Mario Benedetti - Poema


EL PUENTE





Para cruzalo o para no cruzarlo

ahí está el puente



en la otra orilla alguien me espera

con un durazno y un país



traigo conmigo ofrendas desusadas

entre ellas un paraguas de ombligo de madera

un libro con los pánicos en blanco

y una guitarra que no sé abrazar



vengo con las mejillas del insomnio

los pañuelos del mar y de las paces

Ias tímidas pancartas del dolor

las liturgias del beso y de la sombra



nunca he traído tantas cosas

nunca he venido con tan poco



ahí esta el puente

para cruzarlo o para no cruzarlo

yolIo voy a cruzar

sin prevenciones



en la otra orilla alguien me espera

con un durazno y un país




In. De Preguntas al azar.
Imagem retirada da Internet: Mario Benedetti.

Moacir Félix - Poema


                                                
   POEMA QUASE EXPLICAÇÃO



      Luzes cortam a noite básica
e desenham o mundo em que vivemos.
As estátuas de mármore então brotam
dos lábios e das mãos dos que pararam
e verticalmente apenas olham.


E as estrelas derramam pedra e cal
construindo em cada olhar muralhas
onde fonte magra pinga sol e lua,
- e o relógio é um deus cantando as horas
horas de pedra e cal.


Simplificado como uma lágrima
tu cruzaste a ponte em meninos mortos,
e se teus dedos - já cimento, se crisparam,
teus olhos se encheram de relâmpagos
afiados para os homens de olhos de pedra e cal.


Não mais o refletido caminhar
de teus passos na noite iluminada,
mas descer com os olhos a ladeira
e deixá-los no cárcere sem portas
onde os ratos e os anjos se devoram.


Impassível como um tronco de árvore, onde
os homens gravam a canivete o que calaram.



Imagem retirada da Internet: cidade noturna

Torquato Neto - Poema



A rua



Toda rua tem seu curso
Tem seu leito de água clara
Por onde passa a memória
Lembrando histórias de um tempo
Que não acaba

De uma rua, de uma rua
Eu lembro agora
Que o tempo, ninguém mais
Ninguém mais canta
Muito embora de cirandas
(Oi, de cirandas)
E de meninos correndo
Atrás de bandas

Atrás de bandas que passavam
Como o rio Parnaíba
O rio manso
Passava no fim da rua
E molhava seus lajedos
Onde a noite refletia
O brilho manso
O tempo claro da lua

Ê, São João, ê, Pacatuba
Ê, rua do Barrocão
Ê, Parnaíba passando
Separando a minha rua
Das outras, do Maranhão

De longe pensando nela
Meu coração de menino
Bate forte como um sino
Que anuncia procissão

Ê, minha rua, meu povo
Ê, gente que mal nasceu
Das Dores, que morreu cedo
Luzia, que se perdeu
Macapreto, Zé Velhinho
Esse menino crescido
Que tem o peito ferido
Anda vivo, não morreu

Ê, Pacatuba
Meu tempo de brincar já foi-se embora
Ê, Parnaíba
Passando pela rua até agora
Agora por aqui estou com vontade
E eu volto pra matar esta saudade

Ê, São João, ê, Pacatuba
Ê, rua do Barrocão

Imagem retirada da Internet: rua

 

Torquato Neto - Poema




Cogito

eu sou como eu sou
pronome
pessoal intransferível
do homem que iniciei
na medida do impossível

eu sou como eu sou
agora
sem grandes segredos dantes
sem novos secretos dentes
nesta hora

eu sou como eu sou
presente
desferrolhado indecente
feito um pedaço de mim

eu sou como eu sou
vidente
e vivo tranquilamente
todas as horas do fim.




Imagem retirada da Internet: digital

Lêdo Ivo - Poema




A Recompensa





Eis a dádiva da noite: 
fenda, cova, gruta, porta 
casto pássaro sem canto 
cisterna oculta no bosque 
concha perdida na praia 
viva natureza-morta.
Um corredor de coral 
matriz e canal de mangue 
trilha, sebe, valva, furna 
voluta cheia de adornos 
desfiladeiro da tarde 
tumba de sol e corola 
sereno da madrugada.
Manga madura da infância 
que cai num chão de mentira 
sol de lábios e camélias 
esconderijo dos sonhos 
caminho do descaminho 
brancura negra da carne 
pousada em seu próprio ninho 
abertura pura e escura 
entre-fechado botão 
ou entreaberta rosa 
na noite misteriosa.


Fonte: Jornal de Poesia

Imagem retirada da Internet: Maçã
 

Lêdo Ivo - Poema




A Marmita


Em sua marmita
não leva o operário
qualquer metafísica.
Leva peixe frito,
arroz e feijão.
Dentro dela tudo
tem lugar marcado.
Tudo é limitado
e nada é infinito.
A caneca d'água
tem espaço apenas
para a sua sede.
E a marmita é igual
à boca do estômago,
feita sob medida
para a sua fome.
E quando termina
sua refeição,
ele ainda cata
todas as migalhas,
todo esse farelo
de um pão que suasse
durante o trabalho.
Tudo quanto ganha
o operário aplica
como um capital
em sua marmita.
E o que ele não ganha
embora trabalhe
é outro capital
que também investe:
palavra que diz
em seu sindicato,
frase que se escreve
no muro da fábrica,
visão do futuro
que nasce em seus olhos
que só com fumaça
se enchem de lágrimas.
Em sua marmita
não leva o operário
o caviar de
qualquer metafísica.
E sendo ele o mais
exato dos homens
tudo nele é físico
e material,
tem seu nome e forma,
seu peso e volume,
pode-se pegar.
Seu amor tem saia
pêlos e mucosas
e, fecundo, faz
novos operários.
As coisas se medem
pelo seu tamanho:
sono, mesa, trave.
No trem ou no bonde
nenhum operário
pode se espalhar
sem fazer esforço.
É como no mundo:
— tem que empurrar.
Vasilhame cheio
de matéria justa,
sua vida é exata
como uma marmita.
Nela cabe apenas
toda a sua vida.
E não cabe a morte
que esta não existe,
não sendo manual,
não sendo uma peça
de recauchutar.
(Artigo infinito,
sem ferro e sem aço,
qualquer um a embrulha
sem usar barbante
ou papel almaço.)
Fabril e imanente
o operário vive
do que sabe e faz
e, sendo vivente,
respira o que vê.
O tempo que o suja
de óleo e fuligem
é o mesmo que o lava,
tempo feito de água
aberta na tarde
e não de relógio.
E a própria marmita
também é lavada.
E quando ele a leva
de volta pra casa
ela, metal, cheira
menos a comida
do que a operário.


Fonte: Jornal de Poesia
Imagem retirada da Internet: Bóias frias

Lêdo Ivo - Poema



O cavalo


No campo matinal
um cavalo assediado
pelo zumbir das moscas
mastiga avidamente,
o capim do universo.
Os insetos volteiam
no anel azul do mundo
- esfera sem passado
nos ares momentâneos.
Não há mitologia
espalhada na relva
que é verde, sem caminhos,
longe das longes terras.
E o cavalo sobrado
da inenarrável guerra
e da paz defendida
à sombra das espadas
mata a fome no campo
onde não jazem mortos
nem retroam clarins.
Sua crina estremece.
E seus cascos escarvam
a plácida planície
coberta pelos pássaros.
Já sem fome, relincha
para os céus que não guardam
as fanfarras e flâmulas
e a fumaça da História,
e se muda em estátua.

Fonte Jornal de Poesia
Imagem retirada da Internet: cavalo

Vera Lúcia de Oliveira - Poema


ATÉ O FUNDO




eu cavoucava o barulhinho
das coisas
eu cutucava pedras
eu machucava a terra
eu revolvia os veios
dos troncos
eu escavava até o fundo
a mudez de um junco


(Do livro Entre as junturas dos ossos, Ministério da Educação, 2006, Brasília (Prêmio “Literatura para Todos”, 2006).
Imagem retirada da Internet: troncos

Vera Lúcia de Oliveira - Poema


APRENDI O VENTO




aprendi o vento nas traves doendo
aprendi no escuro das traves
aprendi nas telhas
moendo seu sopro
aprendi como um bicho
aprende o uivo
de outro bicho
como a viga
o estalido
de outra viga


(Do livro Entre as junturas dos ossos, Ministério da Educação, 2006, Brasília (Prêmio “Literatura para Todos”, 2006)
Imagem retirada da Internet: Vento

Vera Lúcia de Oliveira - Poema


MEMÓRIA




abundância de rastros
que não se cancelam
fascinados pelo assombro
de atravessar as esperas
com seus passos abortos
subindo pelas artérias
em busca de outro corpo


(Do livro Entre as junturas dos ossos, Ministério da Educação, 2006, Brasília (Prêmio “Literatura para Todos”, 2006)
Imagem retirada da Internet: passos

Vera Lúcia de Oliveira - Poema


OS PÁSSAROS




os pássaros de pedra dilatam as oferendas
os pássaros de carne batem-se contra as grades
os pássaros de lata arrulham nas ferrovias dos nervos
os pássaros de madeira mascam o macio dos músculos
os pássaros de papel voam para dentro das crases
os pássaros de carvão rabiscam suas asas no ventre
os pássaros de fogo puxam os pássaros de chuva
os pássaros de pano acalentam os pássaros de pranto


(Do livro Entre as junturas dos ossos, Ministério da Educação, 2006, Brasília (Prêmio “Literatura para Todos”, 2006)
Imagem retirada da Internet: pássaros

Vera Lúcia de Oliveira - Poema


PAISAGEM




solidão de morros
solidão de tetos mudos
solidão congênita de estradas
um cão manco um passante
apressado
uma touceira
um muro
uma calçada


Imagem retirada da Internet: solidão


(Do livro Entre as junturas dos ossos, Ministério da Educação, 2006, Brasília (Prêmio “Literatura para Todos”, 2006)

Vera Lúcia de Oliveira - Poema


A LAMA




a lama de que brotou o osso
a lama de casa própria
pegadiça e lenta
a lama
de fundo de quintal
a lama de chuva fina
(ancoradouro
de enxurradas)

a lama por onde deflui
a essência do nosso sangue
a lama onde roça
o nosso pisado
a lama de que se molda
a substância
do cordão umbilical


(Do livro Entre as junturas dos ossos, Ministério da Educação, 2006, Brasília (Prêmio “Literatura para Todos”, 2006)

Vera Lúcia de Oliveira - Poema


ONDE




onde vou buscar as areias
onde vou buscar o barulho
do branco no sol
a palavra do branco
e seu avesso
onde vou buscar as pegadas
no branco
os ossos moídos no branco
os cemitérios brancos


(Do livro Entre as junturas dos ossos, Ministério da Educação, 2006, Brasília (Prêmio “Literatura para Todos”, 2006)


Imagem retirada da Internet: cemitério

Vera Lúcia de Oliveira - Poema


PELO FOGO DA FALA




pelo fogo das palavras
pela sarça ardente das palavras
pisando por rugas de telhas
enquanto o coração crescia

pelo fogo da fala
pelo pavio secreto da língua
pela fagulha ardente
crescia meu coração
como crescem as folhas
que o vento arrasta no ardor da combustão


(Do livro Entre as junturas dos ossos, Ministério da Educação, 2006, Brasília (Prêmio “Literatura para Todos”, 2006)

Imagem retirada da Internet: centelha

Vera Lúcia de Oliveira - Poema



 

Neste final de ano, o Banzeiro Textual apresenta uma coletânea de  Poemas de Vera Lúcia de Oliveira, gentilmente organizada pela Autora para este Blog. Vera é uma das maiores vozes da Poesia Brasileira Contemporânea. 

Vera Lúcia de Oliveira é doutora em Línguas e Literaturas Ibéricas e Ibero-Americanas pela Università degli Studi di Palermo (Itália). Atualmente ensina Literatura Portuguesa e Brasileira na Università degli Studi di Perugia (Itália). O livro inédito La carne quando è sola, escrito originalmente em italiano, foi o vencedor do Prêmio Internacional de Poesia Piero Alinari, organizado pela Fundação Alinari, de Florença, em colaboração com Cátedra Giuseppe Ungaretti da Columbia University, de New York. O mesmo será publicado pela editora SEF (Società Editrice Fiorentina). Em 2006, o Ministério da Educação outorgou-lhe o Prêmio Literatura para Todos, na categoria de poesia, pelo livro Entre as junturas dos ossos, publicado pelo MEC em 110 mil exemplares e distribuído nas bibliotecas de todo o Brasil. Em 2005, recebeu o Prêmio de Poesia da Academia Brasileira de Letras com o livro A chuva nos ruídos, publicado pela Escrituras. Recebeu também outros prêmios nacionais e internacionais de poesia e seus poemas foram traduzidos e publicados em várias antologias no Brasil, Itália, Alemanha, Estados Unidos, Romênia, Espanha e Portugal. Tradutora e divulgadora da literatura brasileira na Itália, escreve tanto em português como em italiano. Organizou antologias de vários poetas brasileiros e portugueses, entre os quais Nuno Judice, Lêdo Ivo e Carlos Nejar.

Entres os livros publicados, de poesia e ensaios, estão Geografia d'ombra (poesia), Fonèma Venezia, 1989; Tempo de doer/Tempo di soffrire (poesia), Pellicani, Roma, 1998; La guarigione (poesia), La Fenice, Senigallia, 2000; Poesia, mito e história no Modernismo brasileiro (ensaio), Editora da Unesp e Edifurb, São Paulo, 2002; A chuva nos ruídos (antologia poética), São Paulo, Escrituras, 2004; Verrà l'anno (poesia), Fara, Santarcangelo di Romagna, 2005; Storie nella storia: le parabole di Guimarães Rosa (ensaio), Pensa, Lecce, 2005; No coração da boca (poesia), São Paulo, Escrituras, 2006; A poesia é um estado de transe (poesia), São Paulo, Portal Editora, 2010; La carne quando è sola (poesia), Firenze, Società Editrice Fiorentina, 2011.




nem todo verbo
há de sangrar
na vértebra
também com anestesia
se há de se ir
dissecá-lo

para que não se perca
a parte dentro do nome
o que se desgruda por último
a margem ao redor do nome
o que perscruta em nossa boca
a ausência do pronome


(Do livro A chuva nos ruídos, Escrituras, 2004, São Paulo (Prêmio de Poesia da Academia Brasileira de Letras, 2005).

Imagem retirada da Internet: significante

Fiódor Dostoiévski - Conto


A árvore de Natal na casa de Cristo




Havia num porão uma criança, um garotinho de seis anos de idade, ou menos ainda. Esse garotinho despertou certa manhã no porão úmido e frio. Tiritava, envolto nos seus pobres andrajos. Seu hálito formava, ao se exalar, uma espécie de vapor branco, e ele, sentado num canto em cima de um baú, por desfastio, ocupava-se em soprar esse vapor da boca, pelo prazer de vê-lo se esvolar. Mas bem que gostaria de comer alguma coisa. Diversas vezes, durante a manhã, tinha se aproximado do catre, onde num colchão de palha, chato como um pastelão, com um saco sob a cabeça à guisa de almofada, jazia a mãe enferma. Como se encontrava ela nesse lugar? Provavelmente tinha vindo de outra cidade e subitamente caíra doente. A patroa que alugava o porão tinha sido presa na antevéspera pela polícia; os locatários tinham se dispersado para se aproveitarem também da festa, e o único tapeceiro que tinha ficado cozinhava a bebedeira há dois dias: esse nem mesmo tinha esperado pela festa. No outro canto do quarto gemia uma velha octogenária, reumática, que outrora tinha sido babá e que morria agora sozinha, soltando suspiros, queixas e imprecações contra o garoto, de maneira que ele tinha medo de se aproximar da velha. No corredor ele tinha encontrado alguma coisa para beber, mas nem a menor migalha para comer, e mais de dez vezes tinha ido para junto da mãe para despertá-la. Por fim, a obscuridade lhe causou uma espécie de angústia: há muito tempo tinha caído a noite e ninguém acendia o fogo. Tendo apalpado o rosto de sua mãe, admirou-se muito: ela não se mexia mais e estava tão fria como as paredes. "Faz muito frio aqui", refletia ele, com a mão pousada inconscientemente no ombro da morta; depois, ao cabo de um instante, soprou os dedos para esquentá-los, pegou o seu gorrinho abandonado no leito e, sem fazer ruído, saiu do cômodo, tateando. Por sua vontade, teria saído mais cedo, se não tivesse medo de encontrar, no alto da escada, um canzarrão que latira o dia todo, nas soleiras das casas vizinhas. Mas o cão não se encontrava alí, e o menino já ganhava a rua.

Senhor! que grande cidade! Nunca tinha visto nada parecido, De lá, de onde vinha, era tão negra a noite! Uma única lanterna para iluminar toda a rua. As casinhas de madeira são baixas e fechadas por trás dos postigos; desde o cair da noite, não se encontra mais ninguém fora, toda gente permanece bem enfunada em casa, e só os cães,às centenas e aos milhares,uivam, latem, durante a noite. Mas, em compensação, lá era tão quente; davam-lhe de comer... ao passo que ali... Meu Deus! se ele ao menos tivesse alguma coisa para comer! E que desordem, que grande algazarra ali, que claridade, quanta gente, cavalos, carruagens... e o frio, ah! este frio! O nevoeiro gela em filamentos nas ventas dos cavalos que galopam; através da neve friável o ferro dos cascos tine contra a calçada;toda gente se apressa e se acotovela, e, meu Deus! como gostaria de comer qualquer coisa, e como de repente seus dedinhos lhe doem! Um agente de policia passa ao lado da criança e se volta, para fingir que não vê.

Eis uma rua ainda: como é larga! Esmaga-lo-ão ali, seguramente; como todo mundo grita, vai, vem e corre, e como está claro, como é claro! Que é aquilo ali? Ah! uma grande vidraça, e atrás dessa vidraça um quarto, com uma árvore que sobe até o teto; é um pinheiro, uma árvore de Natal onde há muitas luzes, muitos objetos pequenos, frutas douradas, e em torno bonecas e cavalinhos. No quarto há crianças que correm; estão bem vestidas e muito limpas, riem e brincam, comem e bebem alguma coisa. Eis ali uma menina que se pôs a dançar com um rapazinho. Que bonita menina! Ouve-se música através da vidraça. A criança olha, surpresa; logo sorri, enquanto os dedos dos seus pobres pezinhos doem e os das mãos se tornaram tão roxos, que não podem se dobrar nem mesmo se mover. De repente o menino se lembrou de que seus dedos doem muito; põe-se a chorar, corre para mais longe, e eis que, através de uma vidraça, avista ainda um quarto, e neste outra árvore, mas sobre as mesas há bolos de todas as qualidades, bolos de amêndoa, vermelhos, amarelos, e eis sentadas quatro formosas damas que distribuem bolos a todos os que se apresentem. A cada instante, a porta se abre para um senhor que entra. Na ponta dos pés, o menino se aproximou, abriu a porta e bruscamente entrou. Hu! com que gritos e gestos o repeliram! Uma senhora se aproximou logo, meteu-lhe furtivamente uma moeda na mão, abrindo-lhe ela mesma a porta da rua. Como ele teve medo! Mas a moeda rolou pelos degraus com um tilintar sonoro: ele não tinha podido fechar os dedinhos para segurá-la. O menino apertou o passo para ir mais longe - nem ele mesmo sabe aonde. Tem vontade de chorar; mas dessa vez tem medo e corre. Corre soprando os dedos. Uma angústia o domina, por se sentir tão só e abandonado, quando, de repente: Senhor! Que poderá ser ainda? Uma multidão que se detém, que olha com curiosidade. Em uma janela, através da vidraça, há três grandes bonecos vestidos com roupas vermelhas e verdes e que parecem vivos! Um velho sentado parece tocar violino, dois outros estão em pé junto de e tocam violinos menores, e todos maneiam em cadência as delicadas cabeças, olham uns para os outros, enquanto seus lábios se mexem; falam, devem falar - de verdade - e, se não se ouve nada, é por causa da vidraça. O menino julgou, a princípio, que eram pessoas vivas, e, quando finalmente compreendeu que eram bonecos, pôs-se de súbito a rir. Nunca tinha visto bonecos assim, nem mesmo suspeitava que existissem! Certamente, desejaria chorar, mas era tão cômico, tão engraçado ver esses bonecos! De repente pareceu-lhe que alguém o puxava por trás. Um moleque grande, malvado, que estava ao lado dele, deu-lhe de repente um tapa na cabeça, derrubou o seu gorrinho e passou-lhe uma rasteira. O menino rolou pelo chão, algumas pessoas se puseram a gritar: aterrorizado, ele se levantou para fugir depressa e correu com quantas pernas tinha, sem saber para onde. Atravessou o portão de uma cocheira, penetrou num pátio e sentou-se atrás de um monte de lenha. "Aqui, pelo menos", refletiu ele, "não me acharão: está muito escuro."

Sentou-se e encolheu-se, sem poder retomar fôlego, de tanto medo, e bruscamente, pois foi muito rápido, sentiu um grande bem-estar, as mãos e os pés tinham deixado de doer, e sentia calor, muito calor, como ao pé de uma estufa. Subitamente se mexeu: um pouco mais e ia dormir! Como seria bom dormir nesse lugar! "mais um instante e irei ver outra vez os bonecos", pensou o menino, que sorriu à sua lembrança: "Podia jurar que eram vivos!"... E de repente pareceu-lhe que sua mãe lhe cantava uma canção. "Mamãe, vou dormir; ah! como é bom dormir aqui!"

- Venha comigo, vamos ver a árvore de Natal, meu menino - murmurou repentinamente uma voz cheia de doçura.

Ele ainda pensava que era a mãe, mas não, não era ela. Quem então acabava de chamá-lo? Não vê quem, mas alguém está inclinado sobre ele e o abraça no escuro, estende-lhe os braços e... logo... Que claridade! A maravilhosa árvore de Natal! E agora não é um pinheiro, nunca tinha visto árvores semelhantes! Onde se encontra então nesse momento? Tudo brilha, tudo resplandece, e em torno, por toda parte, bonecos - mas não, são meninos e meninas, só que muito luminosos! Todos o cercam, como nas brincadeiras de roda, abraçam-no em seu vôo, tomam-no, levam-no com eles, e ele mesmo voa e vê: distingue sua mãe e lhe sorrir com ar feliz.

- Mamãe! mamãe! Como é bom aqui, mamãe! - exclama a criança. De novo abraça seus companheiros, e gostaria de lhes contar bem depressa a história dos bonecos da vidraça... - Quem são vocês então, meninos? E vocês, meninas, quem são? - pergunta ele, sorrindo-lhes e mandando-lhes beijos.

- Isto... é a árvore de Natal de Cristo - respondem-lhe. - Todos os anos, neste dia, há, na casa de Cristo, uma árvore de Natal, para os meninos que não tiveram sua árvore na terra...

E soube assim que todos aqueles meninos e meninas tinham sido outrora crianças como ele, mas alguns tinham morrido, gelados nos cestos, onde tinham sido abandonados nos degraus das escadas dos palácios de Petersburgo; outros tinham morrido junto às amas, em algum dispensário finlandês; uns sobre o seio exaurido de suas mães, no tempo em que grassava, cruel, a fome de Samara; outros, ainda, sufocados pelo ar mefítico de um vagão de terceira classe. Mas todos estão ali nesse momento, todos são agora como anjos, todos juntos a Cristo, e Ele, no meio das crianças, estende as mãos para abençoá-las e às pobres mães... E as mães dessas crianças estão ali, todas, num lugar separado, e choram; cada uma reconhece seu filhinho ou filhinha que acorrem voando para elas, abraçam-nas, e com suas mãozinhas enxugam-lhes as lágrimas, recomendando-lhes que não chorem mais, que eles estão muito bem ali...

E nesse lugar, pela manhã, os porteiros descobriram o cadaverzinho de uma criança gelada junto de um monte de lenha. Procurou-se a mãe... Estava morta um pouco adiante; os dois se encontraram no céu, junto ao bom Deus.


Imagem retirada da Internet: Criança faminta.

Pablo Neruda - Poema



Foto by Walter Rosa
A canção desesperada


Emerge a tua lembrança da noite em que estou.
O rio junta ao mar o seu lamento obstinado.

Abandonado como o cais de madrugada.
É a hora de partir, oh abandonado!

Sobre meu o coração chovem frias corolas.
Oh porão de escombros, feroz caverna de náufragos!

Em ti se acumularam as guerras e os voos.
De ti alcançaram as asas dos pássaros do canto.

Tudo engoliste, como a distância.
Como o mar, como o tempo. Tudo em ti foi naufrágio!

Era a alegre hora do assalto e do beijo.
A hora do espanto que ardia como um farol.

Ansiedade de piloto, fúria de um megulhador cego
turva embriaguez de amor, Tudo em ti foi naufrágio!

Na infância de nevoa minha alma alada e ferida.
Descobridor perdido, Tudo em ti foi naufrágio!

Tu senti-se a dor e te agarraste ao desejo.
Caiu-te uma tristeza, Tudo em ti foi naufrágio!

Fiz retroceder a muralha de sombra.
andei mais para l do desejo e do ato.

Oh carne, carne minha, mulher que amei e perdi,
e em ti nesta hora úmida, evoco e canto.

Como um copo albergaste a infinita ternura,
e o infinito esquecimento te espedaçou como a um copo.

Era a negra, negra solidão das ilhas,
e ali, mulher de amor, me acolheram os teus braços.

Era a sede e a fome, e tu foste a fruta.
Era a dor e as ruínas, e tu foste o milagre.

Ah mulher, não sei como me pudeste conter
na terra de tua alma, e na cruz dos teus braços!

Meu desejo de ti foi o mais terrível e curto,
o mais revolto e ébrio, o mais tenso e ávido.

Cemitério de beijos,ainda há fogo nas tuas tumbas,
ainda os cachos ardem bicados de pássaros.

Oh a boca mordida, oh os beijados membros,
oh os famintos dentes, oh os corpos trançados.

Oh a cópula louca da esperança e esforço
em que nos unimos e nos desesperamos.

E a ternura, leve como a água e a farinha.
E a palavra mal começada nos lábios.

Esse foi o meu destino e nele viajou a minha vontade,
e nele caiu a minha vontade, Tudo em ti foi naufrágio!


De tombo em tombo ainda chamejastes e cantaste.
De pé como um marinheiro na proa de um navio.

Ainda floreceste em cantos, ainda rompestes em correntezas.
Oh porão de escombros, poço aberto e amargo.

Pálido mergulhador cego, desventurado fundeiro,
descobridor perdido, Tudo em ti foi naufrágio!

É a hora de partir, a dura e fria hora
que a noite prende a todo horário.

O cinturão ruidoso do mar cinge a costa.
Surgem frias estrelas, emigram negros pássaros.

Abandonado como o cais na madrugada.
Só a sombra trêmula se retorce em minhas mãos.

Ah mais para lá de tudo. Ah mais para lá de tudo.
É a hora de partir. Oh abandonado.


Tradução de Eliane Zagury


In.Neruda: Antologia Poética. Rio de Janeiro: José Olympio, 1999, p.48-51.

Francisco Perna Filho - Poema


VIDENTE



O olho
que vê o não visto
precipita-se
na visão do que não há.

A luz
que trespassa a ausência
converte-se
em ponto cego.

A palavra
que transcende o real
magnifica-se
em metáforas silentes.


Imagem retirada da Internet: Olho 

Jules Morot - Poesia Francesa Contemporânea


MOZART



Leem-se os gregos
suecos, alemães
ou a doce língua
de não sei quantos
de não sei que imóvel pedaço de página
claves de sol
talvez o latim o alano o islandês
e é sempre a mesma música
sempre como um veio numa flor grossa obscena
Diz um   um alfinete   diz outro
um parafuso
pois sim
uma fina difusa coisinha semimorta
semi-deitada
semi-cerrada
uma inteligente coisa muda
maior que um tiro na orelha
pois não
uma espécie de porta
de dor discreta.

Meu bom senhor
olhai
nos prados nas tabernas
nos ermitérios
nos armários
um rasto de cão

Nos óculos do primeiro violino
tudo desaparece.

Tendes vós sono, desejo
de novas estações? Tendes florins?
Tendes, acaso, em dias
já passados
mãos musicais, sinais
de outras mortes?



in “Le mardi-gras” (Honfleur – 2003/8)
Trad. Nicolau Saião


Imagem retirada da Internet:Mozart


Rosa María Teixidor - Poema



Orfeo en el inframundo



te miro a los ojos del abismo
donde ya
no hay salvación para los dos.

***
La mujer gigante
mueve la cola de serpiente
y mira por la ventana la naturaleza muerta.

***
Soledad
que paseas en el palacio de arena
y bailas  con los zapatos de cristal
una triste canción.

***
Eres la mujer invisible
y remas entre las baldosas,
buscando las estrellas que dejaste escritas cuando te marchaste.
***

Fonte: LaOtra
Imagem retirada da Internet: Orfeu

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