Histórias politicamente (in)corretas de James Frederico

Uma escrita de impacto escancara violência urbana e desumanização do homem


James Frederico: “O banal e o clichê também estão no mundo e não podem ser ignorados”
James Frederico Rocha Coelho - arquivo pessoal



Francisco Perna Filho, Sinésio Dioliveira e Valdivino Braz


         
Para o escritor James Frederico Rocha Coelho, autor do livro de contos “Histórias Civilizadas”, recentemente lançado em Goiânia, só a parte morta da literatura, fora e dentro da academia, pode se negar a tratar de tabus. Ele sublinha, entretanto, que tratar somente de polêmicas e tabus é muito chato. Acentua que o banal, o clichê, também estão no mundo e não podem ser ignorados, devendo-se, pois, chamar a tudo e a todos para o palco. 

Em seus contos, paginados de temas impactantes, incluso o escabroso, James Frederico enfoca personagens acometidos e também acossados pela violência, e por aí vaza a ironia do título “Histórias Civilizadas”. Há, também, alegoria sobre um escritor, algo proustiano, e sua obsessiva criação de uma obra megalômana. Quanto a questões como a controversa reforma ortográfica e a polêmica do politicamente correto, James afirma que a primeira deve ser debatida porque “a língua é a marca do que a gente é”, sendo mutável dia a dia; e já o politicamente correto, segundo ele, além de chato — pois “não há cartilha para a vida” —, é um excremento.

Valdivino Braz (VB) — Cristovam Buarque, que escreveu uma orelha para “Histórias Civilizadas”, ressalta que a violência urbana brasileira, de tão banal, tornou-se rotineira e deixou de inspirar a literatura. E diz ainda que ficou difícil escrever sobre esse assunto. Como, então, a violência urbana inspirou a você, James Frederico? E houve alguma dificuldade ou desafio para que você tratasse deste tema, sem banalizar também a própria narrativa focada na violência urbana?

Talvez porque eu não consiga distinguir violências, como exemplo, a urbana brasileira ou a tribal africana ou a que submete ao sofrimento extremo os refugiados na Síria. Acredito que estava mais pessimista com o ser humano quando escrevi o livro, mas ainda acredito no mal atávico que está no DNA nosso, da raça, como acredito no DNA do bem também.

Recentemente lançado em Goiânia, o livro de contos traz temas impactantes, inclusos e escabrosos com foco em personagens castigados pela violênciaFrancisco Perna Filho (FP) — Ao concluir a leitura do seu livro de contos “Histórias Civilizadas”, percebemos a ironia que esse título traz e o mal-estar que ele nos provoca, quando põe a claro situações, embora ficcionais, tão próximas de nós. Para você, e aí complementando a pergunta do Braz, existem temas que são tabus, que não devem ser postos na Literatura?

Não, só a parte morta da literatura, fora e dentro da academia, pode se negar a tratar de tabus, também. É evidente que tratar somente de polêmicas e tabus é muito chato. O banal, o clichê, também estão no mundo, não dá pra ignorar – acredito que devemos chamar tudo e todos pro palco, o escroto, a fada madrinha, o honesto, o ingênuo, o ladrão, etc...

VB — Impera no Brasil um clima de medo, insegurança e impotência do cidadão, indefeso diante de tanta violência, crueldade e, pior ainda, corrupção policial, abuso de autoridade fardada, além de roubalheira e cinismo político, até nas esferas do poder público. Enquanto cidadão, qual a posição do escritor em face do execrável estado de coisas no Estado brasileiro?

Confesso que muito perplexo, mesmo na minha idade. Ainda estou naquela de quem foi pego de supetão e ainda não teve tempo de respirar, sentar e refletir. Isso pode parecer um tanto fraco, do ponto de vista de que o escritor mesmo que não queira pensa e critica a engrenagem social. Mas a essa altura, quando tanto foi escrito sobre nossa formação e de imaginar que a evolução de nossa sociedade com o tempo seria irremediável, também estou procurando resposta. A única coisa sobre esse assunto de que tenho certeza é de que nada é novidade quando se trata de roubar, exceto pela tecnologia. Agora, é novidade o comércio de tudo, incluindo Deus e as respectivas religiões e o caráter de cada um.

VB — Alguém poderá dizer que denunciar o problema da violência urbana, em âmbito literário, será uma forma de repeti-lo. Para além do impacto, “produzindo no leitor um verdadeiro terror retirado do cotidiano”, como sublinha Cristovam Buarque, a que serve ou servirá a literatura na repetição ou enfoque da problemática gerada pela violência urbana?

Sinceramente não me passou pela cabeça a que serviria, como ferramenta para melhorar ou denunciar, ou mesmo se serviria. Sou um escritor preguiçoso, e quando comecei a escrever esse livro, quando morava na Bahia, me incomodava muito e me chamava atenção o caderno do jornal A Tarde de Salvador que tratava da violência urbana, e as torturas medievais, em certos casos, eram fichinha perto que que acontecia ali de vez em quando, nas periferias. Mas algum tempo depois isso já não era apenas um tratado factual, foi se transformando também numa espécie de alegoria, do próprio ser humano, como eu o vejo.

FP — No conto “Luzeiro”, natural e sobrenatural se amalgamam, as fronteiras entre possível e impossível são abolidas, criando uma atmosfera romântica, de sonho e fuga. A literatura, para você, seria um alento, uma maneira de tentar recuperar aquilo que a realidade opressora nos tira/tirou?

Que ela é um alento, não tenho dúvida nenhuma, tanto para quem escreve quanto para quem ler. Não vejo que seja sacrifício escrever, talvez porque não tenha compromisso com isso e só escreva quando a vontade, de tão grande, transforma aquilo em prazer. O fato de ser preguiçoso para ler e escrever talvez não tenha permitido que eu tivesse experimentado essa dimensão do sacrifício no ato de escrever.

VB — O que você acha que diria o grego Platão (se por aqui estivesse) sobre a nossa atual República?

Antes de ouvir o que Platão diria, providenciaria uma conversa entre ele e um negro, pobre, veado e favelado brasileiro, um senador da nossa república, um jornalista comprado, um pastor escroto, uma puta que trabalha pra sobreviver e dar comida pro filho, um homem que toca uma obra pra acolher crianças abandonadas ali no Novo Mundo, e por aí vai...

Sinésio Dioliveira (SD) — O personagem Antônio Vieira do conto "Excreções" ganhou este nome aleatoriamente ou tem a ver com o padre Antônio Veira? Se tem, em que aspecto? O que acha dos sermões de Vieira?

Não, você me alertou para a coincidência. Os Sermões de Vieira são verdade e elegância literária misturadas. E essa elegância é de uma clareza superior e fala por si, do ponto de vista estético. Mas a alma dos Sermões está na ética, como pretendemos hoje.

SD — Na parte II do conto "Excreções", o narrador diz que Antônio Vieira "acordou às oito" e "foi quando sentiu as primeiras comichões nas mucosas das narinas". Esse trecho me lembrou "Metamorfose", de Franz Kafka: "Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso". Estou vendo coisa inexistente entre os dois textos?
Também estou sendo alertado agora, por você, pela semelhança. Pode ter sido uma repetição inconsciente, pois a minha fascinação por literatura é mais forte em Rubião, Kafka, Gabriel García Márquez e Borges.

FP — Para muitos escritores, escrever contos seria uma preparação para uma escrita mais longa, no caso o romance. Você, antes de escrever “História Civilizadas” (2015), escreveu o romance “Quarto 16” (1989). Os contos vieram primeiro, ficaram adormecidos, ou a escrita do romance deu-se em primeiro lugar? Fale-nos um pouco sobre o seu processo criativo.

Quarto 16 é uma novela e veio de supetão e à época eu era visivelmente um desqualificado para escrever, do ponto de vista do conhecimento da língua, mas hoje, olhando de longe, no tempo, tenho certeza que literatura é percepção e o fato humano da existência de cada um no mundo, antes de qualquer teoria da literatura ou gramática. Hoje estou atrás de um exemplar de Quarto 16 para reescrever e reeditar, pois não guardei em casa nenhum exemplar.

SD - Onde James Frederico Rocha Coelho bebe em suas leituras de contistas brasileiros? Quem você apontaria como seu predileto?

Quando falo de conto lembro de Machado de Assis, Poe, Caio Fernando Abreu e Borges, além de Rubião, o francês Guy de Maupassant, que escreveu Bola de Sebo, e Rosa, de Sagarana, meu livro de cabeceira e minha passagem para o sertão, toda vez que quero voltar lá.

FP — O conto que fecha o livro, “O Último”, narrado em primeira pessoa, fala de memória, amizade e ausência: a história de um homem e a sua obsessão pela escrita, pela obra perfeita, acabada, tendo apenas o primo como leitor.  Para você, a Literatura liberta ou aprisiona? Que tipo de leitor você persegue?

O Último é uma alegoria do fato deprimente de que a gente passa, mas também do fato alegre que comprovadamente diz que em algum lugar ou em alguém vai permanecer um pedaço da gente, por mais minúsculo que seja; é aquela história do Deus das pequenas coisas.

VB — Além do papel em que ele escreve, até onde se estende o papel social do escritor? Em que a literatura pode contribuir para estimular vida melhor em sociedade? Ou seja, a literatura muda alguma coisa?

Muda muito, humaniza, assim como o cinema, a música, o sexo alegre – existe o sexo triste – o álcool, a amizade, e por aí vai, mas não acredito em papel social do escritor como fato consumado. O escritor e sua obra são um incidente, para o bem ou para o mal. Literatura engajada é traição do escritor a ele mesmo. A literatura de alguém será o que deve ser e se completará nas leituras, podendo ou não reforçar ou anular esse papel social do escritor a que você se referiu.

SD — O prosador é também um "fingidor" como diz Fernando Pessoa em seu poema "Autopsicografia" em relação ao poeta? Você é um leitor de poesia?



Completamente. Sinceramente não vejo muita distância entre Máquina do Mundo e Sorôco. Leio pouco poesia, mas Fernando Pessoa foi a primeira e única experiência. Falo única no sentido de especial. Admiro e sinto muita emoção com Quintana e Manoel de Barros. Dos estrangeiros não li nada, porque tenho uma desconfiança muito grande das traduções, de qualquer tradução.


VB — Enquanto escritor, como você avalia questões pouco debatidas como a controversa Reforma Ortográfica e também a polêmica do Politicamente Correto na literatura?

A Reforma Ortográfica deve ser debatida, porque sabemos a marca da língua em nossa construção, no que a gente é, mas sem purismos, porque até na língua tudo muda, dia após dia. O Politicamente Correto é chato e é uma m..., e essa minha opinião é porque acredito que não tem cartilha pra vida, que a vida é o palco a que me referi anteriormente, que deve ter de tudo, do escroque ao religioso moralista e convicto, do herói ao mentiroso traiçoeiro, da beata à puta, do abstêmio ao bêbado, etc.

*Esta Entrevista, originalmente, foi publicada no Jornal Opção de Goiânia: www.jornalopcao.com.br

*
A MÍSTICA POÉTICA DE ADALBERTO DE QUEIROZ

Adalberto Queiroz - arquivo pessoal


A Revista Banzeiro traz, nesta edição,  uma SELETA de POEMAS do Escritor Adalberto De Queiroz. Poeta vocacionado, estudioso e pesquisador. Adalberto é natural de Goiânia, formado em Jornalismo pela UFG, cursou Pós-graduação em Marketing, FGV,  e Continuing Education em Medieval Studies, UNM - New Mexico (non-degree). Atualmente reside em Goiânia, onde é Empresário. Em 1985, lançou “Frágil Armação (Poemas)” e, desde 2002, publica regularmente blogs com temas culturais, religiosos e filosóficos. Quase 30 anos depois, voltou a publicar um livro, lançado em novembro de 2014, intitulado “Cadernos de Sizenando” (poemas & crônicas), do qual fazem parte alguns dos poemas desta seleta. 
Young Woman with a Pink Attributed to Hans Memling
POR VEZES PENSO EM TI
(Inédito em livro)


Ao pensar no Teu Sacrifício 
repito: não há suplício igual
Dessa dor - símile, impingida. 

[HḠentanto, uma alegria 

Em tamanha dor sentida.]

Mesmo o pagão, o incréu

reconhece a paga recebida.
(Se as escamas dos olhos
caem; se do cavalo é descido.)

Incompreensão é um lenço

embebido em vinagre sabem-no:
- os que o Cordeiro mutilaram.
- Longe e calmo o Verbo os ouve.

O clamor na Cruz emitido - 

o Filho de Deus a tudo tolera
para que ao fim o homem viva.

Morte e vida; céus rasgados

de alto a baixo feito seda.
O silêncio do sepulcro aberto
Foi a coda de tal infâmia finda.

Ressuscitou! Disseram mulheres

e o mundo as seguiu, em páscoa –
passagem que imensa luz assume.

Do cordeiro ao homem une – 

essa dor: ata Deus e criatura caída. 
[Há na dor uma contrapartida:
Tu e Eu atados em fio de Vida.]
Fonte: blogs.privet.ru/



MODERNA AMÉLIA


Sei chorar antiquado
mas se lembro, disfarço;
sei açucarar o afeto
quando quero -
sei dos meus direitos
e conheço os do estado
civil que nos une.
Por isso, quando tu foges
para um bar ou quando tardas - 
bato o pé, exijo atos
de um maduro disfarce.

Dos "Cadernos de Sizenando", Kelps, 2014.

Fonte: covermyfb.com


A SOPA
Para Mariza Pessoa.


A sopa que desanda, helàs!
Nessa tarde chuvosa e fria
Lembra, amiga, onde estás.
Quanto estamos, todos,
De lágrimas, neste vale
Inundados e transidos.

Grave e triste a tarde cai,

Como monte cai
E desata a solidão da carne,
As angústias d´alma,
Assim como outrora
Pronunciava o vate.

Grave e dolorosa a tarde cai

E tombamos juntos
Como legumes na panela caem.

Dura selva e pesado o século ensaiam

Sua dureza de pedra e aço e torpedos:
E corpos e bombas e pessoas desmaiam
E seu torpor de tempo, embriagados.

E toda a gente se ri de nossos ais...


Só um braço é justo e certo e próximo

Senhora Piedade, mãe amantíssima.
Eis que nos dá a mão e adoça a alma.
Esta alma gentil, presa de ardor
Sussura uma balada, calma, calma...


Virgin and Child
Follower of Hans Memling


ENTRE PALAVRAS



cavando o mineral do verso claro
e nas correntes da história
de funda bateia armado - 
nas minas, à meia distância
entre a pepita e o veio
comum da fala
entre palavras, Sizenando.
Não estás só, nas Minas
Gerais de teus avoengos
Contra os mitos em vão
Carregas o astrolábio.
Entre palavras, um só 
Sem eldorado à vista -
uivando feito um cão.
Entre palavras, Sizenando
e tua surda luta -
procura mais vã.
Ao cabo, o cadinho
dar-te-á, a duras penas,
só cristal de rocha
e rutil - pó e solidão.
*****
De "Cadernos de Sizenando, vol. II".

Fonte: factroom.ru

POESIA FALADA



Palavra à noite cantada 
co' ́a manhã se desfaz 
em palavra granulada: 
matinal achocolatado
já não sente a poesia 
tal qual ressoara clara 
na madrugada alta
- Et pourtant, fala! 
Será a escrita fogo fátuo? 
marca gravada em gado, 
ou cardo na sua pata?
(O poeta-boi rumina, 
mas não é vaca sagrada).
Estrela cadente, cabala: 
meros fogos de artifício 
ruidosos melros da fala: 
na calma manhã se calam.
(...)
*****
Dos "Cadernos de Sizenando", vol.I, 2014.

cabala


Poema (inédito)
                - a Pat Cegan.


Eu escrevo

O que lês.
Tu lês –
O que
Escrevo?

(Entendes tu

O que leio?)

Entendo Tu -

Eu vivo
Tua vida;
Vives Tu
Como Eu?
Feliz és.

Serei Eu -

Réu Teu?
Decifra-me,
Decifro-Te.
- Tu e Eu.

O POETA RUMINA


boi no pasto coletivo

palavras alimentando 
ideias
e a revelação - 
seu sal diario
às sete, às nove - 
oração das horas abertas: 
- sonha acordado 
sua lira tangendo
só e pensativo vai pela estrada:
boi amordaçado - 
pelos demais se imola
o poeta - boi
rumina
mas não é 
vaca sagrada.

Adalberto Queiroz,"Frágil Armação"(1985).

Poeta Riner Maria Rilke


NU
UN

de toda veste despido
com a roupa da alma se vê -
de toda máscara
de toda persona
de toda leitura
de todo orgulho
rompido;
destituído -
Despiram-no
banharam-no
para a passagem.
Quintana fraternalmente o conduz -
"Quanto mais nu, mais Tu!"
Ouve a voz antiga de Georges
(Bernanos)
no leito de morte:
- “Pai, agora somos
só nós dois...”
./.


Mário Quintana - Fonte: ocafe.com.br

FUGITIVA,
(Poema Inédito em Livro*)


a poesia nos escapa
a poesia feito Albertina,
a fugitiva.

"A poesia fugiu

do mundo..."*

Augusto vaticina.

Ah, poesia, tu, menina
que me escapas...
deixando um bilhete
na porta e essa dor
que bate na aorta.
A poesia me escapa -
entanto, não é escape.
Restam os neons,
os vidrilhos raros,
os posts e curtidas
precoces, rápidas.

Os homens ainda

e mais apressados -
mesquinhos, tristes;
não há mais, Augusto,
os fios telegráficos.

A poesia fez

a mala escondida
a poesia disse:
- fui, novamente -
e deixa o mundo
mais vazio;
só a volúpia
arde nessa
hora aflita
em nossa boca
sedenta de poesia.

*****
Dos Cadernos de Sizenando, vol.II, 2015 – inédito em livro
(*)Cit. A poema de Augusto F. Schmidt “A poesia fugiu do mundo”.


Marcel Proust

A TARDE É DA TANAJURA


Apesar de a cigarra
Advogar que não, que não…
Zum, zum, zum - ela jura
Suas penas sem fim.

Dois pássaros passam

voando céleres;
Nenhum pousa na minha mão.
Um é pequeno e amarelo:
Por certo, o rouxinol
Do imperador:
Ai, que dor...aikido!


Salta uma rã

Na perna da moça
Nem por isso é sua caça.

É verde a rãzinha

[Por certo, Quintana
Já a encontrara]:
Nosso Bem
Quisera
Igual-
zim..
Igualzim,
fura-bolo-
Seu
min-
gui
m
...
Dos Cadernos de Sizenando, vol.I, 2014.


Xamã


ÉS SONHOS


Em igual condição sonha todo Ser

No picadeiro, o ilusionista e o equilibrista -
o poeta e a debutante, a costureirinha e a atriz:
- tal qual adolescente só, em busca do prazer
Sonham, sonham.

Sonham a bailarina e o brigadista

o bêbado, o juiz sóbrio - e até mesmo:
- sonham o astronauta e o tratorista;
o veterano de guerra alucinado...

Porém a cor no sonho

[que se nega nos compêndios]
- desenha em gelo:
ácido, pó, no absinto do poeta
do catador de lixo: fazenda antiga.

Do sono se diz sonho à vista:

“Com o sono, eu sonho...”
Os outros vão contigo, ó visionário!

E cada sonho com seu qual:

- determinou o xamã antigo:
Que não haverá traço do rival.
“Com o sono eu sonho...
Os outros vão realizando
O que sonhei.”
*****
De Cadernos de Sizenando, vol.I, 2014.
A Revista Banzeiro, após uma breve pausa, retoma suas atividades para apresentar o conto Nós Amamos Maria, do Escritor James Frederico Rocha Coelho. Este conto faz parte do livro de contos  História Civilizadas - que será lançado dia 25 de setembro, sexta feira, às 20h, na Biblioteca do Sesc Centro - Rua 15, esquina com a Rua 19. James Frederico nasceu em Carolina, Maranhão, em 1960; em 1989, publicou o Romance Quarto 16


Editora América - Ilustrações de Polly Duarte



 NÓS AMAMOS MARIA




Anos depois estavam ali os três, na confluência de mar e água doce, no litoral norte, mais duas crianças, de seis e quatro anos, fazendo um turismo barato mas feliz, e como não se podia chamar aquilo de casal, as pessoas que se aproximavam, sempre e quase naturalmente entendiam se tratar de um casal e mais um cunhado, ou amigo, ou colega de trabalho. Certo é que estavam juntos há doze anos e nem as descobertas recíprocas do triângulo, as dificuldades de dinheiro ou o tédio eventual comprometeram o amor que os dois sentiam por Maria e ela por eles. Entre os dois, Ênio e João, no entanto, só uma amizade respeitosa e a admiração também recíproca por terem aceitado viver daquele modo.

Começou quando muito tempo antes Ênio e Maria desceram quinze andares pelas escadas de um prédio, numa sexta-feira perto da meia noite, depois de se esfalfarem nos aparelhos da academia que funcionava na cobertura, ele para emagrecer, ela pra definir um corpo que já era definido por natureza, excesso de vaidade somente, ele diria anos  depois. Estavam juntos há um mês, mas mal sabiam o nome um do outro quando Maria convidou-o para almoçar com ela no sábado, no apartamento dela.

Quando Ênio chegou, chegara antes porque tomariam uns drinques ou umas cervejas, deparou-se com o outro na cozinha preparando o peixe defumado. Apresentados, ele estranhou a situação, mas permaneceu calado e as conversas fluíram para a própria experiência de cada um na academia, as dificuldades em alugar um imóvel, a política, um pouco de música, pois estavam ouvindo boas músicas, mas ninguém perguntou e ninguém comentou quem era João.

Depois do almoço, quando João desapareceu quarto a dentro e Ênio associou tamanha intimidade a alguém que fosse irmão, primo ou um velho amigo que morasse com Maria há anos, Maria, deitada no sofá, pés pra cima, contou que estavam juntos há anos, e que tinha por João uma admiração e um sentimento que igual só fora despertado nela por ele, Ênio. Por educação, Ênio tomou mais um ou dois drinques e uma cerveja ao final, para matar o calor, e confuso decidiu que tinha que ir embora, precisava sair dali para entender alguma coisa, o mínimo que fosse.

Dali por diante continuou a encontrar Maria na academia, a sair juntos vez em quando, de dia ou na noite, amando-se cada vez mais, mas calados com relação àquele sábado em que almoçaram juntos no apartamento dela.

Aos poucos entre Ênio e Maria foi surgindo uma cumplicidade que precisava mais do que corpo e sexo. Procuraram juntos o imóvel que ele ia comprar, acompanharam de perto a mãe dele quando viera à cidade para se tratar de uma doença, foram a duas creches onde ela fazia uma busca meticulosa de uma criança para adotar, mas voltar ao apartamento dela ele não voltara.

A Maria que havia por debaixo daquele corpo quase musculoso tratava Ênio com uma candura que ele nunca encontrara em ninguém, nem na própria mãe, mas brigavam às vezes quando ela exigia que ele buscasse o que queria com mais determinação e disciplina, e aquilo para ele era muito chato e o irritava ao extremo, pois ela sabia que não estavam juntos e nunca ficariam juntos e nem ele mesmo sabia porque insistiam naquilo quando sabia que ela morava com João, que placidamente, qual um corno budista, se é que isso existe, compreendia perfeitamente que eles mantivessem aquele relacionamento.

Agora, olhando para as duas crianças remexendo na areia e o mar azul belíssimo a perder de vista, compreendia ou chegava perto de compreender que eles dois, Maria e João, não fizeram muita coisa para atraí-lo para eles, apenas viveram com um amor calado e simples, lá deles, levando a vida sabendo dos desejos de melhorar e deixando claro, sem palavras porém, porque essas são perigosas, que estavam expostos à vida tão quanto uma planta do mato, que sabe que terá que seguir em frente, faça chuva ou faça sol, e que não obstante isso, viverá, procurando ser feliz a seu modo, porque não tem escolha.

O ciúme fez parte a certa altura, até João ser atropelado e Maria pedir socorro, porque tinha seu dia a dia, seu trabalho e precisava que alguém, pelo menos duas vezes por semana ficasse ali, acompanhando João no seu apartamento, ainda imobilizado e tomando remédios com hora certa. Foi naquela experiência que começou sua imersão na vida daqueles dois seres humanos que cada vez mais penetravam a sua, sem que fizessem esforço algum pra isso. Ela uma mistura de duas mulheres bíblicas, Débora e Ester, dona de casa e juíza, ele um homem simplório e trabalhador, que sonhava em ter filhos, mas era estéril. Sem que fosse dito uma palavra sequer, agressiva ou violenta, o ciúme perdera o sentido, pois os projetos sobravam e aos poucos tomavam a frente do palco e invadiam o camarim e se tornavam a iluminação, o som, a marcação e até mesmo a divulgação do teatro dos três – um filho que passou a ser desejo comum do trisal, os primeiros dias que Ênio dormiu no apartamento deles, as crises pontuais de depressão que curava na cozinha deles, preparando comidas suas, de sua terra, que mostrava com orgulho para os dois.

Ênio não podia se lembrar exatamente do dia em que falaram da economia de um apartamento único para os três, seria um apartamento maior e mais confortável mas com um custo muito menor e mais de acordo com a renda de cada um deles.

No apartamento grande, à véspera de fins de semana ou algum feriado, ouviam música sentados um pouco largados nas imensas cadeiras de descanso do terraço – sim, agora tinham apartamento de terraço. O sexo também não era uma complicação, embora tivessem sido muito sérios os desencontros do começo, pois o desejo pode capturar a todos no mesmo instante. Mas implicitamente, na alma, ajustaram os modos de matar o desejo com Maria, e as brigas homéricas que tiveram duas ou três vezes e que obrigaram Ênio a sair de casa e dizer para si que estava cansado daquilo e que não voltaria, foram brigas que tiveram a desimportância que ele constatou com o passar do tempo, quando Maria, duas semanas depois ligou, e João ligou, e ele voltou, voltou porque precisavam seguir em frente, porque agora ele fora o ungido para fazer um filho em Maria – agora já tinham dois – e fora o escolhido para preparar a festa de casamento dos três, que seria para os amigos muito íntimos, porque a lei não permitia aquilo.

Casaram-se numa fazenda alugada, numa igrejinha muito pequena, uma capela mesmo, ofertada pelo dono a Santo Antônio. Desceram o declive que dava na capela ao pé de uma cerca antiga, percorrendo uma trilha que os amigos preparam com pó de serragem artificialmente colorida. A autoridade que os casou não tinha a autoridade comum dos códigos, apenas a autoridade de um casal, um homem e uma mulher, que se tornaram grandes amigos deles, e eram orientadores de Maria e Ênio na academia – João detestava academia e cultivava uma barriguinha inexpugnável de chopp e descaso com o corpo. Aquele casal separou dois ou três textos de crenças diferentes, muitas músicas, belas músicas, nacionais e internacionais. No final voltaram para a varanda quilométrica da fazenda, onde serviram comida e bebida, com fartura. A partir dali Ênio compreendeu a suficiência de Maria para os dois e mais à frente descobriu que as brigas mais feias eram entre João e Maria ou entre ele e Maria, pois entre ele e João acharam instintivamente de conduzir uma relação bem humorada, de um respeito que, sem ser distante, fora cavado dentro da própria intimidade.


Agora estava ali, naquele fim de tarde praiano, ela deitada numa cadeira de náilon, João pulando as ondas com uma das crianças e alguns vizinhos de mesas, mais argutos, procurando entender o que estava acontecendo ali. Ênio pediu a Deus que eles ficassem na boa paz e compreendessem que não havia qualquer necessidade de compreender o  que acontecia entre eles.



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