Cruz e Sousa - Poema



DANÇA DO VENTRE





Torva, febril, torcicolosamente,
numa espiral de elétricos volteios,
na cabeça, nos olhos e nos seios
fluíam-lhe os venenos da serpente.

Ah! que agonia tenebrosa e ardente!
que convulsões, que lúbricos anseios,
quanta volúpia e quantos bamboleios,
que brusco e horrível sensualismo quente.

O ventre, em pinchos, empinava todo
como réptil abjecto sobre o lodo,
espolinhando e retorcido em fúria.

Era a dança macabra e multiforme
de um verme estranho, colossal, enorme,
do demônio sangrento da luxúria!




Imagem retirada da Internet: dança ventre

Cassiano Ricardo




Ficaram-me as penas





O pássaro fugiu, ficaram-me as penas
da sua asa, nas mãos encantadas.
Mas, que é a vida, afinal? Um voo, apenas.
Uma lembrança e outros pequenos nadas.


Passou o vento mau, entre açucenas,
deixou-me só corolas arrancadas...
Despedem-se de mim glorias terrenas.
Fica-me aos pés a poeira das estradas.

A água correu veloz, fica-me a espuma.
Só o tempo não me deixa coisa alguma
até que da própria alma me despoje!

Desfolhados os últimos segredos,
quero agarrar a vida, que me foge,
vão-se-me as horas pelos vãos dos dedos.







Imagem retirada da Internet: tempo

Cassiano Ricardo




Rotação





a esfera
em torno de si mesma
me ensina a espera
a espera me ensina
         a esperança
a esperança me ensina
uma nova espera a nova
espera me ensina
de novo a esperança
           na esfera

a esfera
em torno de si mesma
me ensina a espera
a espera me ensina
         a esperança
a esperança me ensina
uma nova espera a nova
espera me ensina
uma nova esperança
         na esfera
a esfera
em torno de si mesma
me ensina a espera

a espera me ensina
          a esperança
a esperança me ensina
uma nova espera a nova
espera me ensina
uma nova esperança
          na esfera







Imagem retirada da Internet: rolamento

Ronaldo Costa Fernandes - Poema


Lição de anatomia




Sou coisa.
Algo assemelhado a
lápis ou vela
que para existir se consome
esgrimindo garatujas ou se queimando
no fulgor das palavras ou na luz suicida
que ilumina enquanto se imola.

O bumbo dos solitários é o mesmo dos eufóricos
geme a mesma voz surda
no compasso do tempo das matrizes.

A tarde
com seu invólucro de nuvens
conspira com vozes na liturgia dos alvoroços.

A vida é um erro:
alguns chegam a ser sentenciados
                                     a oitenta anos de vida.






In. Andarilho, Rio, 7Letras, 2000)
Imagem retirada da Internet: vela

Cassiano Ricardo




Desejo




As coisas que não conseguem morrer
Só por isso são chamadas eternas.
As estrelas, dolorosas lanternas
Que não sabem o que é deixar de ser.

Ó força incognoscível que governas
O meu querer, como o meu não-querer.
Quisera estar entre as simples luzernas
Que morrem no primeiro entardecer.

Ser deus — e não as coisas mais ditosas
Quanto mais breves, como são as rosas
É não sonhar, é nada mais obter.

Ó alegria dourada de o não ser
Entre as coisas que são, e as nebulosas,
Que não conseguiu dormir nem morrer.





Imagem retirada da Internet: Nebulosa

Gonçalves Dias - Poema



Louise O´Murphy, de Francois Boucher


Sempre ela

 
Per noctem quaesivi, quam diligit anima
mea et non inveni illam,

Cant.Cant.




Eu amo a doce virgem pensativa,
Em cujo rosto a palidez se pinta,
Como nos céus a matutina estrela!
A dor lhe há desbotado a cor das faces,
E o sorriso que lhe roça os lábios
Murcha ledo sorrir nos lábios doutrem.


Tem um timbre de voz que n'alma ecoa,
Tem expressões d'angélica doçura,
E a mente do que as ouve, se perfuma
De amor profundo e de piedade santa,
E exala eflúvios dum odor suave
De aloés, de mirra ou de mais grato incenso.


E nessas horas, quando a mente aflita,
De dor oculta remordida, anseia
Desabrochar-se em confidência amiga,
"Neste mundo o que sou? — triste clamava;
"Pérsica envolta em pó, entre ruínas,
"Erma e sozinha a resolver-me em pranto!


"Flor desbotada em hástea já roída,
"De cujo tronco as outras amarelas
"Já rojam sobre o pó, já murchas pendem!
"É sentir e sofrer a minha vida!"
Merencória dizia, erguendo os olhos
Aos céus dum claro azul, que lhes sorriam.


Nada o mudo alcion por sobre os mares,
E próximo a seu fim desata o canto;
A rosa do Sarão lá se despenha
Nas águas do Jordão: e como a rosa,
Como o cisne, do mar entre os perfumes,
Aos sons duma Harpa interna ela morria!


E como o partor que avista a linda rosa
Nas águas da corrente, e como o nauta
Que vê, que escuta o cisne ir-se embalado
Sobre as águas do mar, cantando a morte;
Eu também a segui — a rosa, o cisne,
Que lá se foi sumir por clima estranho.


E depois que os meus olhos a perderam,
Como se perde a estrela em céus infindos,
Errei por sobre as ondas do oceano,
Sentei-me à sombra das florestas virgens,
Procurando apagar a imagem dela,
Que tão inteira me ficara n'alma!


Embalde aos céus erguendo os olhos turvos
Meu astro procurei entre os mais astros,
Qu'outrora amiga sina me fadara!
Com brilho embaciado e lua incerta
Nos ares se perdeu antes do ocaso,
Deixando-me sem norte em mar d'angústias.



In. Jornal de Poesia
Imagem retirada da Internet: El Clarin
 

Gonçalves Dias - Poema



Seus olhos


Oh! rouvre tes grands yeux dont la paupière tremble,
Tes yeux pleins de langueur;
Leur regard est si beau quand nous sommes ememble!
Rouvre-les; ce regard manque à ma vie, il semble
Que tufermes ton coeur.
Turquety


Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,
De vivo luzir,
Estrelas incertas, que as águas dormentes
Do mar vão ferir;


Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,
Têm meiga expressão,
Mais doce que a brisa, — mais doce que o nauta
De noite cantando, — mais doce que a frauta
Quebrando a solidão,


Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,
De vivo luzir,
São meigos infantes, gentis, engraçados
Brincando a sorrir.


São meigos infantes, brincando, saltando
Em jogo infantil,
Inquietos, travessos; — causando tormento,
Com beijos nos pagam a dor de um momento,
Com modo gentil.


Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,
Assim é que são;
Às vezes luzindo, serenos, tranqüilos,
Às vezes vulcão!


Às vezes, oh! sim, derramam tão fraco,
Tão frouxo brilhar,
Que a mim me parece que o ar lhes falece,
E os olhos tão meigos, que o pranto umedece
Me fazem chorar.


Assim lindo infante, que dorme tranqüilo,
Desperta a chorar;
E mudo e sisudo, cismando mil coisas,
Não pensa — a pensar.



Imagem retirada da Internet: Olhos Negros

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