
Avança.

Acordem, Zé Lobo.
Corram ao terreiro venham ver a 
Locomotiva oitocentista que corre como siriema
Carregando no seu rabo todo tipo de 
Encomenda.
Acorde todo povo da Tapera,
Venham para a porta fazer a festa, cantar alegrias.
Dancem, fortes sertanejos, de mãos dadas, as cirandas 
De saudação.
Todos os mortos e os vivos desta Tapera - Fazenda 
Imaculada Conceição – girando a ciranda no dia seguinte 
Da Imaculada, fez chegar o trem.
Que ela traga, junto com sua avó Santana, o balsamo para esta 
Terra que elas sempre habitaram.
Que Imaculada e Santana 
desarme o forasteiro, fertilize estes campos, abrande os corações..
Que Iraídes e Hildelbrande, de mãos dadas aos Fernandes,
Regue este cerrado de chuva natural, façam correr o riacho,
Cresçam a manga, o abacate, a banana, o arroz o feijão e a cana.
E que, para o ano, no dia da Imaculada, esta fazenda abençoada
Contar o seu progresso em forma de toada,
reverenciar sua beleza e confirmar a paz,
Entre a técnica e a natureza.



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Planejo lhe matar concreta e lentamente,
arrancar seus olhos , nervo óptico, troclear e abducente.
Esses olhos me vêem
como não me gosto, serão enterrados no fundo do mar
para confundirem com o verde,
com nada, com trevas.
Quebrar seus dentes um a um,
esses mesmos que me acariciaram os ouvidos
e fornecê-los ao primeiro artesão,
que fara um troféu.
Sua língua solta de palavras,
oh! estas terão especial tratamento:
hei de arrancá-las, parti-las em pedaços
tão pequenos como cada sílaba
quebradas em letras,
tão pequena matéria ficará
solta no ar.
Planejo lhe matar com minha caneta,
açoitá-la com radical força
sobre seu corpo esgarçado, contorcido,
hei de suplicar, verter lágrimas,
soluços, suores. Sem dor.
Planejo matar você
em mim,
tão profundamente, que também irei
morrer.

In. Sabor das Letras, Vitória: EDIT, 1999, p.13
.


Ato I


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Rosno para teus olhos
quando me flecham.
Dão medo! Bebo tua baba de cio
sem nenhum pudor e
obedeço feito vira-lata faminto
ao teu peito arfante. Nem amante sou mais!
Escravo, cativo, objeto
do teu gosto estranho,
alimento de ganância vaginal.
Mais nada!
Balanço meu rabo ao menor afago,
me arrastando aos teu
sapato de rua.
Esses pequenos passos são
de teu coração distraído...
Deito enfim para avançar-me
em ti
e te transformas nesta amorfa
massa sem gosto e choras,
sem poderes dar o que não tens,
comigo.

In. Sabor das Letras, Vitória: EDIT, 1999,p.15.



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.G Ana


Acusa-me de pervertido
que debaixo da saia
diz carinhos.
Você não se convence
que a cara do carinho não tem
idade,
que depois do suspiro, suspiro,
suspiro. Eu desapareço.
Não que não tenha razão,
a idade aumenta o carinho,
diminui a emoção.
Acusa-me de não ter magia,
quando envolvo em seu tesão,
é que pede sempre mais
do que sempre tem à mão.
Acusa-me e excusa-me
de lhe dizer o sim pelo não.
Não que não tenha razão,
a idade aumenta a dúvida,
diminui o coração.
Que faz esta perna sobre
a minha?
Que pesa, chateia e
esquenta.
Não que eu não tenha carinho,
é que a idade aumenta
a dívida, diminui o tesão.
E por que toda essa fala, essa fala,
se o sexo é trem-bala,
Titanic, furacão?

In. Sabor das Letras, Vitória: EDIT, 1999,p.25.

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Mulher



Mulher não nasce,
ela aparece, quando saca em si o vazio
e a ausência.
Mulher não nasce,
ela floresce.
Quando seu ventre arrebenta
o novo, aí desperta. Não
feto, mas fato.
Mulher não nasce,
se faz,
quando contém o não-continente,
quando é, não é,
quando é verdade, ao mesmo tempo, mentira.
Mulher não existe na carne, se não for antes
na mente.
Mulher não nasce,
se cria,
sem forma, de natureza incerta,
no dia-a-dia, às vezes demônio, às vezes gente.
Mulher não nasce.

In. Sabor das Letras, Vitória: EDIT, 1999,p.29.

Gêneses



Várias palavras me fizeram,
meu jeito, meu gesto, meu ser.
Todas as tomei para mim,
assim me construindo.
Umas não foram ditas (apenas ausentes),
outras mal-ditas e, ainda outras,
entre-dentes.
Assim me fizeram.
Vários momentos me fizeram,
aqueles sem palavras,
as que eu não pude dar,
hoje eu busco.
E busco outras palavras
dessas mesmas que me fizeram,
para ouvi-las de novo.
Por outro lado.
Algumas cenas me fizeram
que represento sempre
como ator surdo,
num palco imaginado.
Várias palavras me fizeram
sem que eu as tenha pronunciado.
Adjetivos e verbos como puzzle
assim sou colado.
A palavra me desmancha e cura.
Se numa face me singulariza
e me apaga,
na outra pluraliza, não sou
nada.
Várias palavras me fizeram...


In. Sabor das Letras, Vitória: EDIT, 1999,p.39.

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Poetar I




Desmanchar os versos
dos seus termos,
fazer liberdades
sem nexo, rima.
À palavra, sua força
nenhuma.
Retirar da palavra
o senso. O tempo,
o ritmo. Fazê-la nua, crua,
sonsa.
Tirar sua roupa,
abrir as perna,
rasgar seu véu,
estuprar...
Descoser cada palavra,
libertá-la de todo sentido,
até virar puro
concreto-matéria
som.
Cozinhar o verso,
fervê-lo na língua
até desprendê-lo,
descondensá-lo ao
sumo,
fazer essência.
Nenhuma!

In. Sabor das Letras, Vitória: EDIT, 1999,p.40.

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Poetar II



Quebrar as frases, as crases,
retirar pontos
e vírgulas.
Fazê-las planas, plenas
pardacentas. Som. Som. Som!
Furar os termos,
rebentar ouvidos,
fazê-lo apenas -
mente borda,
mancha. Lembrança.
Destruir cada texto,
fazer nascer,
novo.
Entre partes.
Debulhar cada frase,
torná-la grão, apenas
grão.
Diluir cada palavra
até seu traço,
sua desmatéria,
seu real.
Destilar cada sílaba,
até o não possível sorvê-la.
Estar apenas
eu, o resto.

In. Sabor das Letras, Vitória: EDIT, 1999,p.41.


Poesia



Pensei que poesia fosse
um grito, um urro,
um murro. Chute no saco!
Vulcão, trovão, coisa parecida,
padecia. Não conseguia
escrevê-la. Poesia comigo,
prezado amigo, é modo de ser.
Não estável, recitável, reciclável.
Poesia é ato, que realiza nos modos,
certamente das palavras.
Metáfora, metonímia,
induzida, percorre sob a linha.
Poesia é conversa com ninguém - 
que certamente existe -
não tem sotaque, nem destaque,
nem bordão.
Poesia é também sussurro, prolongado,
às vezes parto cesário.
Minha poesia (tem hora)
é feito velha senhora,
conta conto repetido
com quem adia a morte.
Outras vezes é como suporte
que orienta, aguenta, faz ponte.
Ponte apenas!
Para nada.


In. Sabor das Letras, Vitória: EDIT, 1999,p.42.

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A palavra
para Elisa Lucinda


A palavra, amiga Elisa,
não é a roupa do
sentido. É ao contrário.
O sentido veste a palavra,
enclausurada. Deixa-a presa,
tira a surpresa!
O sentido, Elisa,
é o que cobre a palavra,
dá-lhe finitude, tempo,
magnitude.
É uma represa!
O sentido mata a palavra.
Mas esta não morre,
outros sentidos a socorrem.
Eles são tantos que as palavras
resiste.
A todos os ouvidos,
a todos os sentidos,
a todo carrasco,
a todo sandido.
A palavra não precisa do
sentido.
Ela precisa do som, do ar,
do desejo:
de Elisa.

In. Sabor das Letras, Vitória: EDIT, 1999,p.43.

Prevenção



Sou um homem prevenido
que ao menor novo ruído
me devolvo ao caixão,
(que é feito de palavras)
sentenças-de-ordens,
idealização!


In. Sabor das Letras, Vitória: EDIT, 1999,p.47.


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Viver

Viver, mistério de colar
e descolar pedaços,
deixando espaços para
a alma do mundo
que carregas.
Produzir colagens,
transformar,
criar do nada
um sentido.

In. Sabor das Letras, Vitória: EDIT, 1999,p.53.



The days of creation - Sir Edward Burne-Jones

Dezenas de anjos receberam
minha mãe no céu.

Dez eram árabes e judeus
do tempo de Jericó,
outros dez anjos eram índios
da costa brasileira qu morreram
de espelhos e bugigangas.

Dez eram sertanejos
com berrantes, chibata e gibão.
Outros dez eram crianças
natimortas no sertão.

Dez anjos eram negros
da Cabina de Luanda,
roupas coloridas,
danças de quimbanda.

Outros dez eram andarilhos
das estradas do Brasil,
e dez anjos eram músicos
em suas alegrias.

Outros anjos eram seus filhos
Ilionei e eu,
que fui ao céu
só para saudá-la.


In. Elegia.Vitória: Flor & Cultura, 2012, p.52.


Créditos:

As imagens aqui utilizadas foram colhidas na Internet, livremente, sem autorização expressa dos seus donos, para os quais expresso os mais sinceros agradecimentos.

Obras citadas nesta publicação:

PAZ, Octavio. Signos em rotação. Trad. Sebastião Uchôa Leite. São Paulo: Perspectiva, 1996.
BOSI, Alfredo. O Ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix, 1997.

Luís Augusto Cassas

Luís Augusto Cassas - by Meireles Jr.

A Revista Banzeiro faz uma homenagem ao Poeta Luís Augusto Cassas. Natural de São Luís do Maranhão, de quem herdou o nome, Cassas começou bem cedo na difícil e encantadora arte da poesia. A semeadura foi árdua, o caminho difícil, até que viessem a florescência e os frutos, os quais saboreamos agora. Muitos são os convidados para esta Messe. Autor de uma obra consistente e de reconhecido valor, conforme atesta sua fortuna crítica (que poderá ser lida aqui), Luis Augusto Cassas tem na Poesia, na nobre Poesia, seu ato de FÉ. 

Fachadas registram a data das belas construções
São Luís do Maranhão - Fonte: Secretaria de Turismo - MA

"Forte e bela poesia, atenta à vida humana e às questões de nosso tempo."
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Barroca
(A Cidade Aberta)
             1
a cidade acorda cedo
despida de segredos

solta os leques das palmeiras
melhor dizer: cabelos

desabrocha os cocos d’água
os ventos dizem: seios

onda na duna:
a bunda afunda

língua azul nos lábios:
risco de naufrágio


             2
a cidade acorda na rede
morrendo de sede

pela fechadura
vejo-a: tanajura

tomar água de bilha
com preguiça

desfolha os seios
como maçãs ao meio

um sabiá perplexo
canta em seu sexo

          3
sensual
no carnaval

molhadinha de emoção
no São João


           4
a cidade
e os seus trailers

a cidade
e os seus containers

a cidade
e os seus personal training

a cidade
e os seus 365 deuses

a cidade
e as suas 365 vezes


             5
ó tesão benigna:
és minha terçã maligna!




Caravaggio - Ecce Homo - 1605




Os Mestres do Jardim
um cristo em lótus
um buda em chagas
balançam incandescentes
no terceiro olho
(nascente/poente)
deixando-me caolho


dizem as línguas de fogo
quando buda ora
no mar vermelho
e cristo medita
no rio amarelo
é segredo da flor de ouro


a mim cabe segurar a haste
do pensamento em brasa
e acender o incenso
no altar da casa:
que mensagem de interdependência
trazem as flores da existência?

definitivamente místico
esse convite alquímico
de dois mestres do espírito:
à prece e meditação
abrindo-me os pesados trincos
dos jardins da compaixão


Caravaggio - The Adolescent Bacchus - 1595-1597


Um

quando estou em ti
e tu estás em mim
inverte-se o princípio
do início e fim
no primeiro momento
há movimento:
eu sou tu és
no segundo momento
há desfalecimento:
não sei quem sou
acaso és?
no terceiro momento
viramos fragmentos:
o nós e o vós
habitam em nós
depois não há nada
e o espírito do só
recolhe-se ao pó



São Mateus e o anjo  - Guido Reni

CADEIRA ELÉTRICA



Todo poeta tem direito ao último pedido
Canção de Dylan cachimbo inglês
ou o indefectível bife com fritas
Ninguém poderá recusar o batismo de fogo
de quem foi o herói de todas as paixões
(Assim falava Caryl Chessman cela 455
enquanto engraxava os sapatos vermelhos
pra assassinar pombos no Central Park)
Se o cabelo foi penteado não mais importa
Essa foi a derradeira apresentação
— Inferno de kryptônia que sabes de Dante Alighieri?


O povo viu a cena na tevê & lavou as mãos nos bares
Ninguém percebeu que a alta voltagem da descarga elétrica
incendiou-lhe o fio condutor da memória
antes do curto-circuito afinal


No trono onde posa como um decadente deus grego
desenhou com as unhas o derradeiro poema
Mas quem quer saber de um poeta sem smoking
& reclamando do ketchup (na calça) no dia do prejuízo final?


Na foto estampada na primeira página dos jornais
o poeta ri Ri da América e dos homens de boa vontade




"Você é o mais novo e moderno poeta a realizar a alquimia da banalidade atual, uma alquimia-denúncia. É original e inusitado, uma espécie de revolta contra a banalização da vida nesta idade de consumismo desvairado. Gostei também de Bhagavad-Brita: A Canção do Beco, em que revela sua força de poeta inventivo e transfigurador do real. 
                              Parabéns e viva a poesia maranhense que o pariu!"


FERREIRA GULLAR




Roberto Ferri - * 1978

ODE (QUASE) LOUCA

                            1
Decididamente
deve existir por aí uma mulher
manequim 42 sandálias 38 náufraga de luz
vaga inclinação para hot dogs e filmes de Fellini
sem compromissos maiores que não seja o amor


Ela está estendida nua no tapete da sala de estar
e secretamente (sem que Dylan na vitrola perceba)
alisa lentamente as rosas do púbis
pensando na imagem de um poeta que a excita


Possivelmente um poeta que os críticos tacham de louco
desses que os pais de família chamam de irresponsável
e os executivos fazem aguardar nas antessalas
(como a flor de plástico
que desabrochará no jarro)
avesso a cortesias e gravatas italianas
mas cúmplice de todos os carinhos
capaz de exterminar o estoque de rosas vermelhas
dos restaurantes e floriculturas
e doar (por intrépida doçura)
as cerejas de todos os martínis doces


Ela está só e esqueceu a identidade burguesa
o vestido francês o concerto de Shankar
e passeia (na imaginação) por verdes pradarias
como uma égua servindo-se do seu cavalo
No cenário nu que a rodeia
o ketchup e o vidro de esmalte vermelho
derramam sangue sobre o tapete da sala de estar
É uma corça ferida de desejo
no entanto o seu desejo não está só

                           2
Decididamente
deve existir por aí uma mulher
estátua viva do mais puro mármore
musa de mil tentáculos especialista em naufrágios
vaga inclinação para as causas mais secretas
sem compromissos maiores que não seja o amor


Miss noite mademoiselle fúria
(está só nesse instante em que pisco os olhos)
na janela do apto. em frente
o bico do seio (como um diamante
ferindo a vidraça)
enquanto durmo e sonho acordado
(com a aurora do seu ventre em chamas)
desperta em seu quarto na América
e envia os sinais lânguidos de leoa acossada
para a selva do meu quarto de dormir


Decididamente
deve existir por aí uma mulher
que me ensine lições de abismo
(e me atualize o desejo tempestuoso do amor)
que me toque tão profundamente
(como a brasa acesa toca o cigarro)
que me dê colo e transcendência
(e me fale de Deus e sexo
Henry Miller e S. Francisco de Assis)
e responda a questões urgentes do meu ser
(não com mensagens de sua boca)
mas com palavras quentes de todo o seu corpo:
o amor é uma turbação?
é uma perturbação?
uma revolução?
uma realização?
um desejo etéreo?
um mistério eterno?
Como compreender o instante e a eternidade
de amar a terra e o céu ao mesmo tempo
se tenho amado quem não quero
e não tenho amado quem quero?
Se meu corpo faz o que não pretendo
e a minha alma regozija com o que não posso?
Se o gozo das coisas do alto
eleva-me o desejo das coisas de baixo?

                             3
Esta noite Deus (em sua misericórdia)
perdoará o excesso de fragilidade humana
e descontará a minha fatia de céu
Mas ainda que me fira a carne com todos os espinhos
jejue mortifique-me e veja os sinais de queda
tudo será em vão

Hoje meu céu está na terra
e o desejo é o meu único pastor

Quero escorregar como um sol de abismo
e no leito da noite num corpo de mulher
descobrir o paradoxo de todos os mistérios
desnudar a plenitude de todos os fracassos
e nas curvas sinuosas do seu corpo
acender as estrelas da Ursa Maior




"É de cem saídas o beco de Luís Augusto Cassas, abrindo-se a um fecundo diálogo com a tradição e a experimentação poéticas. Livro de autor que cresce de obra a obra, este Bhagavad-Brita representa, até o momento, o patamar mais elevado da produção poética de Cassas, ao reelaborar antigas dicotomias que fundam nossa civilização e ao propor novos espaços onde essas mesmas dicotomias se interpenetram e se dissolvem, através da síntese fundadora da palavra poética."
                                            
Antônio Carlos Secchin



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São Francisco recebendo os estigmas - Caravaggio

POEMA DA GRANDE TRANSFORMAÇÃO

(Arcano 13)
A primeira vez
que a Morte passou pela minha vida
caíram-me por terra
a coroa do império o cetro do orgulho
o castelo da vaidade
E fui ficando mais leve
do enorme peso da vida

A segunda vez
que a lâmina da Morte passou pela minha vida
cortou-me os braços
e todo o apego fugiu-me por entre os dedos
E fui ficando mais livre
do enorme peso de existir

A terceira vez
que a lâmina da Morte passou pela minha vida
cortou-me as pernas
e aprendi a caminhar com os próprios passos
E fui ficando mais livre
do eterno peso de existir

A quarta vez
que a lâmina da Morte passou pela minha vida
rasgou-me o horizonte do coração
e todas as estrelas do futuro
caíram-me aos pés
E fui ficando mais solto
do pesado fardo de ser

A enésima vez
que a Morte passou pela minha vida
já estava podado
de quase todos os excessos do ego
Separado o espesso do sutil
reduzido à essência do ser
E fui ficando mais leve
do aéreo peso da vida

A última vez
que a Morte passou pela minha vida
decepou-me o pescoço e a esperança
Minha cabeça rolou pelos campos de toda memória
Estava livre de todo o excesso da matéria
e comecei a viver.




"A poesia de Cassas nasceu como Minerva da cabeça de Júpiter. Grego equinocial. Cidadão do mundo. Amante do corpo e do intelecto."

                                                     Marco Lucchesi



Michelangelo Merisi da Caravaggio 1571-1610

BAR DOS MILAGRES

em são luís do maranhão
todo bar tem um santo
que bebe cachaça

na mesa e no balcão
embriaga-se o santo
apóstolo da fuzarca

dos bêbados - proteção -
consome o mar das garrafas
em estado de graça

até se estatelar sóbrio
bêbado como gambá
anônimo de ressaca

em são luís do maranhão
todo bêbado tem um santo
que lhe veste a carapaça

padroeiro da ilusão
ou o santo é santo bar
ou o milagre é santa farsa



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Mona Lisa - Leonardo Da Vinci


INVENÇÃO DA CHUVA

a vida inteira amei a chuva
como platão amava os elementos
e nietzsche o espírito do vento
  
protegia-a da fúria dos relâmpagos
deitada em lençóis de aquecimento
aberto exemplar de “o ser e o tempo”
  
na horizontalidade de suas curvas
o abajur nos acendia os corpos
incendiária musa em “novecento”

partia úmida e em contentamento 
lágrimas nas vidraças a mona lisa
no verão do meu desfalecimento




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Pintura de Celso Antonio de Menezes - Artista Maranhense
BIOGRAFIA DO AUTOR SEGUNDO O PRÓPRIO

Mestre em becos,

Ph.D. em ladeiras, 
Ofm das águas do Maranhão.

Luís Augusto Cassas (2 de Março de 1953, São Luís do Maranhão) nasceu longe, como as utopias, desenvolvendo a vocação para o horizonte.

Trilha o caminho do meio, mas há risco de abocanhar o inteiro. Após ciclo de mortes e transformações, novo nascimento entre duas palavras.
Tendência à profundidade, por estar sempre em queda. Teórico do mais. Hoje, discípulo do menos.
Poeta do alto e do baixo, do externo e do de dentro; às vezes é fogo; às vezes, vento.
De índole solitária, não é membro de nenhuma academia de letras, sindicato ou entidade de classe. Mas aprecia longas caminhadas e bom papo.
Gosta de contemplar a unidade, dispersa na criação: “Embora o olho não perceba, sabe-o o coração”.
A serviço da luz, do belo e do verso. Para ele, o mundo é pura poesia. Não é à toa que o chamam de universo.



"Não tenho dúvidas de que Luís Augusto Cassas é já agora uma das mais belas realizações poéticas engajadas na carne e no sangue e na substância da vida, tirando desta as palavras mais belas e mais tristes e mais vindicativas com que cantar a vida mesma — que a morte, não!"


  Antônio Houaiss





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Satã, Adão e Eva" - William Blake



A Chegada da Luz
dei pra me emocionar 
quatro cantos da alma 
cisco no olho. água de piscina. 
rôo meu dilúvio como posso. 
quem derramou esse oceano 
pra enxaguar o sol?


uma história de amor 
não é só o romance do amor 
é mais que a memória do amor 
não fosse a biografia do suor 
ainda assim seria o amor 
narrando as suas estórias


silêncio: ouve o rumor 
segredos do espinho à flor: 
‑ tudo gira ao redor 
de uma história de amor! 
‑ adão e eva? 
‑ novela de amor. 
luz e trevas? 
‑ drama de amor. 
‑ bela e a fera? 
‑ alquimia do amor. 
‑ a noite escura da alma. 
‑ a iluminação do amor. 
‑ a sabedoria e a loucura. 
‑ os dois caminhos do amor. 
‑ o velho e o novo? 
‑ os ciclos do amor. 
‑ o infanticídio de kosovo? 
‑ o assassinato do amor. 
‑ a explosão das galáxias? 
‑ a energia do amor. 

‑ a via crucis e a via láctea? 
‑ a grandeza do amor. 
‑ a rebelião de lúcifer? 
‑ o orgulho do amor. 
‑ o homem e a mulher? 
‑ o eterno renascer do amor.


eu não sou meu país, meus pais, minha
família, minha casa, minha religião, meu carro, 
minha conta bancária, minha arcada 
dentária, minha glândula pituitária


eu sou o cordão umbilical do sol, o sonho da luz, 
a morada do ser, o pássaro e a asa, 
a origem e o original, a água e o sal, 
a família planetária, a flor azul de belém-efrata


‑ quem és? ‑ sou eu, não temais! 
‑ quem sou? eu sou ‑ sempre e jamais!


candelabros em fileira: 
derrete-se o coração 




à causa primeira

File:Viejos comiendo sopa.jpg
Francisco Goya  - Velhos comendo sopa - entre 1819-1923


O Nome da Fome

quem lhe fornece a semente
e dá a luz ao recipiente?
de todas as formas de fome,
qual o conteúdo, é o salame?
seja carboidrato ou ternura,
ronca-lhe o estômago, a usura.
quando é anoréxica ou ética,
rói-lhe em excesso, a metafísica.
mas se é dietética ou kármica,
subtrai-lhe ao estro, a lírica,
a esvaziar-nos, além-ente.
de todas a fome-trina,
a hidra, é a mais assassina,
instalando o seu pavio
com gastronômico fastio.
vai mastigando-nos, al dente,
ventre, coração e mente.
se a redimíssemos, fome,
daria à vida, o prenome?
e se disséssemos: sim!
jejuaríamos-lhe o rim?
que essencial alimento
reclama ao corpo ao espírito?
de todas as formas de fome,
amor é o verdadeiro nome!




"Na poesia brasileira o maranhense Luís  Augusto  Cassas  ocupa um lugar  de inconfundível relevo. A sombra e a luz regem, simultâneas, a sua partida e o seu regresso: o seu estar no mundo e a busca já tornada resposta, com a descoberta e o encontro de si mesmo."


Lêdo Ivo
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Roberto Ferri *1978





Diabetes
Os imortais da Academia
estão tomando chá:
gestos polidos unhas aparadas
bigodes tosados pernas cruzadas
no melhor estilo gótico
excedem-se no dietético
para adocicar a conversa


Não sabem que lá fora
a vida é amarga e má;
que a arte está é nas ruas
mercados feiras e prisões
— eles os imortais —
imobilizados em seus fardões
imortalizados imorredouros

mortos



A poesia de Cassas é um outdoor luminoso em meio à treva desses tempos sem Deus. Saravá, poeta! Que Minerva te abençoe! A divindade, não o sabão em pó!


ZECA BALEIRO





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Caravaggio - Medusa




Fortuna Crítica



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                                                                        Marco Lucchesi

Vejo a obra reunida de Luís Augusto Cassas. E me espanto com a população que habita seus livros. Uma demografia incomum. Toda ecumênica. Cheia de beleza. E frescor. Mais de uma praia. E mais de uma cidade. O mundo e a redescoberta de sua grande poesia. Uma das mais belas que se escreve hoje no Brasil. E das que mais me comove.

Algo de Apollinaire. Algo de Blaise Cendrars. Mas tocado pelo tempo atual. E com uma síntese toda sua, uma linguagem toda sua e um acento inconfundível.

A poesia de Cassas nasceu como Minerva da cabeça de Júpiter. Grego equinocial. Cidadão do mundo. Amante do corpo e do intelecto.

Para Cassas, o universo é uma teia de correspondências, em que as pedras e as estrelas se comunicam sob os céus do Maranhão ou de qualquer parte do Globo. Como se buscasse a espiral de Deus. O nautilus invisível.

E Cassas é este sobrevivente pós-moderno de Babel, o DJ de Deus, o trapezista luminoso de um circo de palavras, perdido entre alturas e adesões. O universo é como um iPod. E Cassas busca o modo de fazer o download de alguns resíduos de Deus que vagam no ciberespaço. Além da pedra. Do sonho. E da estrela. E o livro do mundo precisa ser lido. Tudo aquilo que diz sem dizer. O espaço entre as palavras. O branco da página.

Temos o poeta da cabala do visível, que sai do papel e vai para a vida — nunca saiu da vida este poeta nietzschiano, atrevido, apaixonado às últimas consequências.

Um permanente j´accuse como um profeta do antigo testamento no seio da modernidade. O drama da figura do Pai e da piedade do Filho. Uma telemaquia de Cassas à procura de Ulisses. A espera do Pai. E do futuro. E do filho pródigo. E a volta. A transfiguração materna em ampliados afrescos. Dvořák e o banquete de cordeiros físicos e metafóricos. O Alfa e o Ômega de uma dor íntima. Ao cabo, o encontro com Hölderlin, atingindo o ápex de uma vida dedicada de todo à poesia. Alta voltagem de mistérios e revelações.

Ele preferiu a escola do abismo. Mais que a de Telêmaco. De quem aprende com as impurezas do Hades. E ao voltar, como Orfeu, buscou Eurídice por todos os quadrantes. Mas seus olhos tinham fogo. Sua boca havia sido marcada pela sarça ardente da poesia. Era demasiado tarde para uma crítica da forma pura. E toda uma língua forte — cheia de frescor — com uma férrea vontade de levar a termo uma nova razão de estado da língua de seu país, em que tudo aparece deslocado e destramado. Sua poesia não tem compromissos. E é livre e compartilha um ecumenismo raro na literatura brasileira. E aqui não falo apenas de uma compreensão mística, mas de uma variedade poética e vocabular cheias de eletricidade. Poeta que canta as belezas do mundo. E suas partes trágicas. Mas com um sorriso de fundo permanente.

A Obra Reunida aqui está. Cassas tem agora a imagem do próprio rosto. O itinerarium mentis. As confissões deste Augustinho pós-moderno, maranhense e brasileiro.





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                                                                                                         José Mário da Silva

Considero caleidoscópica a cartografia poética engendrada por Luís Augusto Cassas porque, recusando-se, criativamente, a se enquadrar de forma passiva nesta ou naquela vertente estético-filosófica, sua poesia,  portando  exacerbada  sede  de  eternidade  e  ânsia  de  infinito, transcende, pelo alto poder transfigurador de que se reveste, as gramáticas mais rígidas e convencionais das elaborações epistemológicas mais previsíveis e, guiada por uma peculiaríssima e transgressora lógica que rompe os interditos, venham eles de onde vierem, propõe, universal e transdialeticamente,  uma  espécie  de  holística  compreensão  da  realidade;  atravessada  por uma visceralmente  dramática  compreensão  do universo, através de um vertical incursionamento pelas camadas mais abismais da sua significativa e errante personagem histórica, e protagonista maior: o homem, com os seus desafiadores enigmas e encantatórios sortilégios.





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Franklin de Oliveira


Da geração de poetas maranhenses que encontrou em Ferreira Gullar, Bandeira Tribuzi e Nauro Machado as suas figuras mais representativas, talvez o nome mais destinado a obter ressonância nacional seja o de Luís Augusto Cassas. O fazer lírico do grupo que o antecedeu trilhou dois caminhos, não antagônicos, mas complementares: o da poesia social (Gullar, Tribuzi) e o da poesia existencial (Nauro Machado). Situado nessa encruzilhada, Luís Augusto Cassas celebra o seu  canto abrindo a via de um compromisso entre aquelas duas grandes vertentes poéticas. Desta posição de equilíbrio, Cassas extrai a força de sua poesia, que é a arte da palavra em el tiempo, como queria o grande Antônio Machado.

O tempo — o seu tempo vivido e celebrado!— reflete-se na sua linguagem perpassada pelos objetos do quotidiano — os objetos, as sensações, as impressões. É essa linguagem, enquanto metáfora do tempo, que imprime timbre social à sua poesia. Ela socializa a sua poemática. Mas o substratum lírico da poeticidade de Cassas, esse está preso à subjetividade do poeta, e com tal intensidade a ela se vincula que, por vezes, leva a temática social a desembocar no estuário do mais fremente lirismo de índole privatista. A sua seria, portanto, uma poética condenada a desnortear o leitor, se a vigilante autenticidade de sua emoção pudesse ser colocada em dúvida.  Tal não acontece: Luís Augusto Cassas sabe que o poeta jamais conseguiria dar voz ao mundo, sobretudo ao mundo social, se fosse incapaz de  conferir liricidade  às angústias humanas. No seu canto o desespero social e o desespero individual estão correlacionados. Defrontam-se, confrontam-se e se resolvem numa grande integração artística.

República dos Becos é um ardente testemunho dessa ambiguidade básica da poesia. Ela celebra, na sua magia vocabular — a palavra é canto, mesmo quando é a rude palavra  arrancada  ao  quotidiano:  a esperança de um tempo que aos homens só oferece a perspectiva das vias sem saída. Cassas busca a sua e a nossa saída.  Eis por que todos reclamamos a companhia do seu poema.




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Fábio Lucas

República dos Becos ilustra o estar no mundo com a consciência iluminada.


                                                                                      



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                                                 Josué Montelo




Alcântara, envolta de silêncio, defronte de São Luís, no Maranhão, tem agora o seu poeta. Luís Augusto Cassas.

Luís Augusto Cassas conciliou  ternura  romântica  e  protesto moderno, no tom elegíaco de seu livro: A Paixão segundo Alcântara. O poeta maranhense, já veterano do verso, encontrou o tom adequado para celebrar liricamente a velha cidade. Em vez de chorar sobre suas ruínas e seu silêncio, cantou-a em tom de elegia moderna, com o lamento associado à denúncia.

Alcântara estava à espera de quem a cantasse no tom do poeta moço.  Outros poetas a cantaram, quase a carpir-lhe a morte.  Luís Augusto Cassas passeou por suas ruínas a emoção viva de quem canta com um tom de esperança. Certa nota irônica, em meio à elegia, já é essa esperança.  O que eu não disse em prosa,  na  minha  Noite  sobre Alcântara, disse-o agora Luís Augusto Cassas.                                                     




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                                                                 Moacyr Felix


Prosseguindo nos caminhos abertos pelo vigoroso imagismo de A República dos Becos (que me alegro de haver publicado ao lado de dezenas e dezenas de outros bons poetas deste país, quando fui coordenador também das edições de poesia na Editora Civilização  Brasileira) e de A Paixão segundo Alcântara, este Rosebud, somando-se aos dois livros que o antecederam, coloca o maranhense Luís Augusto Cassas entre as autenticidades criadoras da atual poesia brasileira e o torna de menção obrigatória em qualquer antologia que se queira honesta e verdadeira.

Irônicos, bem pensados, sofridos, gozadores, às vezes amargos, todos eixados em torno de uma visão de mundo revoltadamente estruturada e religando os atos e as  coisas mais simples do cotidiano com importantes nomes e  fatos  da  história  e  da  cultura mundiais, os  seus versos são como / nas pontas de facas atiradas contra e estourando os enorme balões coloridos — inflados de mentiras e hipocrisias e desumanizações — com que as nossas elites econômicas alardeiam as suas riquezas sobre a pobreza moral e física de mais de cem milhões de brasileiros.

Isento do panfletarismo superficial e boboca (e, portanto, politicamente deformante e errado) dos que se querem “poetas engajados” sem as filosóficas busca e conquista de uma técnica de pensar essencialmente antissectária porque dialeticamente libertária, Cassas é, neste sentido, um autor de poemas realmente significantes porque alinhados ao lado de afirmações como as do filósofo Arthur Giannotti  de  que “houve  uma  espécie  de  transposição  da  loja  de  departamento  para  a cultura como tal. A cultura está sendo apresentada como um supermercado” e de que “ser de esquerda hoje é, por exemplo, realizar a crítica aos  defeitos  alienantes  da  técnica  no  capitalismo”;  ou  como  as  desse percuciente jornalista que é o Zuenir Ventura quando acentua que “no Brasil, onde não há resistência crítica a essa ditadura do marketing, há de fato o perigo de se cair no reino da mediocridade bem-sucedida, se é que já não caímos”.

Cassas sabe e sente isso. E por isso deve ser lido em seus três livros raivosamente xilografados no tempo porque conscientes de serem o avesso do amor humano que se sabe engaiolado nas alienações de uma história sem Liberdade porque de poucos opressores e de multidões de oprimidos.




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                                                                             Walmir Ayala


A poesia como um desesperado recurso de sobrevivência. Resistir, ironizar, tanger o lugar comum e transformá-lo num código. Assim canta o poeta Luís Augusto Cassas. Este seu Rosebud é uma sucessão de surpresas, deboches e distanciamentos de um puro maldito. Mas com a poesia sempre presente. No discurso mais trivial está a poesia, porque as linhas e entrelinhas estão curtidas de transcendência. Ele parece ter pudor destes voos, mas não escapa. Desenha com incisão dolorosa o retrato do poeta, e nele assomam ressonâncias dos antecedentes — Pessoa, Castro Alves, Drummond, não devolvidos antropofagicamente, mas gozosamente embutidos, em levíssima citação, no transcorrer da música do verso.

A música. Poesia é antes, de tudo música, e que bom instrumento nos dá Luís Augusto Cassas. Lemos derramados e escorregando como de um tobogã alucinante. É viagem e denúncia, sem interrupção.

“Escrevo com a tinta do ódio”, diz ele. E nisto não convence. Porque sem amor não galgaria tantas montanhas, não se perderia em tantos córregos, não tocaria o pó, o sujo, o sublime, o cotidiano com todas as suas celebrações e seus desgostos.

As dores do mundo estão de repente presentes, como em Um Poster contra a Posteridade; os desgastes domésticos, como em Supermercado; a dor, o troco da dor como um sobrante que não se esgota.

Há uma litania perversa em A Mulher dos Lábios de Atração Turística, onde o trágico vai se metamorfoseando em quase compaixão. Há jeuxde mots, como em A Indesejada, onde se visualiza um teatro do absurdo, concreto e escarrado. A arte poética, em Dialética do Olho Roxo, é das mais originais. Quem atravessar a fronteira desta agressão amorosa não se perderá jamais da poesia.

Esta sucessão anarquista de provas de amor à poesia, por sinal, faz deste livro uma Arte Poética inconsútil. A sinistra elegia ao peru é uma obra prima, uma abrangência do histórico que se faz cotidiano e imediato, um crime que se mistura à compaixão e à fatalidade do destino. Mesmo em perigosas situações poéticas como em O Rebanho de Deus, sai-se digno, limpo e nítido na sua crítica. Há o terrível poema Tratamento de Choque, um dos modelos perfeitos de sua inversão de valores, aparentemente delirantes, mas cheios de trágica verdade. E a risada intercalada do Obituário dos Poetas, a Missa Negra onde a poesia pousa na lápide, a Cronologia do Poema.

Página a página encontro o verdor da poesia, e me gratifico.                                                         


Francisco Carvalho morreu aos 86 anos




                                                            Francisco Carvalho



Essa Imitação de Cristo, pela carga de intenções e pela ambiguidade poderia enriquecer  qualquer  antologia  de  poetas  malditos:  “Eu também tenho 33 anos completos/barba por fazer/paixão por prostitutas ódio da humanidade/e me crucifico diariamente nos bares da cidade velha”. Sua poesia é coquetel molotov para “queimar as mãos”. É uma poesia direta de grande força e marcante individualidade e cujo centro de gravidade reside na irreverência. Decididamente, você rompe com o lirismo de postura acadêmica ou de posturas equívocas e com todos os demais compromissos de uma poesia que já não diz nada a ninguém.


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                                                                                                    Assis Brasil



Todos os livros anteriores parecem ser uma preparação para este, O Retorno da Aurea, onde o poeta encontra um caminho, pervagando as múltiplas experiências místicas para alcançar o que Octávio Paz chamou de “a outridade” do ser humano.  Quatro livros até agora, uma obra poética já  plenamente integrada no quadro geral da poesia brasileira.






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                                                                    Gabriel Nascente


Ele é poeta total, dos calcanhares aos sótãos do espírito.  Tão imensa é sua voz, que ressoa nos matagais da metáfora, arrancando com ela temáticas que vão desde a usura dos cotidianos, em nós, até os mais vastos vales do empíreo, onde os deuses maquinam o engenho dos seus versos. Cassas, o executivo da alma, é o poeta do dilúvio e é de fato irmão gêmeo da luz porque, onde quer que haja luz, a poesia é a sua mais estúpida e bela consorte.



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                                                                   Olga Savary

O Maranhão é terra de poetas, desde o período inicial da nossa literatura até os dias de hoje. Inúmeros são os exemplos da excelência da poesia maranhense. Não citarei nomes para não cometer injustiças. Mas um nome se destaca, não só de lá, como da poesia contemporânea brasileira: Luís Augusto Cassas. Desde o primeiro livro desse autor, República dos Becos, editado pela Civilização Brasileira em 1981, seguido dos outros (enviados por ele:  A Paixão segundo Alcântara, pela RK, 1985; Rosebud, Massao Ohno, 1990; Retorno da Aura, Nórdica, 1994; até Liturgia da Paixão, Nórdica, 1997), que é um êxtase só, uma expectativa recompensada, um susto  gozoso. Porque urge que a poesia seja isso que a dele salmodia.

Cassas endereça aos alertas leitores de poesia um texto brilhante, intelectual e emocionado, inteligente e desesperado, como raros são os que transcendem o mero malabarismo poético na contemporaneidade.

Ele, não. Cassas, profundamente apaixonado pela palavra, pela ars poetica, embrenha-se na sensualidade de uma poética de abismo, de naufrágio, mas que sabe igualmente alçar-se aos cumes mais altos de um sol a pino, seta para o infinito da mente que produz o milagre de verter pedra em pão. Ou melhor: amalgamar pedra e pão.

Enérgica e inquieta, rítmica e impulsiva, vital e magnética, rebelde e compassiva, impregnada de céu e terra, a poesia extasiada e extasiante de Luís Augusto Cassas está votada à solidão do mais profundo self, do si-mesmo do poeta, da mesma maneira que ao apelo do mundo. Entre recolhimento ascético e frenética multidão, esta poesia se compartilha com a mais nobre fraternidade. Entre paz e humor sangrando alicates, a  coroa  de  espinhos  do  poeta  é  amar  o  próximo  ainda  que  distante, invocando: “Senhor/crucifica-me junto com o outro/pra ver se o suporto no paraíso.” E é assim que, para este poeta, a duras penas, solidário e sozinho, sangue, suor e lágrimas, eis o poema: a sua coroa de espinhos. Mas também a sagração da alegria, da alegria da vida.




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                                                                                  Ivan Junqueira

Assim como Eliot celebrou Londres em The Waste Land, ou Baudelaire fez o mesmo com relação a Paris nos “Tableaux Parisiens”, de Les Fleurs du Mal, ou Joyce também o fez no que toca a Dublin no Ulysses, ou outros mais assim o fizeram com outras tantas cidades em que nasceram ou  viveram,  ou simplesmente amaram — e não se  esqueça aqui daquele Rio de Janeiro de Machado de Assis ou Lima Barreto — assim também o  faz  o  poeta  Luís Augusto Cassas  no  que concerne a São  Luís do Maranhão, dita  outrora  a Atenas brasileira  ou, como ele próprio diz agora em sua Ópera Barroca: “Ó minha cidade / minha mãe podre / porque a vergonha é a minha bengala / e a peçonha é a tua fala / a dor é lançada em fascículos”. A um tempo amoroso e sarcástico, Cassas deambula entre as antigas glórias arquitetônico-literárias e as misérias hodiernas da cidade, essa cidade que já nos legou, além de outras iguarias, os poemas de Gonçalves Dias e Ferreira Gullar, o ensaísmo de Franklin  de  Oliveira  e  a  cornucópica  contribuição  ficcional  de  Josué Montello, para ficarmos apenas com esses poucos nomes. Mas o tom geral da Ópera Barroca transita, a rigor, entre o lamento e o escárnio, pois há pouco (ou quase nada) o que louvar com relação a um patrimônio histórico, artístico e cultural que o país, com diligente e criminoso descaso, insiste em ignorar ou devastar sem se dar conta de que apaga para sempre a sua fisionomia, a sua própria identidade. Como disse Franklin de Oliveira naquelas inesquecíveis páginas da Morte da Memória Nacional, não somos uma paideia, como o foi a da antiga civilização grega de que todos descendemos, mas apenas uma “cubata” que a cada dia mais se avilta e que aos poucos se torna inabitável.

Tem assim a Ópera Barroca, além da virulência imagística e do pathos escarninho de seus  versos,  esse  poder  de  denúncia  contra um processo predatório que se desenrola com a impunidade dos crimes a que, por assim dizer, já se afeiçoaram as autoridades nacionais. Daí o timbre de sarcasmo que ecoa em cada verso, em cada palavra, em cada poema deste livro  amargo  e  indignado.  Dai, também, a ira do autor quando deplora: “Ó galinha dos ovos de agouro/que chocas a nossa grã-miséria:/ titã da realidade funérea/do escalpo escapo e escapulo/amaldiçoado via aérea/com o espírito impregnado/do chão de doenças venéreas”.

As rimas surpreendem e, mais do que isto, laceram e constrangem. A linguagem poética de Cassas evoluiu muito desde Rosebud (1990) até um recente volume, o esplêndido Bhagavad-Brita: A Canção do Beco. (...). Seu instrumental muitíssimo se aguçou, e seu ludismo verbal, antes algo gratuito, ao invés de se esgotar no divertissement consigo mesmo, serve agora aos propósitos de uma expressão poética que se evadiu do gozo de si própria não para tornar-se socialmente engajada, mas para denunciar, à sua maneira escarninha, uma realidade que nenhum poeta brasileiro digno desse nome pode ignorar.

Nesse sentido — e em muitos outros, estes já de índole estética — a Ópera Barroca é livro que não pode passar despercebido, já que reflete não só a maturidade poética de um autor, mas também — o que aqui, aliás, mais nos importa — uma radical e funda transformação na maneira como o poeta  passou  a  encarar-se  a  si  próprio  e  a  realidade que  o  circunda,  uma  realidade  que  bem  poderia  ser  degustada  num poema como “Pastelaria de Aquém-mar” ou na magistral síntese de um dos símbolos mais caros à nacionalidade, como se vê na “Feira do João Paulo”, onde lê-se apenas: “Grécia jamaicana: / tua bandeira republicana/ é um cacho de banana”. E se ao fim e ao cabo entender o leitor o que acabo de lhe tentar dizer acerca de um país que ainda não presta e ignora ainda o que seja dignidade humana, entenda também que a linguagem debochada,  escarninha  e  sardônica  que  instrumenta  essa Ópera Barroca é a única que talvez se preste para deplorar tudo aquilo que, em termos de nação — ou de uma cidade que já mereceu o epíteto de “Atenas brasileira” — poderia ter sido, e no entanto ainda não foi.

E não o foi por inépcia, por usura, por corrupção e, mais do que tudo, por desamor. Lembrai-vos, leitor, do que nos disse São Lucas em seu Evangelho (X,15): “Tu, Cafarnaum, elevar-te-ás, porventura, até o céu? Descerás até o inferno”.





 césar teixeirsa




                                                             César Teixeira

Filho pródigo reincidente, o poeta Luís Augusto Cassas retorna não à casa do pai (seria elementar, caro Watson), mas à casa da mãezona, como quem sente saudades da primeira puta. Esse resgate edipiano, sem prejuízo da aura reconquistada, reúne o poeta maduro ao adolescente lírico que, após anos de masturbação entre ruínas despidas de azulejos, decidiu novamente deitar-se com a sua Jocasta numa noite de lua.

Do amor incestuoso pela sua indigente cidade renasce a notável poesia desse menestrel que conheci no final da década de 1960, quando já proclamava a República de São Luís entre cachos de cajazinho e copos de cachaça (o nosso caviar e champanhe dos becos e feiras), depois das fugas do Liceu Maranhense em direção ao front do Bar do Joaquim, na rua do Passeio, quando não explodindo as tendas da Ponta d’Areia com garrafas incendiárias.

Para ciúme das meretrizes palacianas e  felicidade  geral  de  boêmios,  ex-lutadores  de  boxe,  crooners  de  cabaré  e  cafetinas  falidas  da Zona do Baixo Meretrício, Luís Augusto Cassas nos dá para ler talvez o seu livro mais irreverente — e, portanto, louvável —, com o não menos sugestivo título de Ópera Barroca: Guia Erótico-poético & Serpentário Lírico da Cidade de São Luís do Maranhão.

O autor de Rosebud e O Retorno da Aura surpreende-nos mais uma vez com a sua nova cria, de quem há anos vinha encomendando o parto, após insuspeitas traições à família. É que para Cassas a poesia é uma amante contumaz, que hoje, por força de seu compromisso com as leis, o obriga a pagar com prestações de dor o amor que lhe dedica anos a fio. Deve-se dizer que agora está quites, com ou sem desquites.

A mãe, essa puta cidade, certamente está lhe dando alguns puxões de orelha: “não precisava tanto revelar intimidades”. Mas o sorriso de Mona Lisa no canto da boca denuncia que a cidade está satisfeita com o seu filho pródigo. Até porque para ser pródigo tem que fugir sempre de casa, como fazia o adolescente poeta Arthur Rimbaud antes de tornar-se contrabandista de armas na África.

Desarmado de navalhas conceituais nesse seu retorno, em vez do Livro de Thot, Cassas traz debaixo do braço esta nova versão do Kama-Sutra, e, por um momento (que serve para a eternidade), abre mão dos arcanos do Tarô para tirar da manga um sujo coringa do seu baralho poético, o mesmo com que arriscou libidinosas partidas de buraco na ZBM durante décadas.

Este livro  revela  a  beleza  podre  do  que  há  de melhor na  poesia maranhense dos últimos tempos. Trata-se de um inventário profano e lírico de tudo o que uma cidade, mesmo depois de estuprada em séculos de pirataria, pôde dar a um poeta apaixonado e sedento como um beduíno, inclusive a luxúria dos ratos e baratas do subterrâneo que liga o Palácio dos Leões ao Xirizal do Oscar Frota.

Na Ópera Barroca Luís Augusto Cassas continua o mesmo, com uma vantagem: não precisou dar explicações a Marx, nem a Lao-Tsé, muito menos a Bota pra Moer. Padrinho de casamento do Louco com a Temperança, não deve mais quitanda e o seu fígado está de bem com o mundo e com a poesia da cidade-puta idolatrada. Lendo a obra vê-se logo que a filha é sua: tem a sua cara.

E, considerando-se que o poeta Cassas só não é abstêmio da poesia que procria, quem duvidar, freuda-se.



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Hildeberto Barbosa Filho

A lírica contemporânea, na sua formulação estética, não dispensa, muitas vezes, os conceitos de “apropriação”  e  de  “paródia” enquanto recursos ou estratégias discursivas, no sentido de reforçar a dimensão dialógica conatural à linguagem poética.

O lastro intertextual,  portanto,  se  torna  característico  do  texto moderno e contemporâneo ao mesmo tempo em que parece inevitável às suas múltiplas possibilidades de estruturação. Enfim, o texto poético se quer autônomo, mas não abdica, contudo, de se transmutar em ecoestilhaçado de textos alheios. Uma voz que se é enquanto voz única e inconfundível, mas uma voz que traz consigo, em ambivalências significativas, as identidades fragmentadas do outro.

Ora, é o que faz o poeta maranhense Luís Augusto Cassas na composição do  poema  Titanic-Boulogne:  A  Canção  de  Ana  e  Antônio, juntamente com mais dois outros títulos de sua lavra, Ópera Barroca e O Shopping de Deus & A Alma do Negócio, ambos de 1998.

Titanic-Boulogne convoca,  para  a  cena  poética,  a  história  e  o tema dos amantes que se separam e do amor que não se consuma, a partir do drama especial vivido pelo poeta Gonçalves Dias e Ana Amélia Vale. Ambientado na cidade de São Luís na segunda metade do século XIX, o poema alegoriza, no seu intercurso de vozes poéticas reaproveitadas, os contornos daquela tragédia amorosa.

Como se sabe, ao poeta romântico foi negada a mão de Ana Amélia em função do preconceito de cor. Desiludido, o poeta viaja para o Rio de Janeiro e se casa com Olímpia Costa. Ana Amélia, por sua vez, desposa Domingos Porto. Tempos mais tarde, em Portugal, Antônio reencontra Ana e o amor reprimido volta a transbordar. É a época em que vem a lume o extraordinário poema Ainda uma vez — Adeus. Finalmente, em 1864, o veleiro Ville de Boulogne, em que Gonçalves Dias voltava para São Luís, naufraga e o poeta morre aos 41 anos de idade.

A tragédia, vivida no plano afetivo, adquire, assim, uma imponderável dimensão real. A particularidade do drama romântico se universaliza pela via transfigurativa da visão poética. A história de amor e morte sai, portanto, do seu restrito território episódico para notabilizar-se enquanto metáfora das grandes histórias de amor. O poema de Cassas é também poema de Tristão, de Romeu, de Francesco, de Abelardo e de todo aquele que mergulha no mar da paixão amorosa.

Por isto mesmo, o  eu  poético,  para  além  de  constatar  a  experiência vivida (“estamos em pleno mar: o poeta Gonçalves Dias/promete à  Ana  e  às  tias/amá-la  acima  do  azar”),  reflete  sobre  sua  natureza  e singularidade,  como  se  pode  observar  na  palavra  da  Providência,  do sugestivo poema da página 63:


“Não existe fracasso ou êxito
na via do peregrino
Escusar-se ao seu destino
é que avilta o contrato
O amor consiste-se em buscá-lo
Vivê-lo é mor-travessia
Que importa à flor se o talo
desfez-se-lhe a companhia?”


Ao autor não escapa mesmo a sutil correspondência dos naufrágios, que envolvem os amantes na impossibilidade  de  plenamente viverem a realização do amor. Daí, a correlação entre o Boulogne e o Titanic, filtrado do filme de James Cameron. De outra parte, a fusão ambígua de passado e presente,  de  romantismo  e  pós-modernidade, materializada no espaço intertextual da dicção lírica.

Repassando Gonçalves Dias, Castro Alves, Oswald de Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e tantos outros que robustecem a nossa tradição poética, Luís Augusto Cassas, com Titanic-Boulogne ensaia, e com êxito, a sintaxe do poema monotemático, polifônico, paródico, a reescrever os sortilégios da experiência amorosa.

Sem escamotear sua inevitável componente trágica, o poeta como que sinaliza, para o leitor deste fim de milênio, que o Amor está aí. Está aí como a vida. Como o melhor da vida, pesar da agonia dos naufrágios.




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Miguel Sanches Neto


Ecoando Manuel Bandeira, as canções de Luís Augusto Cassas se localizam no beco, visto como habitat de gente humilde e mística que professa nas pedras do calçamento a sua peregrinação espiritual. O Beco de Bhagavad-Brita fica em São Luís do Maranhão e traz a espontaneidade de uma literatura que não descuida dos ritos populares. Trata-se de um longo canto, dividido em várias estações, enaltecendo este lugar sagrado que é, a um só tempo, espaço de comunicação com o povo simples da cidade e com a poesia, vivida misticamente.

Da religião, o poeta incorpora a entrega aos sentimentos, sendo todo o livro uma maneira de levar o leitor ao encontro da palavra que o fecha: coração. Sim. Cassas é um poeta da emoção, embora use várias conquistas estéticas,  que  se  entrega com fervor  a  este  objeto  de  adoração. Sentimos em todos os versos o pulsar acelerado do poeta, num permanente transe.





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Gerana Damulakis


Nono livro de poemas de Luís Augusto Cassas, Bhagavad-Brita: A Canção do Beco, é um verdadeiro jogo de símbolos dialéticos. Cassas  está  arrebatado  por  uma  dialética  profano/religiosa,  por  outra entre a pedra, símbolo da realidade, e o sono, estado em que o sonho é possível.

em Agradecimento Final do Discípulo depois da Iluminação com Pedrada no Cocuruto, uma conclusão que está longe de ser aquela que manda oferecer a outra face. Há “a doutrina da terra” porque o que se passou foi: “fragmentos da pedrada/incorporou-me o cimento/que a mente não soldava”. Esta talvez seja a parte do poema que encerra, de maneira mais contundente, a filosofia desta poética, antes de mais nada, de uma maturidade ímpar.

Assim é que “toda a missão do beco/é tornar-nos coração”. A lírica, neste casamento com a arte, fez-se poesia pura. Lapidar, cuidada, cultivada, a poesia  de  Cassas vem adquirindo uma força  e um estofo  só encontrado nos grandes poemas.



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Moacyr Scliar

Puro-sangue Cassas certamente  não  é — sua  brasilidade  não  o permitiria. Mas pura poesia isto ele é. Poesia pura, sim, explodindo em criatividade, atacando com ironia feroz. Em suma: era o vampiro de que estávamos precisando. O digno herdeiro da Antropofagia de 22.



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Jaci Bezerra

Às vezes um livro nos encontra, pleno e redondo, e a gente tem a sensação de que o tempo, por um momento, nos devolve o instante em que, num lugar qualquer da infância, descobrimos a alegria de abrir um livro pela primeira vez. Aquele momento no qual para sempre e mais um dia nos entregamos, irremediavelmente, à descoberta da leitura e à sua sucessão de maravilhas. A gente pensa que nunca mais esse acontecimento se repetirá, ao menos com a mesma intensidade.

E, de fato, à medida que amadurecemos, se torna cada vez mais raro  a  gente  descobrir um livro capaz de nos devolver com a mesma intensidade os sortilégios e os encantos da infância e da mocidade.

Por tudo isso é bom para mim dizer que o seu livro, Em Nome do Filho, renovou nos meus dias de hoje a alegria e a gula do menino e aprendiz de leitor que fui em dias  antigos, por tudo que nele  é  linguagem  nova,  invenções,  descobertas,  alta  poesia  e  celebração.  Livro impregnado do que é  humano  e  fraterno.  E, bem mais do  que  isso, sendo um ato e um gesto de liturgia do ser e da palavra em louvor de cidade amada e venerada pelo poeta, para além do tempo é um canto em louvor da vida e do homem.

Inclusive de exortação aos indiferentes e aos omissos.

Daí por que nele tudo é belo e límpido, impregnado de beleza e manchado de infância e tempo, como se a poesia em você fosse o que é e realmente parece ter sido sempre: ao mesmo tempo ato de criação e ressurreição.

Sob esse aspecto, o mais participante de todos os livros, porque tem o dom de nos encantar e comover, inclusive o de nos fazer entender e ver, de maneira nova, coisas e tempos novos e antigos, além de nos ensinar a  sermos  fraternos e  solidários, como entenderão  todos aqueles que abrindo o seu  livro escutarem esse rumor de  fonte que, mesmo depois de fechado, ressoa em nosso coração e em nossa lembrança.






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Monja Coen

Invocando a cura  da  cidade,  do  povo,  das  casas,  das  ruas,  Luís Augusto Cassas desperta em nós a ternura simples e profunda de amar e cuidar, com o mesmo carinho, as pedras e o coração.

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Leonardo Boff

Esta obra poética de Luís Augusto Cassas é originalíssima!  Fala do Evangelho como boa notícia, usando dois códigos só possíveis em nosso tempo: o código do inconsciente coletivo, onde vivem os grandes arquétipos que são os sonhos ancestrais da humanidade; e o código da astrologia, que fala das Eras de Peixes e de Aquário, este também um código dos grandes símbolos arquetípicos da humanidade.

Quando se fala de peixes, não se pensa em peixes, mas no seu significado simbólico. Peixes está no lugar do espírito de doação irrestrita, do amor incondicional e da compaixão, espírito este que encontrou no Cristo da fé sua suprema expressão.

Agora estamos  deixando  Peixes,  sem  perder  nada  de  seu  valor perene. Entramos em Aquário, o repositório de todas as águas, aquelas que tudo geraram e de onde veio também a vida. A vida quer mais vida. Por isso Aquário representa a solidariedade universal, caminho que leva à plena realização o processo da individuação humana. Unindo Peixes com Aquário, encontramos aquilo que Luís Augusto chama, com razão, de “a revolução da compaixão”. É o tempo a se inaugurar.

Sua  poesia  e  suas  metáforas  devem  ser  entendidas  neste  transfundo  mítico-simbólico-arquetípico.  A  mensagem  nasce  da  ecologia profunda e  espiritual: “agora dai  notícia  ao povo / quem não assumir o  lado  peixe  / não nascerá de novo”. Num outro momento, interpela: “lavai as águas humanos / santificai o profano / seremos o que sempre somos / gotas do mesmo oceano”. Ponto alto de sua produção poética é seguramente o  Elogio  da  Delicadeza: “Onde encontrá-la?  /  Está não estando / — cuidando dos filhos — /(…) com suas mãos de fada / jamais nos fascina: / alivia-nos a queda / reenvia-nos pra cima”. O sonho final deste evangelho se traduz nesta conclamação: “afogai em lágrimas / os sonhos de guerra / transmutando em água / o sangue da terra / desfraldai às eras / a terra prometida / com o sal da terra / e a água da vida”.

Seu discurso poético revelando universalidade vem revestido com os peixes, as águas, os rios e o universo ecológico do Maranhão, conferindo especial singularidade ao seu texto, conjugando, com felicidade, o local com o global.



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Frei Betto

Não sei se louvo aqui o talento poético de Luís Augusto Cassas, evidente nessas páginas, ou se assumo a postura reverencial de quem se depara com um novo salmista.

Evangelho dos Peixes para a Ceia de Aquário é uma obra  de profundo vigor literário e qualidade estética primorosa. O autor literalmente nos convida a um mergulho nas  raízes maranhenses que cada um de nós traz dentro de si: “que o homem / peixe é / na enchente de sua fé”.

Se o poeta-salmista assume aqui que a sua “profissão é ser peixe”, na  precisão  do  verbo  ele  resume,  como  toda  boa  poesia,  seu  intuito, como se  imbuído,  não  de uma missão, mas de uma vocação  inelutável que brota da mais primeva saudação: “Minha profissão é ser peixe: nadar nas águas do inconsciente coletivo / fazer emergir a compaixão”.

O dizer do poeta é sempre recorrente. Como se o exclamar trouxesse toda suficiência do falar. Então, as palavras tornam-se pedras cuidadosamente lapidadas, de modo a revelar tão somente o brilho de seus significados, sem fraseamento perdulário, nem as amarras da razão a impedir voos. “meu nome é cristo-lampião / do sertão da dor / vingança: fazer o bem / e semear o amor”.

Eis um livro-manifesto, um hino à vida, sem concessões à rima fácil ou aos jargões que traem a identidade poética. “Irmãos do planeta / vençam a correnteza: / antes que a vida crie / fundo de combate à tristeza / salvem a natureza / assim seja”.

Luís Augusto Cassas demonstra, neste aquário de preciosidades, ter atingido a maturidade literária, sem se deixar levar pelo formalismo em voga dos que nada têm a dizer e pensam que as palavras foram feitas para ter som e não sentido.

“Evangelho” é o título  apropriado  para  essa  salmodia.  Significa boa nova. Aqui, a novidade é ótima. E salutar.



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Paulo Urban



Costumo  dizer,  como  psicoterapeuta  do  encantamento,  que  os mitos só têm sentido quando podem ser sentidos. Afinal, de que valeria toda  a  mitologia  universal  se  os  mitos  não  espelhassem  sempre uma nova possibilidade de experiência da alma humana?

De todos os heróis, digo ainda, o mais completo deles são os poetas, desde que verdadeiros, como é o caso de Cassas. Poetas assim, superiores nos dizeres de Pessoa, são pura hybris, posto que vibram a divina obsessão  de  responder  ao  chamado  de  sua  própria  natureza,  que  os obriga a romper a dimensão do métron, a não caber nas próprias linhas, a transformar a ordem das coisas e penetrar puros como crianças nos mistérios insondáveis, buscando aquele quê de imoralidade inerente a toda transgressão possível, de modo a  libertar  a alma dos grilhões de todo preconceito e nos elevar em suas asas ao voo libertário do mergulho em direção ao numinoso arquétipo da poesia.

Mais que heróis, os poetas são p(r)o(f)etas; sabem como ninguém ouvir a voz do daimon conselheiro, e cumprem vislumbrar paisagens além dos horizontes, para então contar aos homens o que nos espera no transcorrer dessa nossa história anímica. Os poetas vivem, pois, a perscrutar o interdito, a penetrar no Mistério, e, antevendo os raios da aurora  de uma Nova  Consciência,  cantam  em  versonância com a grande orquestração divina.

Se cada um de  nós  traz  uma  missão  nesta  vida,  a  do  poeta  é  a de se projetar no silêncio dos abismos e atirar-se de alma em profusão na busca dos segredos do amor e da dor, da luz e das trevas. Exceção entre os mortais, os poetas ousam penetrar no mais profundo Hades, franqueados que são por sua própria arte e movidos pelo quê de amor divino que faz dedilhar a lira de seu próprio coração.

Neste particular, A Mulher que Matou Ana Paula Usher é, sobretudo, uma trágica história de amor. Mas é, ao mesmo tempo, uma tragédia de final feliz em que o poeta, morto várias vezes em sua honesta condição egóica,  encontra-se,  ao final  de uma grande  jornada  arquetípica,  liberto  do  veneno  das  paixões  por  tê-las  experimentado  até  a última gota. Com isso, percebe-se transformado pelo fogo da revelação divina, que, embora capaz de nos fulminar em todos os sentidos, nos permite ressuscitar na Luz do espírito, diga-se de passagem, permeada em cada uma das entrelinhas que faz brilhar de amorosidade incondicional a essência desta Obra.

A senha deste opúsculo magistral de poesia alquímica está guardada em sua Iniciação à Luz pelo Verso e pelo Pão; são as palavras do Grande Arcanjo que, à Miguel, abençoa nosso poeterói com as asas do rigor e do amor e o convoca a dissipar de sua vida toda a ilusão pela força de sua luminosa espada, ainda que preciso seja sacrificar-se por esta causa.

E Cassas cumpre bem o seu papel de modo a alegrar seus anjos protetores, mas não sem antes despertar a inveja admirável dos deuses que, por capricho, o condenam ao sofrimento insólito de, tendo encontrado nesta vida a sua esposa alquímica, experimentar a profunda dor de concluir ser este amor humano de todo impraticável e impossível. Sim, a primeira vingança dos deuses contra seus heróis mais ousados, contra os poetas mais capazes, desses que insistem em melhorar a Obra-prima,  é  simplesmente  a  solidão,  prerrogativa  dos  raros  que  chegam perto do cume olímpico das montanhas.

Em A Mulher que Matou Ana Paula Usher,  Cassas  viaja  por mitos que à Homero enxergou, deslinda os segredos de uma paixão que à Camões experimentou, resgata das mãos da morte a própria alma à Orpheu, e alcança à Ulisses a utópica Ítaca dos que se sabem peregrinos de si mesmos, mas tudo isso não sem entregar aos seus leitores a essência do drama da existência humana (está lá, na poesia que dá nome a esta Obra), escrita à moda de um São Paulo enlouquecido pelo amor do Cristo, banhado na Luz da Grande Consciência, e que humildemente, já caído do cavalo, convida cada um de seus leitores a aprender de uma vez por todas a principal lição da vida, razão pela qual estamos/somos todos entes viventes e encarnados.

Redestilando o poemextrato várias vezes na retorta: o poetalquimista Cassas encontrou na paixão humana sua matéria-prima, e compôs a partir dela esta sua Obra-prima do amor divino. Mas cuidado! Esta leitura pode nos matar, e ainda assim, nos iluminar de Verdade!

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Lêdo Ivo

A  poesia  como  arte  de  fazer  poemas,  registro  de  uma  visão  do mundo,  espelho  de  condição humana e uso supremo da linguagem, pulsa neste O Filho Pródigo: Um Poema de Luz e Sombra,  de  Luís Augusto Cassas.

Arte da língua e da linguagem, ela, a poesia, é sempre o estuário de uma experiência pessoal e intransferível. Assim, todo poema decorre de uma circunstância, como estatui Goethe, o que significa a emergência e a presença de um timbre autobiográfico. Num poeta, a biografia e a antibiografia estão sempre juntas, quer quando ele exprime claramente a sua vida pessoal, quer quando recorre a máscaras e escondimentos, tornando-se uma metáfora de si mesmo. Mas o que deve importar, realçando o acento íntimo ou projetando o empenho de impersonalização e despersonalização, é o resultado: a experiência tornada linguagem poética e a realidade convertida em imaginação.


Neste pungente e desdobrado poema longo de Luís Augusto Cassas, a experiência pessoal oferece ao leitor a sua alta pulsão e inequívoca tensão. É um cântico espiritual, uma interrogação ao divino. O poeta celebra a morte de seu pai, e o sentimento de perda justifica o seu canto, em cujos versos ressoam as notas de uma marcha fúnebre, as palavras de um sombrio cantochão. A densa subjetividade que permeia o poema se transmuda na sua razão artística e estética. A transcrição de uma dor pessoal tornada emoção comove aquele que está do outro lado do rio: o leitor.

Esta poesia de Luís Augusto Cassas, coabitada pela sombra e pela luz,  é  ao mesmo tempo um regresso  à  casa paterna viva na memória e erodida pelo tempo e pela morte, e uma incursão em uma luminosa e perene morada que está no passado e no futuro — esta poesia, atravessada por um sopro cosmológico, ora ostenta a linguagem faustosa e misteriosa de um ato litúrgico, de uma prece sibilina, ora se retrai e contrai numa inteira nudez monacal. É a nudez do filho pródigo, que volta ao lar paterno despojado de tudo, mas enriquecido pela experiência da amargura e da decepção — e o seu regresso se abre no horizonte como a promessa de uma nova esperança, de uma redenção.

“Caminho vivo entre mortos
Caminho morto entre vivos
Mas onde fui ferido
tornei-me mais reluzido”

Uma ferida de luz! Uma operação mística: nesta quadra em redondilha menor vibra o itinerário espiritual do poeta, sustentado por uma litania de alto teor religioso, de contundente carga de confessionalidade e memorialidade.


Na poesia brasileira — especialmente no território tão pouco visitado da poesia de natureza meditativa e reflexiva, voltada para a transcendência — o maranhense Luís  Augusto  Cassas  ocupa um lugar  de inconfundível relevo. A sombra e a luz regem, simultâneas, a sua partida e o seu regresso: o seu estar no mundo e a busca já tornada resposta, com a descoberta e o encontro de si mesmo.


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Rossini Correa


Decifrar  o  enigma  e  proceder  à  construção  de  sentido  para  si, com o outro, na vida do mundo e entre o infinito do cosmos — eis a desafiante tarefa que aguarda, segundo a segundo, a condição humana. O nada, a causa, a necessidade, o acaso, o tempo e a morte são cartas do cortante baralho das perplexidades do Homem que, sem escolha, é instado  a  resolver  a equação de tudo na voragem da  existência, nada bastante a sua precariedade de transitório oleiro, sempre a caminho das cinzas, frente ao sol e ao barro da esperança.

Mais do que bicho e menos do que Deus, como o definiu Aristóteles, o Homem aspira ao mais e tropeça no menos, sujeito de todas as grandezas e de todas as misérias, mais e menos consciente do caminho para a lucificação que o plenificará, em sintonia, em sinfonia com o universo. No & o da navalha, dançando sobre o abismo, este animal que pensa, sonha e crê, ora sucumbe ao vazio, ora constrói prodígios, navegado pela dor e cavalgando a alegria, na busca eterna e trôpega da sedutora e fugidia felicidade.

O  Homem,  este  animal  que  pensa,  sonha  e  crê,  estrangeiro  no mundo e despejado da certeza, desde sempre testemunha de si mesmo e das suas circunstâncias, tem levado à língua da percepção o sal do mito, da magia, da religião, da filosofia, da ciência e da holística, perseguindo  as poéticas que o expliquem.

Eis quando desponta no horizonte Luís Augusto Cassas, senhor de  absoluta fidelidade  à  poesia  como  sondagem  de  Ser,  com  o  livro  O Filho Pródigo: Um Poema de Luz e Sombra, cuja tensa polaridade logo revela que foi escrito com nervo e com sangue, flor de catarse nascida no chão de pedra do drama humano.

É que o poeta, em seu canto visceral de Filho, não se explica sem o seu Pai. E este, como metáfora advinda dos tempos axiais, enquanto elo, raiz e fonte, significa Deus, Rei, Chefe, Pátria e Superego, tornando o Pai princípio, causa e proteção, mas também o peso da montanha de  chumbo  a  carregar,  sob  o  dever  de, honrando  a  sua  autoridade, ser Ele, ser como Ele, ser mais do que Ele. E o código e a gramática e o paradigma, sem dúvida, são do Deus, do Rei, do Chefe, da Pátria e do Superego, tornando possível que a tese paterna encontre a antítese filial.

Com  a  posição  reverente  das  palmas  unidas,  o  livro  de  Luís Augusto Cassas constitui uma saudação a seu Pai, Raimundo Nonato Corrêa de Araújo Neto, a declarar que o poeta edificou pedra a pedra, vergalhão a vergalhão, cimento a cimento, a reconhecida síntese de que o Deus da Causa é  o Deus do  Efeito, unificados  Pai  e  Filho  na bem-aventurança sofrida do " o do tempo e da linha do horizonte. No além, da  água  e  do  espírito,  em  que  as  esferas  da  eternidade  e  do  infinito exprimem, amorosas, a Luz do Bem:

“Somos dois
diante da divindade
Pequenos sóis
da mesma verdade
Somos o só
e o mesmo
Somos o próprio
si mesmo
Que viemos fazer aqui
senão confraternizar-nos
com a vida e o seu longo elixir
no prazer de reencontrar-nos?
Entre tantos semelhantes
façamos o mundo girar
e como Zorba dançar
enquanto escoam os instantes
Eia juntos caminhemos
além do além do além
sob o amor frutifiquemos
aos pés do Supremo Bem!”

Só que a unidade pacificadora exigiu do poeta que expusesse as vísceras dos antecedentes, definidos pelos embates dos códigos, nuvens de desencontros e sombras de controvérsias. Eis os arquétipos de ambos, o Pai, a indicar o destino, e o Filho, a contestar o caminho; o Pai, senhor das palavras, e o Filho,  a  preferir  o  silêncio;  o  Pai,  a  ditar  a norma, e o  Filho,  a  transgredir em versos;  o  Pai,  fechado em copas,  e  o  Filho, faminto de afeto; o Pai, que também foi Filho, e o Filho, a vislumbrar só o Pai; senhor da floresta, o Pai, e o Filho, a querer só uma árvore: a do (im)possível. De onde o peso do Pai Totêmico:

“Antimilagre da vinha
Abraão levantava o braço
Isaac baixava o cachaço
mas o céu não intervinha
Narciso ao avesso
toldei a imagem
de insana viagem
de auto desprezo
Trágico engodo
servido c/ torresmo:
poderia ser todos
menos eu mesmo
E almoçávamos contritos
disfarçados do ocorrido
empanturrados de sol
mas de afeto subnutridos”

A narrativa cortante do poeta representa um parto de libertação, o renascimento para a alegria pelo hemisfério da dor: a da casa que não era lar, da vergonha como ama, da tristeza como cama, do regulamento contra o sentimento, do dever contra o prazer e da obediência contra a inocência. Nasceu daí o território demarcado: o Pai, fogo, luz e voo; o Filho, água, sombra e mergulho. O poeta precisou embaralhar as cartas místicas do enredo, para que o Pai-Luz e o Filho-Sombra pudessem ser o Pai-Sombra e o Filho-Luz e se reencontrassem, fundidos e unificados, plenificados e compreendidos, o círculo espiritual do Pai-Luz e do Filho-Luz, enfim, do Pai que foi Filho e do Filho que é Pai. Na fraternidade do fogo e da água reside a completude.

Eis que o Filho ascendeu à compreensão de que foi o juiz sem balanças justas do Pai, a quem, renascido, suplica que o abençoe. Alcançou, o Filho, a paragem da gratidão ao Pai que nele revive, por vislumbrá-lo, agora, como o humano Deus que, entre o erro e a verdade, entre o menos e o mais, afinal, entre o bicho e Deus, pode inspirá-lo no mundo. A translúcida comunicação do Pai-Filho ao Filho-Pai sugere a elevação ao mensageiro do verde que, ao retornar à sua ilha, deve conhecer a magia, a alta alquimia do semeador do sol, construtor da casa e artesão da obra.

É que o  contingente  sucumbiu  ao  absoluto.  E quando,  na  Luz, o  Filho  conquista  o  coração  do  Pai,  a  asa  do  dharma  revoga,  como revogou,  todo  o  peso  do  karma.  Luís Augusto Cassas,  primo-irmão do tempo, navegante das horas: ensaia, solfeja, canta. Canta alto, canta forte, em seu regime espiritual:
“Ó amor de Deus
flui flui flui flui
dentro do meu interior
com força e alegria
Ó poder do céu
rui rui rui rui
todos os obstáculos
e portões fechados
à conciliação e alegria”





Cecília Costa


Estou no Rio. É fim de abril. O sol beija a janela amorosamente. Mornos e benfazejos, os dias vividos já anunciam maio. Penso em Luís Augusto Cassas, homem solar do Maranhão, todo paixão, imaginação, carne e vísceras.

Penso  nele  e  em  sua  poesia  derramada,  vital.  Poesia  de um ser corajoso que é tão somente coração desnudado, delírio, espasmo, gozo, batida, ritmo louco.

Criação, ordem e caos. Penso em São Luís, o casario baixo, branco e  azulado,  os  sobrados,  as  esquinas,  os  telhados,  as  igrejas,  as  ruas  e ladeiras com nomes líricos. Nomes que lembram os que designavam as ruas de um Rio de outrora, perdido nas páginas do tempo. O Rio dos vice-reis.  De reis  e  imperadores.  Ou  imperatrizes  tristes,  traídas.  São Luís, Rio, cidades irmãs, cheias de luz, cidades que nos entontecem por serem abençoadas pela visão vertiginosa do mar, que chora e lava seus sortilégios e pecados.

Assim como as ruas de sua cidade natal, que mantêm a antiguidade  do  batismo,  Cassas também é um homem antigo,  ultrapassado, como ele mesmo diz, homem com o  terrível  estigma  de  transformar tudo o que toca, cheira, come, bebe ou sente em poesia. A vida, os  peixes, os frutos, as frutas, as ruas, os mendigos, os podres e ricos poderes, o lixo, o desencanto e o cântico do amor. Poeta até à medula, Cassas respira palavras. Sem medida,  luxuriosamente.  Gosta  de  extravagâncias. E escreve tudo o que reverbera nas profundezas de seu ser, sem temer o que é considerado prosaico ou banal, pois sabe que o banal, o hodierno, o comezinho, o cotidiano é rico e belo, por estar vivo. Pulsante. Fazer parte da misteriosa, enigmática trajetória humana na terra. Ser comestível. Alimento do corpo e da alma. Alma que a tudo se arrisca, embriagada de sol, lua, estrelas, horizontes, poentes. Alma de ilhéu que quer ser continente. Mundão vasto. Cosmos. Universo. Verso e reverso de cores, dores, odores, suores, orgasmos endoidecidos, viscerais, telúricos amores.

Estou  no  Rio  e penso em Cassas  e em seu  último  livro  de poesia,  Bacuri-Sushi: A Estética do Calor.  Ao  ler  os  versos,  reencontro o homem. O riso caloroso. O corpanzil, a cabeleira revolta e o imenso carinho  pelos  amigos.  O  prazer  de  comer,  embriagar-se  de  ilusões, novas paixões. Entranhas de mulheres. Vulvas. Ventres.

Cassas conta as loucuras que comete, ou cometeu, sempre rindo. Tem essa capacidade rara de rir de si mesmo. Sabe que vive em fantasias e desvarios. Que sempre vai fundo, no poço da vida, em busca de novos versos, sentimentos, êxtases. Viver é sempre perigoso. Consciente dos precipícios, o poeta vai  à  luta, pois porta a arma e  a bala de prata do verso, aquela que ama, sangra, mata e se mata, mas renasce na poesia. Maculando com púrpura e sombra das letras as páginas virgens.

O  bardo  maranhense  tem  um  credo.  Crê  no  sol  equatorial, crê na matéria  e na Virgem Maria. Crê no Espírito  Santo do povo. E crê na reencarnação do Verbo. Ao leitor incauto que quer entrar na selva abrasadora de sua poesia, ele faz um alerta. Cuidado! Ao penetrar  neste  país  deixe  a  alma  entreaberta,  quem  dorme  em  São  Luís acorda  poeta.  Triste  sina.  Os  poetas,  todos  sabemos,  são  benditos como os santos, mas também amaldiçoados como os loucos e visionários. Os videntes. Os alquimistas. Os que veem o invisível. O sexo das pedras, das nuvens e das 0 ores. O fundo do mar. Aqueles que ouvem o gemido do céu. E o decifram ou  traduzem,  sem  saber que estão  a decifrar o caminho do arco-íris, escavar o umbigo do mundo, abrir portas sem retorno.

Mulheres, quantas mulheres, na poesia de Cassas. Lençóis, quadris,  sereias,  haréns.  Coxas,  lábios,  nádegas,  espáduas  nuas.  Lagoas  e desertos. Vislumbre de um oásis florido que só viceja onde existem histórias,  fábulas,  versos.  Pois  apenas  a  mulher  presa  no  verso  é  eterna como estrela nacarada pendurada na Via Láctea.

Mulheres e gozos, comida, paladares, gostos. Bacuri, favos, camarão,  daiquiris,  ervas  e  evas,  línguas  e  sushis. Tudo se come na cidade do sol, a cidade dos prazeres. Feijoada, rapadura, cuscuz, carne de sol, chouriço, esfihas. Galinhas sacrificadas ao paladar. Fêmeas torturadas. Cidade luxuriosa e triste de perdas e silêncios, ruídos e alegrias. Babilônia moderna. Quem beber da água saberá na ilha da mulher mais alva desnudando  a  quilha.  Cidade  onde  corpos  lascivos  embalsamam  as mágoas e as feridas da sede da vida.

E São Luís também é cidade de bêbados, e todo bêbado tem um santo e acredita em milagres. Milagres somente possíveis na cidade sensual onde até a chuva cai em horizontal. Cidade que aluga horizontes. Vende auroras e mares infinitos. Cidade da preguiça e do lento  tecer dos dias. Da sesta e dos roncos. Dos guarás e das formigas vermelhas, que queimam a pele com sua picada venenosa.

Como  são  belos,  simples  e  comoventes,  os  retratos  falados, as  homenagens  às  personagens  da  cidade,  às  cantoras,  às  santas,  ao médico, ao poeta e ao bêbado santificado. As louvações a Vieira, Rita Ribeiro,  sabiás  em  lamparinas,  loucos  mortos  a  dançar  em  casuarinas. São fábulas, mitos, causos contados à beira da fogueira, como a de Magno, bêbado recuperado, com pinta de Barack Obama que recolhia em sua casa os embriagados do mundo. É singela a historieta sobre o doutor Odorico Amaral de Matos, que cura e vacina crianças, doentes e feridos com as 0 ores da piedade sangradas no peito.

Já  o que falar  das duas Marias, a  de  Jesus Carvalho e  a Aragão, uma a  pregar  a  luta  de  classes  e  a  outra  a  pregar  o amor face  a  face? Nada,  nada  mesmo.  Cassas  falou  tão  bem  que  o  importante  é  ler  o poema para deleitar o coração. O mesmo ocorrendo com os poemetos de contingência sobre Santa Almerinda e São José Francisco de Chagas, aquele que, como seu fraterno homônimo, amante da natureza, esculpe na carne do verso incendiários lírios. Leiam, leiam os poemas…

Expondo  suas  vísceras,  o  poeta  maranhense  conseguiu  o  que preconiza como arte maior na arte de versejar: colher a pura rosa dos abismos. Ou tirar mel do fel, na vigília  e no sono. Poesia, diz Cassas, é o incêndio da beleza. Com o sol e o sal do Maranhão no rosto, Luís Augusto  Cassas,  empunhando  quixotescamente  a  espada  do  verbo e  depondo  suas  máscaras  no  chão,  sonhou  um  novo  livro.  Cheio  de pecados e vertigens, alegorias, metáforas e pesadelos, faróis e fogueiras, viciados e puros, gênesis, evangelhos e apocalipses.

Com ele  soluçamos  a  palavra  amor  em  nossos  peitos  abafados, numa escura sala de cinema hoje inexistente. O da família. E nos redimimos. Eternizados em palavras. Cheios de saudades de São Luís e de seus poetas muy loucos.






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