Juan Gelman - Poema

Juan Gelman


Epitáfio


Un pájaro vivía en mí.
Una flor viajaba en mi sangre.
Mi corazón era un violín.

Quise o no quise. Pero a veces
me quisieron. También a mí
me alegraban: la primavera,
las manos juntas, lo feliz.

¡Digo que el hombre debe serlo!

(Aquí yace un pájaro.
Una flor.
Un violín.)



In Violín y otras cuestiones

Imagem retirada da Internet: Juan Gelman

Francisco Perna Filho - Ensaio curto

Em 1º de setembro de 2004, primeiro dia de aula, um comando que reclamava em particular o fim da guerra na Chechênia manteve mais de mil pessoas no ginásio da escola durante três dias, até quando o exército lançou um assalto. Trezentas e trinta pessoas, entre as quais 186 crianças, morreram na operação. (Fote: Portal Terra)



Uma Temporada no Inferno*




Todas as guerras são abomináveis, traços de bestialidade e incerteza; transgressoras da liberdade e da razão, retalhos de humanidade. Todas as guerras são martírios, segregadoras da alma humana; violento atentado ao espírito; disseminadoras de um ódio gratuito.

Por mais lógica que se possa imaginar ao se declarar uma guerra, ela nos soará sempre paradoxal: não há violência que nos conserte; não há martírio que nos redima.

Toda guerra é imposta, autoritária, ditatorial. Toda ditadura é deprimente, olhar deturpado da realidade, sentimento ameaçador e covarde. Discurso ideológico e sectário; monólogo opressor.

Toda guerra é violenta, e a violência não é local, municipal, estadual ou globalizada. Não é assunto jurisdicional, é ontológica. Alguns a manifestam mais branda, perseguindo, retaliando, alijando; outros, dela são membros, como um braço, uma perna. A ela pertencem e, para esses, a vida é um risco feito a lápis na mão de um deus pagão. Ninguém se salva.

De todas as formas de violência, a infantil é inaceitável, é irremediável, deixa marcas na alma, é ferida que não se cura, transtorna o ser e, quase sempre, dele não se desprega. É na infância que apuramos o olhar para as coisas do mundo. Que definimos as cores do nosso por vir: muitas vezes quente, muitas vezes frias, outras tantas matizadas, quantas sem luz. A violência que pare a violência, como um espelhamento. Lembremos de Mohammed, o prematuro, nascido sob os “auspícios” da Guerra do Iraque; de Intizar, criança que perdeu os braços, também no Iraque, após ser atingido por uma bomba americana, fruto da bestialidade de Bush. Lembremos de Hiroshima, seis de agosto de 1945, às 08:15 da manhã, o piloto de um avião B-29, Paul Tibbets lança a primeira bomba atômica, deixando um lastro de destruição; a cena é repetida em Nagasaki, nove de agosto, com a bomba “Fatman”. Lembremos a cena daquela criança nua, desesperada. Lembremos do Kosovo, uma outra criança chorando, sobre os escombros, a morte dos pais; e agora, numa foto comovente de Segei Dalzhenko, vimos uma criança ensangüentada, desesperada, fugindo dos seqüestradores da Escola de Beslan, na Ossélia do Norte, Rússia.

Não há como se calar, fechar os olhos, diante de tanta barbárie, de tanto medo que nos oprime, da insegurança que invadiu os nossos lares, já que as ruas há muito foram tomadas, brutalizadas, esquecidas.

Há muita dor nos nossos corações, transtornados que estão pela impotência ante o espetáculo a que assistimos: nas ruas de São Paulo, quando mendigos são brutalmente assassinados; no Rio de Janeiro, as balas que se encontram com os seus alvos, porquanto os homens é que estão perdidos. Em Brasília, a violência pública em muitos setores, e a privada? quem não se lembra do índio Galdino “ludicamente” queimado? Uma repetição bárbara e inquisitorial, como em Joana D’Arc. Em Goiânia, quanto crimes insolúveis. Não há mais distinção de classes; não se respeita mais autoridade constituída, todos sentem a mesma dor. Todos pela morte tornam-se iguais.

É uma imensa tristeza que nos massacra, a impotência que nos dói no fundo da alma, um grito desesperado de socorro, sem ter para onde correr, fugir. Quanto mais nos afastamos, mais nos vemos refletidos nessas cenas de barbárie, mais temerosos ficamos, ao protagonizar espetáculos tão brutais.

O que nos resta? Talvez a imagem desesperada das crianças de Beslan, em pânico, tentando sobreviver de rosas, como relataram após serem libertas dos seus algozes. As flores que brotam do caos, como em de Ferreira Goulart, Poema Sujo: Num cofo no quintal na terra preta cresciam plantas e rosas (como pode o perfume nascer assim?). Talvez nos restem os livros, a educação pela palavra, a poesia como motor de toda transformação.


* Título tomado de empréstimo a Jean Arthur Nicolas Rimbaud, poeta francês (1859-1891).



Cecília Meireles - Poema

Balada das dez bailarinas do cassino


Dez bailarinas deslizam
por um chão de espelho.
Têm corpos egípcios com placas douradas,
pálpebras azuis e dedos vermelhos.
Levantam véus brancos, de ingênuos aromas,
e dobram amarelos joelhos.


Andam as dez bailarinas
sem voz, em redor das mesas.
Há mãos sobre facas, dentes sobre flores
e com os charutos toldam as luzes acesas.
Entre a música e a dança escorre
uma sedosa escada de vileza.


As dez bailarinas avançam
como gafanhotos perdidos.
Avançam, recuam, na sala compacta,
empurrando olhares e arranhando o ruído.
Tão nuas se sentem que já vão cobertas
de imaginários, chorosos vestidos.


A dez bailarinas escondem
nos cílios verdes as pupilas.
Em seus quadris fosforescentes,
passa uma faixa de morte tranqüila.
Como quem leva para a terra um filho morto,
levam seu próprio corpo, que baila e cintila.


Os homens gordos olham com um tédio enorme
as dez bailarinas tão frias.
Pobres serpentes sem luxúria,
que são crianças, durante o dia.
Dez anjos anêmicos, de axilas profundas,
embalsamados de melancolia.


Vão perpassando como dez múmias,
as bailarinas fatigadas.
Ramo de nardos inclinando flores
azuis, brancas, verdes, douradas.
Dez mães chorariam, se vissem
as bailarinas de mãos dadas.


In. Mar Absoluto e outros poemas: Retrato Natural. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1983.

Imagem retirada da Internet:pés de bailarina

Francisco Perna Filho - Poema




San José






O que dizer do homem,
devorado pela longa noite,
longe de tudo,
da mulher amada,
dos filhos,
e da luz do dia?




Que pensará esse homem,
sem vestes e proteção,
a perder-se na frágil esperança que carrega,
no apuro de suas mãos silenciosas e impotentes?




Em que país ficaram os seus olhos
as suas preces,
a sua bússola?


O cobre, que procurava,
tornou-se pó,
perdeu-se no turvo da noite,
no desbotado encanto,
na irônica terra que o soterrara.


Nem um canto poderá reconduzi-lo,
não existem pássaros,
somente a terra,
a fundura da mina
e as lembranças a persegui-lo.


Setecentos metros terra a dentro,
milhões de soluços e desencanto,
o homem sozinho no seu pesadelo,
ouvindo o próprio grito,
penseguindo o pulsar lento
da longa noite sem fim.




Foto: Reuters

Machado de Assis - Poema


Livros e flores



Teus olhos são meus livros.
Que livro há aí melhor,
Em que melhor se leia
A página do amor?

Flores me são teus lábios.
Onde há mais bela flor,
Em que melhor se beba
O bálsamo do amor?



Machado de Assis - Poema



















A uma senhora
que me pediu versos




Pensa em ti mesma, acharás
Melhor poesia,
Viveza, graça, alegria,
Doçura e paz.

Se já dei flores um dia,
Quando rapaz,
As que ora dou têm assaz
Melancolia.

Uma só das horas tuas
Valem um mês
Das almas já ressequidas.

Os sóis e as luas
Creio bem que Deus os fez
Para outras vidas.




In. Jornal de Poesia
Foto by António Stª Clara

Machado de Assis - Poema

822582470_05dee8a995.jpg image by rosejc1

A flor do embiroçu



Noite, melhor que o dia, quem não te ama?
Fil. Elis.


Quando a noturna sombra envolve a terra
E à paz convida o lavrador cansado,
À fresca brisa o seio delicado
A branca flor do embiroçu descerra.

E das límpidas lágrimas que chora
A noite amiga, ela recolhe alguma;
A vida bebe na ligeira bruma,
Até que rompe no horizonte a aurora.

Então, à luz nascente, a flor modesta,
Quando tudo o que vive alma recobra,
Languidamente as suas folhas dobra,
E busca o sono quando tudo é festa,

Suave imagem da alma que suspira
E odeia a turba vã! da alma que sente
Agitar-se-lhe a asa impaciente
E a novos mundos transportar-se aspira!

Também ela ama as horas silenciosas,
E quando a vida as lutas interrompe,
Ela da carne os duros elos rompe,
E entrega o seio às ilusões viçosas.

É tudo seu, — tempo, fortuna, espaço,
E o céu azul e os seus milhões de estrelas;
Abrasada de amor, palpita ao vê-las,
E a todas cinge no ideial abraço.

O rosto não encara indiferente,
Nem a traidora mão cândida aperta;
Das mentiras da vida se liberta
E entra no mundo que jamais não mente.

Noite, melhor que o dia, quem não te ama?
Labor ingrato, agitação, fadiga,
Tudo faz esquecer tua asa amiga
Que a alma nos leva onde a ventura a chama.

Ama-te a flor que desabrocha à hora
Em que o último olhar o sol lhe estende,
Vive, embala-se, orvalha-se, rescende,
E as folhas cerra quando rompe a aurora.




In. Jornal de Poesia

Imagem retirada da Internet: flor

Machado de Assis - Poema

Menina e moça



A Ernesto Cibrão




Está naquela idade inquieta e duvidosa,
Que não é dia claro e é já o alvorecer;
Entreaberto botão, entrefechada rosa,
Um pouco de menina e um pouco de mulher.

Às vezes recatada, outras estouvadinha,
Casa no mesmo gesto a loucura e o pudor;
Tem cousas de criança e modos de mocinha,
Estuda o catecismo e lê versos de amor.

Outras vezes valsando, o seio lhe palpita,
De cansaço talvez, talvez de comoção.
Quando a boca vermelha os lábios abre e agita,
Não sei se pede um beijo ou faz uma oração.

Outras vezes beijando a boneca enfeitada,
Olha furtivamente o primo que sorri;
E se corre parece, à brisa enamorada,
Abrir as asas de um anjo e tranças de uma huri.

Quando a sala atravessa, é raro que não lance
Os olhos para o espelho; e raro que ao deitar
Não leia, um quarto de hora, as folhas de um romance
Em que a dama conjugue o eterno verbo amar.

Tem na alcova em que dorme, e descansa de dia,
A cama da boneca ao pé do toucador;
Quando sonha, repete, em santa companhia,
Os livros do colégio e o nome de um doutor.

Alegra-se em ouvindo os compassos da orquestra;
E quando entra num baile, é já dama do tom;
Compensa-lhe a modista os enfados da mestra;
Tem respeito a Geslin, mas adora a Dazon.

Dos cuidados da vida o mais tristonho e acerbo
Para ela é o estudo, excetuando-se talvez
A lição de sintaxe em que combina o verbo
To love, mas sorrindo ao professor de inglês.

Quantas vezes, porém, fitando o olhar no espaço,
Parece acompanhar uma etérea visão;
Quantas cruzando ao seio o delicado braço
Comprime as pulsações do inquieto coração!

Ah! se nesse momento, alucinado, fores
Cair-lhe aos pés, confiar-lhe uma esperança vã,
Hás de vê-la zombar de teus tristes amores,
Rir da tua aventura e contá-la à mamã.

É que esta criatura, adorável, divina,
Nem se pode explicar, nem se pode entender:
Procura-se a mulher e encontra-se a menina,
Quer-se ver a menina e encontra-se a mulher!


In. Jornal de Poesia

Imagem: Almeida Júnior - Moça com livros

O Tempo, o relógio e o menino - Sinésio Dioliveira - Crônica



Andam em círculo

os ponteiros do relógio

não vão longe

cavalgam apenas um dia

depois retomam o mesmo caminho.




quem veja, no lado ingênuo da infância, a melhor fase existencial do homem. Na infância, não se consegue ver gigantes em moinhos. Na infância, não se consegue ver uma pedra no meio do caminho além de uma pedra no meio do caminho.


Eu, particularmente, não me encontro entre esses saudosistas doentiamente agarrados à “infância querida que anos não trazem mais”. Isso porque as alegrias da infância não chegam ao conhecimento do espírito. Não consigo conceber essas alegrias como tais, se não se tem consciência delas. Figurativamente, é como alguém se tornar um passarinho a desbravar o céu e a cantarolar pelas árvores e não ter o maravilhoso conhecimento disso. Esse conhecimento, inclusive, tem muito a ver com as três palavras da grande frase de René Descartes: “Penso, logo existo”.

Esses pensamentos me vieram à mente após um acontecimento que presenciei na rua. O sinal fechou. Parei e fiquei observando as pessoas que atravessavam a faixa de pedestres. A maioria estava apressada, certamente preocupada em ganhar tempo para alguma atividade. Muitas talvez apressadas sem motivo algum. Conheço muito gente assim.
Entre as muitas pessoas, duas chamaram a minha atenção. Na verdade, mais o menino do que sua mãe, que lhe segurava o braço esquerdo por questão de segurança. O menino, que aparentava ter uns seis anos, caminhava meio que arrastado. E a razão disso estava em seu braço direito: um relógio. Ele estava indiferente à movimentação dos carros e pessoas à sua volta.

Seus olhos estavam fixos no relógio. Havia um ar de encantamento em seu semblante. Pela sua empolgação com o objeto, julguei que o relógio foi um presente recebido naquele dia, talvez alguns minutos antes de eu vê-lo. Esse detalhe, o leitor há de convir, é irrelevante em relação ao fato que desencadeou esta crônica.

O menino não enxergou o tempo dentro do objeto. Apenas viu o relógio. Seu coraçãozinho ainda é muito pequeno e por isso incapacitado para enxergar as coisas essenciais que escampam do campo da visibilidade dos olhos.

O tempo é algo que só se enxerga quando a pessoa se desentende como gente, é quando ela toma conhecimento do lado efêmero da vida. Essa constatação por agora é impossível àquele menino. Seu cora-çãozinho ainda é pequeno.

Amanhã, quando os anos não puderem mais trazer a infância daquele menino, ele certamente vai atravessar alguma faixa de pedestres com seu filho, puxando-o pelo braço. Amanhã, quando os anos não puderem mais trazer a infância daquele menino, ele certamente vai enxergar que o bicho gigantesco e feroz enjaulado na caixinha de vidro que ornamenta seu pulso é o tempo: nome que o homem lhe deu sem que o tempo saiba.

Se o menino amanhã, quando homem, enxergar o tempo e aproveitá-lo com uma vivência de alma grande, isso será a materialização do ato de pensar e, consequentemente, a concretização do ato de existir. Se o menino amanhã, quando homem, enxergar o tempo com olhos de alma grande, ele descobrirá que o tempo vale ouro, mas não em gastá-lo na busca insana pelo metal, como tem sido tão comum para muitos homens, que, já bem no finalzinho do seu tempo no mundo dos vivos, quando não há mais tempo, querem, desesperados, viver coisas simples que outrora julgavam inúteis e, assim, compensar o tempo que desperdiçaram.

Tomara que o tempo amanhã, quando homem aquele menino, não o leve embora dessa maneira...


Sinésio Dioliveira é jornalista, professor de Português e fotógrafo (www.flickr.com/photos/sinesiodioliveira/ oliveirasinesio@gmail.com)




Brasigóis Felício - Poema



O PARAÍSO CONFLAGRADO




Na cidade maravilhosa

tudo está em polvorosa:

bandos em bondes

armados até os dentes

descem da Rocinha e Vidigal

Rumo ao paraíso

de São Conrado,

um dos metros quadrados

mais caros do Brasil.

É tanto tiro, que até parece

a Sarajevo, um explodir de minas

na Bósnia Herzegovina

- “deve ser mais legal

ser negão no Senegal”:

Traficantes da pesada

com armamentos de guerra

e coletes à prova de bala


II



Deve existir, em algum

rincão do paraíso tropical

um lugar mais legal

mais humilde e tranqüilo

onde se possa

passear com os filhos

sem escutar tiros disparados

por todos os lados.

Se for aquela ilha

de paz – mar da tranqüilidade –

que buscam turistas artistas,

deste balneário conflagrado

quero manter distância

Deve existir algum lugar

neste planeta água

onde se possa, à noitinha,

colocar cadeiras na calçada

e trocar dedos de prosa

com os vizinhos

- e ver a vida passar,

cheia de graça, sem

fazer pirraça, e sem

tirar o sossego da gente.



Imagem retirada da Internet: tráfico

Antônio Lisboa - Ensaio Crítico


O livro infernal do poeta Valdivino


Por Antônio Lisboa


Literatura feita para chocar. Assim poderia ser sintetizado o mais novo livro do poeta e jornalista Valdivino Braz.



Logo no prefácio o autor adverte: “Presume-se que O Gado de Deus, um livro infernal, escabroso, com personagens infames – a par com os laivos poéticos, filosóficos e divertidos -, possui autonomia para sustentar-se à parte. (...) O leitor esteja preparado. Esta obra é um tratamento de choque, de arrepiar os cabelos e deixar os incautos com cara de ouriço. Exala enxofre, fumega chifre queimado. O riso se transforma em choro e ranger de dentes. Não há, em todo o mundo, um livro como este”.


"...Só o homem livre é pastor de si mesmo, toda e única liberdade é foro íntimo...”


Com o título inicial de As dores da terra antiga, a obra recebeu Menção Honrosa no Concurso Nacional de Romances do Paraná, em 1993.

Saído das oficinas da Editora Kelps e compondo a “Coleção Goiânia em Prosa e Verso”, da Secretaria Municipal da Cultura de Goiânia, O Gado de Deus é, em essência, uma crítica mordaz às infâmias e mazelas produzidas pelo governo militar que tomou o poder no Brasil, em 1964.

Como o próprio autor define, trata-se de um relato corrosivo que expõe por inteiro o lado sórdido da vida.

Na mítica e ao mesmo tempo arena realista em que a trama se desenrola, o Brasil é visto simplesmente como “Pátria”. Nesse palco, desfilam os mais infames personagens e suas vítimas, como “o general, mandando prender e arrebentar, que é hora de tanger o gado ao matadouro”, numa referência ao general João Figueiredo, o último presidente do período militar.

Com uma linguagem poético-filosófica de tom mordaz, o texto de Valdivino Braz refere-se aos agentes da ditadura como “os homens com cabeça de cabaça”.

Marcadamente imagética, a narrativa derrama-se por uma dialética que se embebe e galopa na sonoridade das palavras. Como no trecho: “Na meia-lua ou cutelo lunar da jornada desta vida, deparei-me com pedras tapiocanga no meio do caminho, as pedras da vida e do mundo, incrustadas no fundo de minhas retinas fatigadas, meio que assim numa fadiga fatiada, dado de sobra, a mim, o que se dá em dobro, a pedra dos rins, das torções, dos tropeços e pescoções, e foi então que me vi perdido em selva tenebrosa, sem Dante e sem Drummond...” E o texto se estende por um parágrafo de 24 linhas a fio.


“Os bancos, como Deus e o Diabo, estão por toda parte, em conciliábulos de ordem financeira e armação de arapucas para seus clientes."


Em sua narrativa herética e diabólica, Braz critica a crítica e não perdoa nem a si mesmo, quando se compara ao éter “a conduzir a narrativa deste canhestro romance antirromance”...

A crueza da existência se completa no terror da palavra. Há momentos da escrita em que o autor compõe cenas sinistras: “Abrupto e traiçoeiro, o fio de arame farpado arrebenta-se na cerca; num bote de cobra, chicoteia a cara de Brasilino, e uma farpa fura-lhe o olho esquerdo. Daí que ele, imprecando contra Deus e o mundo, larga mão do ofício de fazedor de cercas”.

Um dos momentos em que a deliberada heresia torna-se mais marcante está no capítulo “As boas-vindas da casa”: “O mundo é dos espertos e dos poderosos, e nas mãos absconsas de Deus depõem-se as almas dos crédulos, o cego rebanho de tolos, tangido com a inadimplência das promessas provindas de bocas imundas, com o bafo do esôfago, e não com o hálito da pureza, nem com o sopro divino que anima o mísero barro”.

No cotidiano de “Pátria”, entre os personagens e situações que infernizam a vida de seus pobres moradores estão, segundo Braz, as instituições bancárias. “Os bancos, como Deus e o Diabo, estão por toda parte, em conciliábulos de ordem financeira e armação de arapucas para seus clientes. Graças a Deus, diz o banqueiro C.R.Cifrão, um cretino. A César o que é de César, reprisa o fanhoso Nazareno, com diploma de contabilista e puxa-saco de gente rica; agarrado feito carrapato em bago de boi, a ver o que lucra com isso. Gentinha desprezível, sem caráter!”

O texto valdiviniano despeja pontiagudas ironias em certos trechos. Como quando situa geograficamente a “Funerária Bom Repouso”, concorrente da “Funerária Vai Com Deus” e o “Cemitério Municipal Seja Bem-Vindo ao Lar”. A escrita ri da inglória, expõe o lado podre de pobres seres e reserva momento especial para os políticos.

Ao trilhar por certa convicção atéia e niilista do autor, a escrita conversa (provoca) o leitor com o seguinte trecho: “Comunga teologia? Eu não estudo Teo, mas vasculho um pouco as coisas de Deo. Está sorrindo. Gostou? Deus é Deus, seja lá o que for, e não seja por isso ficar adulando padre ou pastor. Só o homem livre é pastor de si mesmo, toda e única liberdade é foro íntimo...”

Para o autor, a humanidade é uma doença. Quando projetava este seu O Gado de Deus, Valdivino Braz já prometia: “Antes de morrer, pelas veredas pedregosas do meu cérebro, pelas urzes do meu amargo coração, pelos espinhos de meus cardos pensamentos e pela bile que a vida me derrama aos jatos pela boca, hei de escrever um livro infernal, a grande paródia, um tratado da criatura humana, no que ela tem de pior”. Vade-retro!


Antônio Lisboa é jornalista (UFG) pós-graduado em Comunicação Pública (ESPM).

Imagem retirada da Internet: gado

O Gado de Deus, de Valdivino Braz

Hoje, no Pop House, O Poeta Valdivino autografa seu romance "O Gado de Deus" Rua 1.145, nº 228 – Setor Marista – Nos fundos do Batalhão de Choque da PM. Via de referência: Av. Ricardo Paranhos





Enredos de vidas



O romance que se intenta, experimental, subliminar, alinhava-se com narrativas em função de um feixe fragmentário, mais no sentido mnemônico de espaço e tempo rarefeitos do que de uma trama linear ou nitidamente cronológica. As peças montadas num canhestro mosaico de contexto narrativo. Constitui-se um liame que une as partes e o todo a si mesmo, o caos e o cosmos, enredo e arremedo, como a colcha de retalhos da bandeira de Pátria, a terra-personagem que a tudo engloba, e ali o rio do tempo em que a vida se leva por meandros e metáforas, a par com metonímias topográficas e um rastro de sangue que se alastra pela terra bruta, escalavrada pelos cascos cortantes das bestas de comando e, por sua vez, das bestas de cabestro. O rio feito linha de carretel na agulha, alinhavando no tecido um enredo de vidas. Todas as curvas do rio. Os fios do real cerzindo gerúndios do pano de fundo com o que se tece do imaginário. Farsa. Figuras. Daí o texto como se pretende, mais pela globalidade contextual e menos pelo gênero literário (im)propriamente dito.



In. O Gado de Deus
Foto by Flávio Isaac

Valdivino Braz - Coletânea


PASSOS PASSADOS


Passos que esbarram
nos cristais do orvalho
e roçam nas belas imagens
dos caminhos de pólen e pétalas
por onde pervagueia
minha infância descuidada
meus pulos descalços
ressoando no solo
E minhas mãos querendo alcançar
os pássaros que voejam
no claro espaço das manhãs
meladas de sol.
Passos que se apagam
nos remotos arrebóis
longínquos de mim.
In. A palavra por desígnio


Melancolia Telúrica

V

A hora mais triste da terra,
quando o sol se apaga e a dor é solitária.
Hora de amargura e desespero das almas.
Punge, confrange, apequena, aniquila,
faz-nos sofrer, a luz do dia
que pouco a pouco já não brilha.
Que agonia!
O que fazer para não morrer?

VI

A hora tristonha,
chapada pela luz agonizante do crepúsculo,
hora em que a terra parece não mover
um músculo sequer.
Os paturis se foram já embora,
logo a inquietante quietude das sombras
e os brilhos da noite imperam na água imóvel.
Vitrificada pelo reflexo da luz,
a lagoa se arredonda num espelho cósmico.
Ê mundo melancólico!
Ô lua sonambúlica!
Que noite é essa,
que a tudo abarca
pra Terra do Nunca?
In. Poema da terra perdida


O LABIRINTO EM FLOR


Pensar, pensar, até florir,
incendiar-se o labirinto em flor.
Arranjos florais de uma desordem
— girassóis-girândolas em chamas —,
O caos dentro de sua própria ordem.
Penso a palavra
e se deságuo emoção,
aí procura a razão.
No caos entre uma e outra,
me sustento.
O caos cria, desfaz, diferencia.
Não me construo com a forma,
antes me desmorono,
mais familiarizado com o fundo,
minha fôrma.
Pêndulo no fio de equilíbrio
— gangorra absurda
e um visgo de nada —,
crio vertigens,
vejo o fundo de sangue do que sou.
Imenso, o abismo de um verso.
Me solto do fio,
no fundo me arrebento,
e me incendeio.
Sílex, antes que Fênix.

OS PORTAIS DE AURORA


Ó estúpida,
Desgraçada lucidez!
Quantas auroras são em seu relógio?
A hora clara e o sol,
ovo estrelado
na frigideira do dia.
Tartarugas
— tártaras rugas —
num rolo de tarugos.
Este é meu chão.
Devo envelhecer-me ao sol,
apaziguar meu coração.

In. As lâminas de Zarb
Imagem retirada da Internet: Braz

Valdivino Braz autografa romance no Pop House



Obra parodia e satiriza período da história brasileira





O romance “O Gado de Deus”, do jornalista e escritor Valdivino Braz, tem noite de autógrafos nesta terça-feira, 24, às 20h30, no bar Pop House, localizado no Setor Marista (ver Serviço). O evento conta com o apoio da casa, que abriga iniciativas culturais e convidou o autor para a noite de autógrafos. O livro integra a terceira edição do projeto Coleção Goiânia em Prosa e Verso, da Prefeitura de Goiânia.

Escrito entre os anos 1980 e 1990, “ O Gado de Deus” recebeu certificado de Menção Honrosa no Concurso Nacional de Romances do Paraná, em 1993, quando concorreu com o título “As Dores da Terra Antiga”, uma vez que intercala cenas rurais gravadas na infância do autor. Misto de paródia e sátira, onde um país de nome Pátria é uma clara alegoria, o romance inspira-se na história e no caráter macunaímico da sociedade brasileira, sobretudo no golpe militar de 1964.

“O regime militar foi o Produto Interno Bruto para as narrações contidas no romance, feito um fio elétrico desencapado e sangrento, mesclando-se realidade e ficção. A obra mantinha-se inédita há duas décadas, e não vem a público para repisar o pisoteio do golpe — terra batida de negra memória, já nos anais da história —, mas, sim, retirar da gaveta uma amarelada obra de ficção”, esclarece o autor. Acrescenta, no entanto, que “O Gado de Deus” é um tratamento de choque para sacolejar consciências adormecidas e, quem sabe, suscitar reflexões.

Ainda de acordo com o autor, realidade e ficção compõem um painel com tintas escabrosas, escatológicas, filosóficas, poéticas, hilárias, heréticas e, sobretudo, políticas, sem poupar esquerda ou direita, sociedade e religião, instituições estatais, poderes constituídos e autoridades estabelecidas.

O romance traz “Livro do Ressentimento” como subtítulo. Há personagens baseadas em pessoas reais, de Goiás e de Minas Gerais, além do próprio autor, na irônica figura do menino Inocêncio de Deus Divino. Chorosas e ressentidas, as falas dos personagens são de estarrecer, incluídas umas heresias arrepiantes, envolvendo a Providência Divina. E não é por menos a advertência de Braz na abertura do livro, no sentido de que o leitor esteja preparado.

“O romance lida com o gado, o rebanho de Deus, como se diz da humanidade, logo é um bicho bruto, e não é para espíritos fracos, muito menos para fanáticos religiosos ou ideológicos, embora nada os impeça de ler o livro. Mas lê-lo com inteligência, sem hipocrisia, para entender a dimensão humana dos personagens”, acentua Braz.

Ousado, Valdivino Braz vende seu peixe afirmando que o romance pode não ser um dos melhores do gênero em Goiás, mas é a paródia que faltava na literatura goiana, “que é tão brasileira quanto a de outros estados”. Modesto, como ele se diz em tom maroto, sonha com“O Gado de Deus” no eixo Rio-São Paulo, no vestibular das universidades goianas e nas salas do Ensino Médio.


Sobre o Autor


Valdivino Braz é goiano, residente em Goiânia. Jornalista formado pela Universidade Federal de Goiás, com passagem por vários órgãos de comunicação, como jornais, revistas, televisão, assessorias de imprensa e agência de publicidade. Além de “O Gado de Deus”, publicou dois livros de contos e dez de poemas, seis dos quais premiados em concursos do gênero, inclusive o Prêmio Nacional de Literatura “Cidade de Belo Horizonte”, em 1992, com o livro “A Trompa de Falópio”. É detentor de outras premiações, regional e nacionalmente. Possui obras inéditas e outras em preparo. Há quatro anos escreve para a revista eletrônica “Bula”, de Goiânia, destacada entre as cinco melhores do País. Braz recebeu, em 1996, o Troféu Tiokô de Poesia, da União Brasileira de Escritores – Seção de Goiás (UBE-GO), da qual é secretário-geral reeleito. Em 2004, foi agraciado com o Troféu Goyazes de Poesia “Leodegária de Jesus”, da Academia Goiana de Letras (AGL).



Serviço:

Evento: Noite de autógrafos do romance “O Gado de Deus”, do jornalista e escritor Valdivino Braz

Data: Terça-feira, 24 de agosto de 2010

Horário: 20h30

Apoio: Pop House, bar e eventos culturais (Rua 1.145, nº 228 – Setor Marista – Nos fundos do Batalhão de Choque da PM. Via de referência: Av. Ricardo Paranhos)

Preço do livro: R$ 20,00


Foto by Flávio Isaac

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