Pablo Neruda - Poema

Ode à Tipografia




Letras amplas, severas,
verticais,
feitas
de linha pura,
erguidas
como o mastro
do navio 
no meio
da página
cheia
de confusão e turbulência,
Bodonis
algébricos,
letras
cabais,
finas
como lebréis,
submetidas
ao retângulo branco
da geometria,
vogais
elzevires
cunhadas
no miúdo aço
da oficina junto à água,
em Flandres, no norte
traçado por canais,
cifras
da âncora
caracteres de Aldus,
firmes como
a estatura
marinha
de Veneza
em cujas águas-mães
como vela
inclinada,
navega a cursiva
curvando o alfabeto:
o ar
dos descobridores
oceânicos
agachou
para sempre o perfil da escritura.
Desde
as mãos medievais
avançou até teus olhos
este
N
este 8
duplo
este
J
este
R
de rei e de rocio.
Ali
se lavraram
como se fossem
dentes, unhas,
metálicos martelos
do idioma.
Golpearam cada letra,
erigiram-na
pequena estátua negra
na alvura,
pétala
do pensamento que tomava forma
do caudaloso rio
e que ao mar dos povos navegava
com todo
o alfabeto
iluminando
a desembocadura.
O coração, os olhos
dos homens
se encheram de letras,
de mensagens,
de palavras,
e o vento passageiro
ou permanente
levantou livros
loucos
ou sagrados.
Debaixo
das novas pirâmides escritas
a letra
estava viva,
o alfabeto ardendo,
as vogais,
as consoantes como
flores curvas.
Os olhos
do papel, os que miraram
nos homens
buscando
seus presentes,
sua história, seus amores,
estendendo
o tesouro
acumulado,
espargindo prontamente
a lentidão da sabedoria
sobre a mesa
como um baralho,
todo
o húmus
secreto
dos séculos
o canto, a memória,
a revolta,
a parábola cega,
pronto
foram
fecundidade,
celeiro,
letras,
letras
que caminharam
e se acenderam
letras
que navegaram
e venceram,
letras
que despertaram
e subiram,
letras
que libertaram,
letras
em forma de pomba
que voaram,
letras
vermelhas sobre a neve,
pontuações,
caminhos,
edifícios
de letras
e Villon e Bercéo,
trovadores
da memória
apenas
escrita sobre o couro
e também sobre o tambor
da batalha,
chegaram
à espaçosa nave
dos livros,
à tipografia
navegante.
Mas
a letra
não foi só beleza,
e sim, vida,
foi paz para o soldado,
baixou às soledades
da mina
e o mineiro
leu
o panfleto duro
e clandestino,
ocultou-o nos recônditos
do segredo
coração
e acima
sobre a terra,
foi outro
e outra
foi sua palavra.
A letra
foi a mãe
das novas bandeiras,
as letras
procriaram,
as estrelas
terrestres
e o canto, o hino ardente
que reúne
aos povos
de
uma
letra
agregada
a outra
letra
e a outra
de povo em povo foi sobrelevando
sua autoridade sonora
e cresceu na garganta dos homens
até impor a claridade do canto.
Mas
tipografia,
deixe-me
celebrar-te
na pureza
de teus
puros perfis,
na redoma
da letra
O,
no viçoso
alguidar
do
Y,
no
Q
de Quevedo
(como poderia passar
minha poesia
em frente dessa letra
sem sentir o antigo arrepio
do sábio moribundo?),
à açucena
multi
multiplicada
do
V
de vitória,
no
E
escalonado
para subir ao céu,
no
Z
com seu rosto de raio,
no P
alaranjado.
Amor,
amo
as letras
de teu cabelo,
o
U
de teu olhar,
os
S
de tuas curvas.
Nas folhas
da jovem primavera
refulge o alfabeto
diamantino,
as esmeraldas
escrevem teu nome
com iniciais frescas do rocio.
Meu amor,
tua cabeleira profunda
como selva ou dicionário
me cobre
com sua totalidade
de idioma
vermelho.
Em tudo,
no estalão
do verme
se lê,
na rosa se lê,
as raízes
estão cheias de letras
retorcidas
pela umidade do bosque
e no céu
de Isla Negra, à noite,
leio,
leio
no firmamento frio
da costa,
intenso,
diáfano de formosura,
despregado,
com estrelas capitais
e minúsculas
e exclamações
de diamante gelado,
leio, leio
na noite do Chile
austral, perdido
nas celestes solitudes
do firmamento,
como em um livro
leio
todas
as aventuras
e na erva
leio,
leio
a verde, a arenosa
tipografia
da terra agreste,
leio
os navios, os rostos
e as mãos,
leio
em teu coração
onde
vivem
entrelaçados
a inicial
provinciana
de teu nome
e
o arrecife
de meus sobrenomes.
Leio
tua fronte,
leio
teu cabelo
e no jasmim
as letras
escondidas
elevam
a incessante
primavera
até que eu decifro
a enterrada
pontuação
da papoula
e a letra
escarlate
do estio:
são as exatas flores do meu canto.
Contudo
quando
desfralda
seus rosais
a escritura,
a letra
sua essencial
jardinaria,
quando lês
as velhas e as novas
palavras, as verdades
e as explorações,
te peço
um pensamento
para quem as ordena
e as levanta,
para o que separa
o tipo,
para o linotipista
com sua lâmpada
como um piloto
sobre
as ondas da linguagem
ordenando
os ventos na espuma,
a sombra e as estrelas
no livro:
o homem
e o aço
uma vez mais reunidos
contra as asas noturnas
do mistério,
navegando,
hora dando,
compondo.
Tipografia,
sou
apenas um poeta
e és
o florido
jogo da razão,
o movimento
do cerzir
da inteligência.
Não descansas
de noite
nem no inverno
circulas
nas veias
de nossa anatomia
e se dormes
voando
durante
alguma noite ou greve
ou fadiga ou ruptura
de linotipia
baixas de novo ao livro
ou ao jornal
como nuvem
de pássaros ao ninho.
Regressas
ao sistema
à ordem
inapelável
da inteligência.
Letras
continuai caindo
como precisa chuva
em meu caminho.
Letras de tudo
o que vive
e morre,
letras de luz, de lua,
de silêncio,
de água,
amo-vos,
e em vós
recolho
não apenas pensamento
e o combate,
mas também vossos vestidos,
sentidos
e sonoridades:
A
de gloriosa aveia,
T
de trigo y de torre
e
M
como teu nome
de maçã.


Tradução de Frederico Fullgraf



Fonte da imagem:Chocolate Disign

Oliverio Girondo - Poema


Gratitud


Gracias aroma
azul,
fogata
encelo.
Gracias pelo
caballo
mandarino.
Gracias pudor
turquesa
embrujo
vela,
llamarada
quietud
azar
delirio.
Gracias a los racimos
a la tarde,
a la sed
al fervor
a las arrugas,
al silencio
a los senos
a la noche,
a la danza
a la lumbre
a la espesura.
Muchas gracias al humo
a los microbios,
al despertar
al cuerno
a la belleza,
a la esponja
a la duda
a la semilla
a la sangre
a los toros
a la siesta.
Gracias por la ebriedad,
por la vagancia,
por el aire
la piel
las alamedas,
por el absurdo de hoy
y de mañana,
desazón
avidez
calma
alegría,
nostalgia
desamor
ceniza
llanto.
Gracias a lo que nace,
a lo que muere,
a las uñas
las alas
las hormigas,
los reflejos
el viento
la rompiente,
el olvido
los granos
la locura.
Muchas gracias gusano.
Gracias huevo.
Gracias fango,
sonido.
Gracias piedra.
Muchas gracias por todo.
Muchas gracias.
Oliverio Girondo,
agradecido.


Olivero Girondo - Poema


Ella


Es una intensísima corriente
un relámpago ser de lecho
una dona mórbida ola
un reflujo zumbo de anestesia
una rompiente ente florescente
una voraz contráctil prensil corola entreabierta
y su rocío afrodisíaco
y su carnalesencia
natal
letal
alveolo beodo de violo
es la sed de ella ella y sus vertientes lentas entremuertes que
estrellan y disgregan
aunque Dios sea su vientre
pero también es la crisálida de una inalada larva de la nada
una libélula de médula
una oruga lúbrica desnuda sólo nutrida de frotes
un chupochupo súcubo molusco
que gota a gota agota boca a boca
la mucho mucho gozo
la muy total sofoco
la toda ¡shock! tras ¡shock!
la íntegra colapso
es un hermoso síncope con foso
un ¡cross! de amor pantera al plexo trópico
un ¡knock out! técnico dichoso
si no un compuesto terrestre de líbido edén infierno
el sedimento aglutinante de un precipitado de labios
el obsesivo residuo de una solución insoluble
un mecanismo radioanímico
un terno bípedo bullente
un ¡robot! hembra electroerótico con su emisora de delirio
y espasmos lírico-dramáticos
aunque tal vez sea un espejismo
un paradigma
un eromito
una apariencia de la ausencia
una entelequia inexistente
las trenzas náyades de Ofelia
o sólo un trozo ultraporoso de realidad indubitable
una despótica materia
el paraíso hecho carne
una perdiz a la crema.


John Berryman - Poema


As a kid I believed in democracy 





As a kid I believed in democracy: I
'saw no alternative'—teaching at The Big Place I ah
put it in practice:
we'd time for one long novel: to a vote—
Gone with the Wind they voted: I crunched 'No'
and we sat down with War & Peace.

As a man I believed in democracy (nobody
ever learns anything): only one lazy day
my assistant, called James Dow,
& I were chatting, in a failure of meeting of minds,
and I said curious 'What are your real politics?'
'Oh, I'm a monarchist.'

Finishing his dissertation, in Political Science.
I resign. The universal contempt for Mr Nixon,
whom never I liked but who
alert & gutsy served us years under a dope,
since dynasty K swarmed in. Let's have a King
maybe, before a few mindless votes.





Imagem retirada da Internet: Guantânamo

Clarissa Perna Filgueiras - Ensaio Poético


Amigos de Vento





Daqui, vejo um aquário, cheio de espécies interessantes, exóticas....Interação instantânea, lanço mão da minha rede “social”, e pesco, pesco e pesco...amigos. Seres iluminados, possuem luz própria, cada um com um tom. Cheiro de mar, fisionomia de pôr do sol e essência de brisa.

Causa e efeito, quando crianças, os meus amigos estavam dispostos a brincar e a brigar toda hora, sem culpa, sem falta de tempo, sem cabeça cheia, sem preconceito. O vento que venta aqui é o mesmo que venta lá, trazendo a adolescência “furacão”. Fase das mais bonitas, quando amigos vêm como chuva, pingando por todo o caminho, adubando o terreno para vida adulta.

Ninguém é reciclável, alguns foram outros voltaram ! A maré subiu e veio a fase adulta com toda a sua plenitude. Fase de quebrar o aquário, de viver todos os dias como o último, de fazer tatuagem, de ter e perder amores, de refinar os gostos musicais, dos porres inesquecíveis. Tempo de apertar os laços afrouxados pelo cotidiano.

Hoje reconheço e tenho total devoção aos que realmente amo, mesmo sabendo o quanto mudei, principalmente pelo respeito às diferenças e imperfeições. Aos amigos de longe, aos amigos de perto, aos amigos virtuais, aos amigos de passagem e aos amigos que estão por vir, OBRIGADA. Agradeço pelos ombros, pelos cuidados, pelas brigas. 

Minha gratidão por abrirem meus olhos quando fico cega, de serem palavra quando emudeço, por serem sol nos meus dias de chuva. Amém, meus moinhos de vento, agora estou alçando voos maiores. Coisa típica de gente grande, né? Amadureci com vocês e agora sou pipa, dessas que voam, voam, voam, alto bem alto, mas quando puxadas voltam, cheias de saudade e transbordando amor.

Imagem retirada da Internet: Amigas

Augusto Frederico Schmidt - Poema



Poema da inveja

 


Inveja dos que desejam pertencer à Academia de Letras,
Dos que amam as honrarias.
Dos incansáveis.
Dos que adormecem sem medo.
E despertam sempre dispostos para a conquista do mundo.

Inveja dos que caminham firmes,
Como se o chão fosse sólido.
Como se tudo estivesse certo e ordenado.
Inveja dos que não se lembram de que só há um destino.
E que estamos suspensos sobre o abismo.
Inveja dos seres para quem a esperança
Não é uma fragil ponte sobre o nada.

Inveja dos que não carregam sempre e interminavelmente,
Por onde vão e em todas as horas,
O fardo de seus mortos.
Inveja dos que não guardam
As imagens perdidas, as folhas secas,
A poeira da vida.
E sacodem qualquer melancolia e avançam leves e contentes.

Inveja dos que podem recordar sorrindo
As alegrias efêmeras.
E não se dão conta de que o amargo
Delimita e bordeja todos os caminhos.

Inveja dos que contemplam, impassíveis,
As flores murchas, os berços vazios,
As mão frias em cruz,
Os rostos devastados pelo tempo,
E o tédio dos que se amaram um dia.



Imagem retirada da Internet: inveja

Amadeus Amado - Poema



Os olhos ,
na margem do corpo,
ardem.
o corpo,
no centro dos olhos,
sente.

sente o corpo
             no meio dos olhos.
ardem os olhos
             no meio do corpo.

corposente
olhoscorpo
                  Alma.



Imagem retirada da Internet: eye

Manuel Bandeira - Poeta


Resposta a Vinícius




Poeta sou; pai, pouco; irmão, mais.
Lúcido, sim; eleito, não;
E bem triste de tantos ais
Que me enchem a imaginação.


Com que sonho? Não sei bem não.
Talvez com me bastar, feliz
– Ah, feliz como jamais fui! –
Arrancando do coração
– Arrancando pela raiz –
Este anseio infinito e vão
De possuir o que me possui.

Florbela Espanca - Poema

Ser Poeta



Ser poeta é ser mais alto, é ser maior

Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!

É ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!

É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim...
É condensar o mundo num só grito!

E é amar-te, assim, perdidamente...
É seres alma, e sangue, e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente!

Paul Eluard - Poema

A Morte o Amor a Vida

Julguei que podia quebrar a profundeza a 
                                                               [imensidade 
Com o meu desgosto nu sem contacto sem eco 
Estendi-me na minha prisão de portas virgens 
Como um morto razoável que soube morrer 
Um morto cercado apenas pelo seu nada 
Estendi-me sobre as vagas absurdas 
Do veneno absorvido por amor da cinza 
A solidão pareceu-me mais viva que o sangue 

Queria desunir a vida 
Queria partilhar a morte com a morte 
Entregar meu coração ao vazio e o vazio à vida 
Apagar tudo que nada houvesse nem o vidro 
                                                             [nem o orvalho 
Nada nem à frente nem atrás nada inteiro 
Havia eliminado o gelo das mãos postas 
Havia eliminado a invernal ossatura 
Do voto de viver que se anula 

Tu vieste o fogo então reanimou-se 
A sombra cedeu o frio de baixo iluminou-se de 
                                                                      [estrelas 
E a terra cobriu-se 
Da tua carne clara e eu senti-me leve 
Vieste a solidão fora vencida 
Eu tinha um guia na terra 
Sabia conduzir-me sabia-me desmedido 
Avançava ganhava espaço e tempo 
Caminhava para ti dirigia-me incessantemente 
                                                                     [para a luz 
A vida tinha um corpo a esperança desfraldava 
                                                               [as suas velas 
O sono transbordava de sonhos e a noite 
Prometia à aurora olhares confiantes 
Os raios dos teus braços entreabriam o nevoeiro 
A tua boca estava húmida dos primeiros orvalhos 
O repouso deslumbrado substituía a fadiga 
E eu adorava o amor como nos meus primeiros 
                                                                         [tempos 

Os campos estão lavrados as fábricas irradiam 
E o trigo faz o seu ninho numa vaga enorme 
A seara e a vindima têm inúmeras testemunhas 
Nada é simples nem singular 
O mar espelha-se nos olhos do céu ou da noite 

A floresta dá segurança às árvores 
E as paredes das casas têm uma pele comum 
E as estradas cruzam-se sempre 
Os homens nasceram para se entenderem 
Para se compreenderem para se amarem 
Têm filhos que se tornarão pais dos homens 
Têm filhos sem eira nem beira 
Que hão-de reinventar o fogo 
Que hão-de reinventar os homens 
E a natureza e a sua pátria 
A de todos os homens 
A de todos os tempos. 
Tradução de Antônio Ramos Rosa

In. Algumas das Palavras
Fonte: Citador

Francisco Perna Filho - Poema

Ramon, Goias x América-MG (Foto: André Costa / Agência Estado)
Impassível



No campo, o jogo,
na arquibancada, o grito
na mente, o desejo
no banco, expectativa.
Acabado o espetáculo,
as comportas  abertas jorram
homens, mulheres, meninos,
cujas casas os esperam.
Ainda lá atrás, um minuto de silêncio*;
ninguém se calou,
aplausos vieram,
pois o jogo acabara de iniciar-se.
quem morreu, morreu,
quem se importa?
É gol!.



*Goiânia, sexta feira, 13/07/2012, no jogo entre Goiás e América de Minas Gerais, a direção do Estádio Serra Dourada pediu um minuto de silêncio em memória do radialista Valério Luíz, assassinado recentemente, quando saía da emissora de rádio na qual trabalhava.


Imagem: Globo Esporte

Paulo Leminski - Poema





O Hóspede Despercebido



         Deixei alguém nesta sala
que muito se distinguia
         de alguém que ninguém se chamava,
quando eu desaparecia.
         Comigo se assemelhava,
mas só na superfície.
         Bem lá no fundo, eu, palavra,
não passava de um pastiche.
         Uns restos, uns traços, um dia,
meus tios, minhas mães e meus pais
         me chamarem de volta pra dentro,
eu ainda não volte jamais.
         Mas ali, logo ali, nesse espaço,
lá se vai, exemplo de mim,
         algo, alguém, mil pedaços,
meio início, meio a meio, sem fim.

In. Distraídos Venceremos
Imagem retirada da Internet: eu


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