Pablo Neruda - Poema



Gosto quando te calas


Gosto quando te calas porque estás como ausente
e me escutas de longe; minha voz não te toca.
É como se tivessem esses teus olhos voado,
como se houvesse um beijo lacrado a tua boca.

Como as coisas estão repletas de minha alma,
repleta de minha alma, das coisas te irradias.
Borboleta de sonho, és igual à minha alma,
e te assemelhas à palavra melancolia.

Gosto quando te calas e estás como distante.
Como se te queixasses, borboleta em arrulho.
E me escutas de longe. Minha voz não te alcança.
Deixa-me que me cale com teu silêncio puro.

Deixa-me que te fale também com. teu silêncio
claro qual uma lâmpada, simples como um anel.
Tu és igual a noite, calada e constelada.
Teu silêncio é de estrela, tão remoto e singelo.

Gosto quando te calas porque estás como ausente.
Distante e triste como se tivesses morrido.
Uma palavra então e um só sorriso bastam.
E estou alegre, alegre por não ter sido isso.



Tradução :Domingos Carvalho da Silva


In.20 Poemas de Amor e uma canção desesperada.Rio de Janeiro: José Olímpio Editora,1974.
Imagem retirada da Internet: silêncio

Pablo Neruda - Poema



Todos



Eu talvez eu não sei, talvez não pude,
não fui, não vi, não estou:
― que é isto? E em que Junho, em que madeira
cresci até agora, continuarei crescendo?

Não cresci, não cresci, segui morrendo?

Eu repeti nas portas
o som do mar,
dos sinos,
eu perguntei por mim, com encantamento
(com ansiedade mais tarde),
com chocalho, com água,
com doçura,
sempre chegava tarde.
Já estava longe minha anterioridade,
já não me respondia eu a mim mesmo,
eu me havia ido muitas vezes.

Eu fui à próxima casa,
à próxima mulher,
a todas as partes
a perguntar por mim, por ti, por todos
e onde eu estava já não estavam,
tudo estava vazio
porque simplesmente não era hoje,
era amanhã.

Porque buscar em vão
em cada porta em que não existiremos
porque não chegamos ainda?

Assim foi como soube
que eu era exatamente como tu
e como todo mundo.


Tradução: Luiz de Miranda

In. Últimos poemas. Porto Alegre: L&PM Editores,1983. 
Imagem retirada da Internet: porta

Ulisses Tavares - Poema



Esquizo




Tem um cara dentro de mim
Que faz tudo ao contrário:
Não temo amar, ele se borra
Sou esperto, ele é otário
Não amolo ninguém, ele torra
Acredito em tudo, ele é ateu
Sou normal em sexo, ele tarado
Agito sempre, ele fica parado
sou bacana, ele escroto
quem me faz infeliz e torto
É sempre ele, nunca fui eu.

Imagem retirada da Internet: duplo

Braulio Tavares - Poema



A coisa





Eu quero inventar uma coisa, uma coisa viva, uma coisa
que se desprenda de mim e se mova pelo resto do mundo
com pernas que ela terá de crescer de si própria;  
e que seja ela uma máquina viva, uma máquina
capaz de decidir e de duvidar, capaz de se enganar e de mentir.
Uma coisa que não existe. Uma coisa pela primeira vez.
Uma máquina bastarda feita de dobradiças e enzimas
e metonímias e quarks e transistores e estames
e plasma e fotogramas e roupas e sopa primordial...  
Quero apenas que seja uma coisa minha, uma coisa
que eu inventei numa madrugada enquanto vocês dormiam
e quando a vi recuei, e quando a soube pronta duvidei,
e vi a eletricidade do relâmpago abrindo seus olhos
e martelei seu joelho temendo-a, e mandando-a falar,
e gritei: "Levanta-te e anda!"- e a coisa era uma galáxia
tremeluzindo no centro da folha branca, me olhando
com meus olhos de homem, me sorrindo
com tantas bocas de mulher, me envolvendo
com sua sintaxe de coisa nova que força o mundo a mover-se,
fincando uma cunha no Real e se instalando naquela fenda,
como um setor a mais invadido um círculo já completo.
Eu quero que essa coisa existisse, assim como  
eu quis que eu seja. Quero vê-la brotar desarrumando.
Coisa criada, cobra criante, serpente criança,
criatura sentiente, existinte, sente, pensante,
cercada pela linha brusca do seu até-aqui
Essa coisa me conhecerá e não me reconhecerá  
como seu Criador. Essa coisa terá poder de me destruir,  
e de me recompor, e me mandar pedir-lhe a bênção.
Então pedirei. Sairei pelo mundo. Com minhas próprias pernas.
Finalmente leve e livre, tendo parido algo maior do que eu mesmo,
e disposto a me abraçar ao mundo, como quem desce do ônibus
na rodoviária da cidade onde nasceu. Mas o mundo!
O que é esse mundo onde eu ando agora? Olha a cor das casas,
o rosto do povo, o som da fala, a manchete dos jornais, o cheiro
do vento... que mundo é esse para onde retornarei depois de livre?
Fico parado, o coração pulando, e só daqui a pouco perceberei,
com uma surpresa antiga — que aquilo não é mais meu mundo:
e o mundo da coisa, é o mundo da minha Coisa.



In. ANTOLOGIA SONORA – Poesia Paraibana Contemporânea. João Pessoa: Edições O Sebo Cultural, 2009. - Fonte: Antônio Miranda
Imagem retirada da Internet: coisa

Francisco Perna Filho - Poema


Prece 



Afasta de mim,
meu Deus,
este cinza dos olhos,
a lonjura da esperança
e o declive do desengano.
Não permitas
que a zombaria seja fato
nesta tarde,
mas que o afeto
escandalize todo o resto do dia.
Sobriedade, Senhor,
é o que eu peço,
para compor esta elegia
em louvor às ruas desertas,
aos cais abandonados,
e  às ausências perpetuadas.


Imagem retirada da Internet: cais abandonado











Hermann Hesse - Poema


JUNHO EM DIA DE VENTO


O lago está parado feito vidro.
Na alcantilada encosta da colina
ondula em prateado a relva fina.

Lastimosa e com seu temor da morte,
grita no ar uma ave de arribação
cambaleando em curvas indecisas.

Voando para cá, vem do outro lado
um som de foice e um forte olor do prado.


In. Andares. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, p.57.
Imagem retirada da Internet: Lago Llanquihue

Ferreira Gullar - Poema





Cantiga para não morrer     


Quando Você for se embora
moça branca como a neve
me leve
me leve        
Se acaso você não possa
me carregar pela mão
Menina branca de neve
me leve no coração
Se no coração não possa
por acaso me levar
Moça de sonho e de neve
me leve no seu lembrar
e se aí também não possa 
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento
Moça branca como a neve
me leve no esquecimento




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