Lêdo Ivo - Poema

Pés - by Sebastião Salgado




Minha Pátria



Minha pátria não é a língua portuguesa.
Nenhuma língua é a pátria.
Minha pátria é a terra mole e peganhenta onde nasci
e o vento que sopra em Maceió.
São os caranguejos que correm na lama dos mangues
e o oceano cujas ondas continuam molhando os meus pés quando
      [sonho.
Minha pátria são os morcegos suspensos no forro das igrejas
      [carcomidas,
os loucos que dançam ao entardecer no hospício junto ao mar,
e o céu encurvado pelas constelações.
Minha pátria são os apitos dos navios
e o farol no alto da colina.
Minha pátria é a mão do mendigo na manhã radiosa.
São os estaleiros apodrecidos
e os cemitérios marinhos onde os meus ancestrais tuberculosos
      [e impaludados não param de
      [tossir e tremer nas noites frias
e o cheiro de açúcar nos armazéns portuários
e as tainhas que se debatem nas redes dos pescadores
e as résteas de cebola enrodilhadas na treva
e a chuva que cai sobre os currais de peixe.
A língua de que me utilizo não é e nunca foi a minha pátria.
Nenhuma língua enganosa é a pátria.
Ela serve apenas para que eu celebre a minha grande e pobre pátria
      [muda,
minha pátria disentérica e desdentada, sem gramática e sem dicionário,
minha pátria sem língua e sem palavras.



Lêdo Ivo - Poema




As Iluminações


Desabo em ti como um bando de pássaros.
E tudo é amor, é magia, é cabala.
Teu corpo é belo como a luz da terra
na divisão perfeita do equinócio.

Soma do céu gasto entre dois hangares,
és a altura de tudo e serpenteias
no fabuloso chão esponsálício.

Muda-se a noite em dia porque existes,
feminina e total entre os meus braços,
como dois mundos gêmeos num só astro.

Imagem retirada da Internet: Pássaros

Lêdo Ivo - Poema

Manhãs de Outono (Von Herbst morgens )


 

















Soneto de Abril


Agora que é abril, e o mar se ausenta,
secando-se em si mesmo como um pranto,
vejo que o amor que te dedico aumenta
seguindo a trilha de meu próprio espanto.

Em mim, o teu espírito apresenta
todas as sugestões de um doce encanto
que em minha fonte não se dessedenta
por não ser fonte d'água, mas de canto.

Agora que é abril, e vão morrer
as formosas canções dos outros meses,
assim te quero, mesmo que te escondas:

amar-te uma só vez todas as vezes
em que sou carne e gesto, e fenecer
como uma voz chamada pelas ondas.


Café Tortoni


Meus olhos compreendem
os teus barcos, Buenos Aires.
Os teus portos,
os teus séculos e catedrais.
Em ti estão todos os homens,
o roçar breve da vida
nos dobres silenciosos
dos sinos da poesia.
Meu coração compreende
este teu sotaque, Buenos Aires,
na alegria dos teus insones cafés
e de suas perfiladas mesas
testemunhando olhares que se cruzam
na artilharia de vontades e ideias.
Borges, Cortàzar, Alfonsina,
todos ali,
tão vivos como esta noite que me habita,
tão intensos como tuas largas avenidas noturnas
de tangos e transeuntes.

Buenos Aires - Café Tortoni - 15/06/2009.

Imagem retirada da Internet: Café Tortoni

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