Francisco Perna Filho - Poema




Tenho dó de ter dó dos pilantras,
Dos gays não assumidos
Dos infelizes felizes
Das madrastas malvadas amigas.
Tenho dó das mães dos filhos da puta
Dos quebrados que compram à vista
Dos pedófilos que vestem batina
Das putas que assumem maridos.
Tenho dó de quem silencia no grito
De quem propala ser dono das artes
De quem ora e vive pecando
De quem mata e se arrepende da arma.
Tenho dó da dor de quem sofre
Dos abusos dos pais infelizes
Da navalha que corta e é arte
Dos falsos minutos que eternizam.
Tenho dó das monografias plagiadas
Dos políticos safados que abraçam
Daqueles que viram a casaca
Do inferno que por céu é vendido.
Tenho dó de quem corrompe e mata
Do corrompido que se pensa esperto
Do flanelinha que pensa ser dono
Do pedaço de pasto de asfalto.
Tenho dó de quem nunca envelhece
Dos que morrem e querem oração
Dos imbecis que blasfemam o sagrado
Dos otários que se dizem ateus.
Tenho dó de ter dó disso tudo
De quem fala e se cala por medo
De quem finge e não guarda segredo
E na história só quer se dar bem.
Tenho dó da dor deste mundo
dos franciscos,josés, severinos, raimundos,
Tenho dó de mim mesmo,  também.



Mário de Sá-Carneiro - Poema



Como eu não possuo



Olho em volta de mim. Todos possuem —
Um afecto, um sorriso ou um abraço.
Só para mim as ânsias se diluem
E não possuo mesmo quando enlaço.

Roça por mim, em longe, a teoria
Dos espasmos golfados ruivamente;
São êxtases da cor que eu fremiria,
Mas a minh’alma pára e não os sente!

Quero sentir. Não sei… perco-me todo…
Não posso afeiçoar-me nem ser eu:
Falta-me egoísmo para ascender ao céu,
Falta-me unção pra me afundar no lodo.

Não sou amigo de ninguém. Pra o ser
Forçoso me era antes possuir
Quem eu estimasse — ou homem ou mulher,
E eu não logro nunca possuir!…

Castrado de alma e sem saber fixar-me,
Tarde a tarde na minha dor me afundo…
Serei um emigrado doutro mundo
Que nem na minha dor posso encontrar-me?…

Como eu desejo a que ali vai na rua,
Tão ágil, tão agreste, tão de amor…
Como eu quisera emaranhá-la nua,
Bebê-la em espasmos de harmonia e cor!…

Desejo errado… Se a tivera um dia,
Toda sem véus, a carne estilizada
Sob o meu corpo arfando transbordada,
Nem mesmo assim — ó ânsia! — eu a teria…

Eu vibraria só agonizante
Sobre o seu corpo de êxtases doirados,
Se fosse aqueles seios transtornados,
Se fosse aquele sexo aglutinante…

De embate ao meu amor todo me ruo,
E vejo-me em destroço até vencendo:
É que eu teria só, sentindo e sendo
Aquilo que estrebucho e não possuo.



Imagem retirada da Internet: ausência

Amadeus Amado - Poema


Pescador



Nada além
do que sou:
mar,
rio
ou regato.
Em águas
navego,
quedo,
liquefaço-me.




Imagem retirada da Internet: pescador

Betty Millan Entrevista Octávio Paz


Esta entrevista foi originalmente publicada no Jornal Folha de São Paulo, em 19/06/1994, e, posteriormente, no livro "A Força da Palavra", de Betty Milan, pela Editora Record.
                                   Octavio Paz


À jornalista que perguntou a Octavio Paz se ele acaso não temia ficar colado à imagem que a notoriedade lhe dava, ele respondeu: “Não acredito nessas consagrações. A única consagração é um leitor capaz de dialogar com a gente. Não, eu não penso que esteja impressionado com os meus sucessos. A vida inteira as minhas opiniões foram minoritárias”.

Precisamente por querer o diálogo ou o encontro, ele lançou um ensaio sobre o amor, A dupla chama, que não cessa de reenviar o leitor à sua própria experiência e de fazê-lo considerar, através desta, as diferentes ideias do texto.

Escrito para nos convencer do caráter historicamente subversivo do amor, que, contrariando a tradição ocidental, enobreceu o corpo, o livro é um ensaio de poeta. Por isso mesmo, a chama que ele acende não vai se apagar. “O amor é uma flor sangrenta e é também um talismã: a vulnerabilidade dos amantes os protege”, escreve Octavio Paz. E quem poderá se esquecer do que ele diz da pessoa amada: “Terra a descobrir e casa natal”.

Tendo em vista A dupla chama, fui ter com Paz no Hotel Lutetia onde, apesar da minha oposição inicial, ele deu a entrevista num salão repleto. As idas e vindas das pessoas em momento algum o molestaram, e eu, que temia não compreender o seu espanhol, logo fiquei à vontade. Só quando eu não ouvia ou não entendia, Octavio Paz passava do espanhol para o francês, a língua em que eu lhe fazia as perguntas, não por ele desconhecer o português, mas por conhecer menos o português do que o francês, a segunda língua dos escritores latino-americanos da sua geração.

Depois da entrevista, Paz me convidou para tomar um café. Contou-me, durante a conversa, que foi tradutor de Fernando Pessoa e falou com admiração de Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira . 
                                           Betty Milan

BM O senhor diz na introdução ao livro A dupla chama que, antes de escrevê-lo, hesitou muito, mas não teve como não escrever este livro sobre o amor e fez isso com um “desespero alegre”. Que relação o senhor estabelece entre a escrita e o amor?

OP Há uma relação íntima quando se trata de certo tipo de escrita – a escrita literária, a poesia ou o romance. Há muitas formas de escrever. Quando a gente quer expressar algo de muito profundo, escreve um poema ou um romance, procura assim objetivar a paixão. Em geral, a escrita nasce de uma vocação, a gente está condenada a escrever sobre certos temas. Você, que é escritora, sabe disso. Acontece a mesma coisa no amor, que começa com uma atração involuntária – a que a gente está destinada – e depois se converte, através do livre-arbítrio, numa forma de liberdade.

BM O senhor utilizou a palavra condenada. Em que medida existe um livre-arbítrio?

OP Trata-se de uma questão tão antiga quanto a filosofia. Não há resposta e as respostas que eu encontrei me parecem igualmente insatisfatórias. Há uma eterna relação entre a palavra “destino” e a palavra “liberdade”. Os gregos viram isso muito bem. Para que o destino se realize, é necessário que ele conte com a cumplicidade dos homens. Para que Édipo cumpra o seu trágico destino, ele tem que escolher voluntariamente, sem saber o que está fazendo, claro. Quero dizer que em cada ato humano há uma dose de determinismo, mas este não pode se realizar sem a liberdade, que, por sua vez, necessita do destino para se realizar. Podemos dizer que, se a liberdade é uma condição da necessidade, o inverso também é verdadeiro. Não há como considerar separadamente a palavra destino e a palavra liberdade. Os dois termos estão perpetuamente em luta; e um não vive sem o outro.

BM Agora que o senhor já escreveu o livro com um “desespero alegre”, talvez seja possível me dizer por que escolheu o amor como tema.

OP Eu o escrevi com um “desespero alegre” porque o escrevi no final da minha vida. Mas o que importa é que eu o escrevi. Por que o fiz? Desde que comecei, quisera ser, quisera ter sido… a gente até começa a falar no passado… bem, quisera ter sido poeta. Os meus melhores poemas foram de amor. Às vezes foram poemas eróticos. O tema do amor é uma das minhas obsessões, um dos eixos em torno dos quais girou a minha vida pessoal e também a minha vida intelectual.

BM Sim, mas por que o senhor escreveu um ensaio?

OP Porque queria explicar o amor para mim mesmo. Quando comecei a escrever poemas, eu me disse que precisava escrever algum ensaio para justificar o ato aparentemente absurdo de escrever poemas. O mesmo ocorreu com o amor.

BM O senhor afirma que Platão  teria ficado escandalizado com o que nós chamamos amor. Seria possível comentar essa frase?

OP Para Platão, o amor não tinha o sentido que damos a ele e que surgiu na Idade Média com a poesia provençal. O amor, para Platão, era o erotismo, a ação de Eros, o deus da luz e da escuridão, o mensageiro, a força atuante. Platão concebia o amor como um desejo de beleza que terminava na contemplação das ideias eternas. Ademais, o amor não se dirigia a uma mulher, e sim aos efebos. O amor de que falamos, e que hoje pode ser homossexual, nasceu como uma paixão heterossexual. Nele existe um gosto pelo sofrimento, pela tragédia – como em Tristão e Isolda ou Romeu e Julieta –, que teria escandalizado Platão. O amor também escandalizou os cristãos, pelo fato de se colocar numa criatura humana o que é próprio da divindade. Lope de Vega diz que, no amor, a gente busca o eterno no que é perecível. O amor é uma blasfêmia para a Igreja; ele é subversivo diante da filosofia e da religião.

BM O senhor diz que o amor é uma aposta extravagante na liberdade, pois o livre-arbítrio transforma uma atração involuntária entre duas pessoas em união voluntária. Isso é bastante claro quando pensamos em Tristão e Isolda ou em Romeu e Julieta. Mas o romance História de O não é uma aposta extravagante na servidão?

OP A questão é muito interessante. Mas O decide, porque ama René, que deseja se deixar escravizar. Os estoicos pensavam que só se pode afirmar a liberdade dentro dos limites do destino. Epicteto dizia que o escravo tem a liberdade, pelo menos no seu interior, de dizer não. O mesmo ocorre com O, que é uma mulher livre e se vale da liberdade para se converter numa escrava.

BM Cabe perguntar se O teria podido dizer que não queria ser escrava ou, em outras palavras, se ela teria tido a possibilidade subjetiva de escolher a posição de quem não é escrava.

 OP Sim, poderia ter recusado o amor. Falei algumas vezes com Paulhan sobre isso. No meu livro sobre Sade, eu desenvolvo a ideia. O livro se chama Um mais além erótico: Sade, e também acaba de sair pela Gallimard. Contém um poema e dois ensaios. A parte final trata da História de O. Creio que O escolhe a servidão porque está apaixonada. Todos os apaixonados, no fundo, seguem O, na medida em que todos aceitam a servidão. Na poesia provençal, que codificou o amor, se diz que o apaixonado é um vassalo e a amada é uma senhora. Mas o apaixonado decidiu se converter em vassalo, por estar apaixonado, ele não nasceu escravo. A origem de O se encontra na poesia provençal. Se O fosse somente masoquista, ela seguiria suas inclinações eróticas e ponto final, mas ela está apaixonada…

BM O senhor não acha que o amor implicaria uma revisão completa da noção de escolha?

OP Sim, porém o amor lança luz sobre a relação entre necessidade e liberdade, sobre o livre-arbítrio, o grande tema do teatro espanhol.

BM O amor move o sol e as estrelas, mas não se dissocia do ódio e pode se tornar mortífero. Por que o senhor só fala do amor como um bem?

OP Mencionam com freqência o caráter mortífero do amor. Possivelmente, eu falo dele, sobretudo como um bem por reação contra essa predileção do século XX, predileção pelos lados negros do amor. Trata-se também de uma reação contra a exaltação do Marquês de Sade… Mas eu penso que o ódio é inseparável do amor.

BM Existe mesmo o conceito de hainamoration, em Lacan.

OP O quê?

BM Hainamoration, um neologismo que junta o ódio (haine) e o amor (amour).

OP Os psicólogos dizem de modo mais ou menos pedante o que os poetas dizem de forma simples. Catulo  diz num poema famoso: “Amo e odeio ao mesmo tempo/ Por que?/ Não sei,/ mas eu disso padeço”. É magnífico, em quatro versos, diz o que os psicólogos e os psicanalistas precisam de mil páginas para dizer.

BM (Risos) O senhor diz, no seu livro, que o amor é incompatível com a infidelidade. Isso significaria que a revolução erótica deste século não mudou em nada a noção tradicional de infidelidade?

OP A revolução erótica nos trouxe uma ideia mais limpa do corpo… O amor não existe sem a liberdade feminina. Por isso, desde sempre, os grandes períodos do amor coincidiram com a liberdade da mulher ou com a sua rebelião. Afinal de contas, Isolda se rebelou, Julieta também…

BM Voltando à questão anterior, eu lhe pergunto se um simples encontro erótico é um ato de infidelidade.

OP Sim, em geral sim, porque o amor está fundado na união do corpo e do espírito. No passado, havia o problema da paternidade. Hoje, a infidelidade é menos grave, porque não interfere na procriação, mas o amor parte da decisão de que “iremos juntos até o final”.

BM Será mesmo que a revolução erótica não implica que possa haver fidelidade do espírito e liberdade do corpo?

OP Parece complicado. As experiências dos que tentaram esse tipo de amizade amorosa não deram certo. É muito difícil evitar o sofrimento do companheiro. A infidelidade, em si mesma, poderia não ser grave, mas fere profundamente o outro. Isso, todos nós sabemos pela experiência.

BM Os autores árabes celebram os amores castos. Qual a diferença entre a erótica árabe e a platônica?

OP A ideia da castidade é uma ideia muito antiga. No Oriente, nasce da ideia de que toda descarga sexual implica perda de vida. É preciso ser casto para conseguir mais vida. A castidade é uma receita de imortalidade. No taoísmo e na ioga, a castidade existe para que o sujeito tenha mais controle sobre si mesmo. No caso de Platão, a castidade está ligada ao dualismo do corpo e da alma e à necessidade de salvar esta última. Cada ato sexual, para ele, é uma queda no mundo informe da matéria. Nós amamos uma forma; porém, no momento em que a abraçamos, ela se dissolve. Isso, para mim, é maravilhoso, porque é um contato com o universo.

 BM O senhor escreve que a maior defesa contra a Aids é o amor, por implicar a fidelidade. A sua posição é a do papa.

OP Possivelmente. Mas D. H. Lawrence já dizia que o papa sabia mais de sexo e erotismo do que os tratados todos.

BM Segundo o seu livro, o último grande movimento estético do século XX teria sido o surrealismo, e o movimento beat  foi uma derivação daquele. Seria possível explicar isso?

OP Toda a doutrina da beat generation parte da espontaneidade da escrita, que é uma ideia dos surrealistas.

BM Obrigada pela entrevista.

OP Você quer tomar um café?

BM Aceito.


In. A Força da Palavra. Rio de Janeiro: Record, 1996, p.25-31.


Manuel Bandeira - Poema



BALADA DE SANTA MARIA EGIPCÍACA



Santa Maria Egipcíaca seguia
Em peregrinação à terra do Senhor.

Caía o crepúsculo, e era como um triste sorriso de mártir.

Santa Maria Egipciaca chegou
À beira de um grande rio.
Era tão longe a outra margem!
E estava junto à ribanceira,
Num barco,
Um homem de olhar duro.

Santa Maria Egipciaca rogou:
- Leva-me ao outro lado.
Não tenho dinheiro. O Senhor te abençoe.

O homem duro fitou-a sem dó.

Caía o crepúsculo, e era como um triste sorriso de mártir.

- Não tenho dinheiro. O Senhor te abençoe.
Leva-me ao outro lado.
O homem duro escarneceu: - Não tens dinheiro,
Mulher, mas tens teu corpo. Dá-me teu corpo
[e vou levar-te.

E fêz um gesto. E a santa sorriu,
Na graça divina, ao gesto que ele fez.

Santa Maria Egipcíaca despiu
O manto, e entregou ao barqueiro
a santidade da sua nudez.



Imagem retirada da Internet: deusa e santa

Rui Barbosa - Oração aos Moços.


ORAÇÃO E TRABALHO



Mas, se a sociedade não pode igualar os que a natureza criou desiguais, cada um nos limites da sua energia moral, pode reagir sobre a desigualdades nativas pela Educação, atividade e perseverança. Tal a missão do trabalho.

Os portentos de que esta força é capaz, ninguém os calcula. Suas vitórias na reconstituição da criatura mal dotada só se comparam às da oração.

Oração e trabalho são os recursos mais poderosos na criação moral do homem. A oração é o íntimo sublimar-se da alma pelo contato com Deus. O trabalho é o inteirar, o desenvolver, o apurar das energias do corpo e do espírito, mediante a ação contínua sobre si mesmos e sobre o mundo onde labutamos.

O indivíduo que trabalha acerca-se continuamente do autor de todas as coisas, tomando na sua obra uma parte de que depende também a dele. O criador começa e a criatura acaba a criação de si própria.

Quem quer, pois, que trabalhe, está em oração ao Senhor. Oração pelos atos, ela emparelha com a oração pelo culto. Nem pode ser que uma ande verdadeiramente sem a outra. Não é trabalho digno de tal nome o do mau; porque a malícia do trabalhador o contamina. Não é oração aceitável a do ocioso; porque a ociosidade a dessagra. Mas quando o trabalho, a segunda criação do homem, a criação do homem pelo homem, semelha, às vezes, em maravilhas, a criação do homem pelo divino Criador.

Ninguém desanime, pois, de que o berço lhe não fosse generoso, ninguém se creia malfadado por lhe minguarem, de nascença, haveres e qualidades. Em tudo isso não há surpresa que se não possam esperar da tenacidade e santidade no trabalho.


Imagem retirada da Internet: deseiguais

Jádson Barros Neves - Conto


O Prêmio de Martim



Pela terceira vez, Martim sentou-se na cama e sacudiu a cabeça na tentativa de espantar as luminosas borboletas da insônia. Eram quase quatro horas da madrugada, e desde as duas estava acordado. Depois da meia-noite, dormira um sono breve e agitado. Sonhou que entrava num quarto que cheirava a flores machucadas, em cujo centro uma mulher deslumbrante, de pele ambarina e cabelos verdes, penteava-se diante da lua cheia de um espelho. Exatamente no momento em que ele deu o primeiro passo para falar-lhe, ela já se despedia com um sorriso, esfumando-se com rapidez e intensidade de estrela. Sozinho, Martim compreendeu que tinha de acordar. Viu-se, por um instante, murcho e desamparado dentro da superfície impenetrável do espelho; disse algumas palavras sem sentido, que se perderam no vazio dos dois quartos, e despertou suado. Desde então não conseguiu mais dormir.

Sentou-se na cama, de frente para a janela, pensando na pacata solteirice que se tornara sua vida. Depois se levantou e acendeu a lâmpada. Andou de um lado para outro, lembrando que seus dias não passavam de uma sucessão de manhãs em quartos pobres e de contemplações noturnas de corpos femininos cansados e cheirando a sexo. A verdade, porém, é que Martim vivia sozinho e, de tanto viver só, adquirira hábitos estranhos, como falar com os mortos e conhecer o momento em que uma rosa cheira mais. Vindo de longe, do silêncio e da profundidade da noite lá fora, ouviu o canto remoto de um socó. Então pensou: “Amanhã faz dois anos que mamãe morreu”. Sempre que recordava esse fato, ele mergulhava num silêncio pensativo e resignado. 

Cansado de andar pelo quarto, observando os cantos das paredes, dirigiu-se à janela. Abriu-a. Na linha do horizonte, e através da neblina que envolvia as casas, contemplou os primeiros fulgores do dia. Ouviu mais uma vez o canto distante do pássaro e pensou: “Devem ser mais de cinco horas”. Acendeu um cigarro. Fumou encostado à janela até quando o sol se revelou em sua absoluta extensão. A névoa se dissipou, e os homens saíram de seus casebres úmidos com jamanchins às costas para dirigirem-se à floresta.

Pelas dez horas, resolveu deixar o quarto. Quando atravessava o estreito corredor de tábuas, indo para o banheiro, o porteiro perguntou-lhe se ele havia bebido na noite anterior. Martim declarou que não. Diante do espelho, porém, verificou que tinha uma cara de ressaca. Barbeou-se meticulosamente, tentando dar ao rosto o que ele mesmo chamava de uma expressão menos fatal. Novamente dentro do aposento, vestiu-se.

Ao passar pela portaria, o homem o chamou:

- Tem um recado para o senhor sobre a mesa, patrão - disse.
Martim olhou para o porteiro inclinado sobre o caderno de anotações e, em seguida, para a mesa. Havia uma folha de papel amarelada, na qual estava escrito com uma caligrafia regular e redonda: “De qualquer modo, até o final desta noite você estará morto”.
- Quem o deixou? 
- Um menino apressado - respondeu o homem, erguendo a cabeça.
- Curioso... aqui diz que vou morrer. - disse Martim com uma espécie de suspiro desiludido.

Era uma manhã tranquila, iluminada por um sol brando. Pouca gente se encontrava na rua do povoado, constituído unicamente por duas filas paralelas de casas de tábuas com coberturas de lona.

Andou durante uma hora, procurando algo que não sabia definir com clareza o que fosse, e que de uma forma confusa se assemelhava a uma esquina. Tinha ainda o bilhete esquecido na mão. Quando percebeu que o segurava sem nenhuma razão especial, dobrou-o e o enfiou dentro da carteira, onde também guardava apostas de loteria e poemas escritos em guardanapos. 

Depois do meio-dia, entrou no restaurante; sentou-se de costas para a cozinha, de onde podia observar a rua. A proprietária trouxe-lhe a comida num só prato.

- Ligue a tevê; hoje é dia de revelarem os números da loteria - pediu Martim.
- Hoje só falam sobre o novo presidente - disse a mulher. - Desde ontem à noite o povo está nas ruas de todas as cidades festejando a eleição.
- Menos aqui – disse Martim.
- Aqui não acontece nada – replicou a mulher.

Ela ligou o aparelho. Martim comeu tudo muito devagar. Era um homem pálido e magro, de gestos taciturnos, olhos enormes, e a quem nunca se viu chorando nem cantando nem assobiando, de modo que só podiam recordá-lo pensativo. Toda noite, depois das oito, deitava-se na cama de Angélica, e ali permanecia até as onze, complicando a inverossímil história do homem que perdera o trem das seis porque prolongara em dois minutos o beijo na noiva, e no dia seguinte o perdera novamente porque o prolongara em três minutos, e no terceiro dia perdera-o para sempre porque decidira morar com a noiva, esquecendo a mãe inválida em outra cidade.

Somente às duas horas da tarde, quando a mulher já havia recolhido os pratos e Martim fazia a sesta, o locutor repetiu os números sorteados. Martim não precisou tirar o comprovante de aposta de dentro da carteira - conhecia os números de cor, de tanto repeti-los -, para conferir que desta vez, sim, fora premiado. Deu uma volta pelo passado, com a mão no peito, e voltou ao presente agarrando-se à mesa e sentindo, de repente, que algo se despedaçara dentro dele e o que era ferruginoso fora lavado. Deixou o dinheiro do almoço sobre a mesa e saiu em silêncio.

Passou sob a chuvinha de flores amarelas, jogadas por um avião da imaginação e, quando ouviu o som da própria voz, já se encontrava batendo à porta de Angélica.

- Abra - gritou.
Por detrás da transparência da camisola e com um ar sonolento, surgiu a amante.
- Puxa, você hoje está com uma cara...
- Veja - disse ele - mostrando-lhe o papel.
- Meu Deus!...- disse ela.
- E então? 

Então ela o agarrou pelo braço, puxou-o para o quarto e fechou a porta. Na cama, ele fazia projetos. Pensou em começar a construir, no dia seguinte, uma casa labiríntica, na qual seria possível até o vento se confundir. Foi também nesse instante que se lembrou novamente da mãe morta e do bilhete que o ameaçava. Mostrou-o a Angélica, que após lê-lo o amassou e o jogou fora.

Martim apagou a luz e se esticou na cama. Amaram-se até a exaustão. Depois notou Angélica se levantar. Percebeu quando ela abriu e fechou a porta do quarto, e ele ouviu também os passos dela pela sala.

O vento da porta, outra vez aberta, agitou a cortina da janela. Mesmo embotado de sono, sentiu o vulto se aproximando da cama e até escutou o ruído do cão de uma arma cujo cano se comprimia contra a cabeça dele, ressoando enorme no silêncio do quarto. Martim se virou de lado, suspirando descansadamente. Ao mesmo tempo em que ouvia o canto longínquo do socó, compreendeu que buscara Angélica com fervor durante todas as noites dos últimos dias, como se os caminhos felizes, imaginados nos momentos de solidão e aflição, conduzissem invariavelmente à carne em flor.

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Jádson Barros Neves, entre outros concursos de que participou, foi o vencedor do 2º lugar do Concurso Internacional de Contos Guimarães Rosa, promovido pela Radio France nternationale/Paris em 2000 (Prêmio Maison de l’Amérique Latine); vencedor do prêmio Cidade de Fortaleza/2003; vencedor do prêmio Domingos Olímpio/2004; vencedor do 12º Concurso de Contos da Região Norte/2004; em 2008, vencedor do Prêmio Cidade de Belo Horizonte, na categoria livro de contos e, agora, em 2011, ganhou o primeiro lugar no Prêmio Ignácio de Loyola Brandão e  duas menções honrosas. 

Imagem retirada da Internet: chuva de pétalas

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