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Luís Augusto Cassas - by Meireles Jr. |
A Revista Banzeiro faz uma homenagem ao Poeta Luís Augusto Cassas. Natural de São Luís do Maranhão, de quem herdou o nome, Cassas começou bem cedo na difícil e encantadora arte da poesia. A semeadura foi árdua, o caminho difícil, até que viessem a florescência e os frutos, os quais saboreamos agora. Muitos são os convidados para esta Messe. Autor de uma obra consistente e de reconhecido valor, conforme atesta sua fortuna crítica (que poderá ser lida aqui), Luis Augusto Cassas tem na Poesia, na nobre Poesia, seu ato de FÉ.
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São Luís do Maranhão - Fonte: Secretaria de Turismo - MA |
"Forte e bela poesia, atenta à vida humana e às questões de nosso tempo."
Barroca
solta
os leques das palmeiras
desabrocha
os cocos d’água
e
os seus personal
training
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Caravaggio - Ecce Homo - 1605 |
Os Mestres do Jardim
é segredo da flor de ouro
a mim cabe segurar a haste
que mensagem de interdependência
trazem as flores da existência?
de dois mestres do espírito:
abrindo-me os pesados trincos
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Caravaggio - The Adolescent Bacchus - 1595-1597
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Um
recolhe-se
ao pó
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São Mateus e o anjo - Guido Reni |
Todo
poeta tem direito ao último pedido
Canção
de Dylan cachimbo inglês
ou
o indefectível bife com fritas
Ninguém
poderá recusar o batismo de fogo
de
quem foi o herói de todas as paixões
(Assim
falava Caryl Chessman cela 455
enquanto
engraxava os sapatos vermelhos
pra
assassinar pombos no Central Park)
Se
o cabelo foi penteado não mais importa
Essa
foi a derradeira apresentação
— Inferno de kryptônia que sabes de Dante Alighieri?
O
povo viu a cena na tevê & lavou as mãos nos bares
Ninguém
percebeu que a alta voltagem da descarga elétrica
incendiou-lhe
o fio condutor da memória
antes
do curto-circuito afinal
No
trono onde posa como um decadente deus grego
desenhou
com as unhas o derradeiro poema
Mas
quem quer saber de um poeta sem smoking
&
reclamando do ketchup (na calça) no
dia do prejuízo final?
Na
foto estampada na primeira página dos jornais
o poeta ri Ri da América e dos homens de boa vontade
"Você é o mais novo e moderno poeta a realizar a alquimia da banalidade atual, uma alquimia-denúncia. É original e inusitado, uma espécie de revolta contra a banalização da vida nesta idade de consumismo desvairado. Gostei também de Bhagavad-Brita: A Canção do Beco, em que revela sua força de poeta inventivo e transfigurador do real.
Parabéns e viva a poesia maranhense que o pariu!"
FERREIRA GULLAR
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Roberto Ferri - * 1978 |
1
Decididamente
deve existir por aí uma mulher
manequim 42 sandálias 38
náufraga de luz
vaga
inclinação para hot
dogs e filmes
de Fellini
sem compromissos maiores que
não seja o amor
Ela está estendida nua no
tapete da sala de estar
e secretamente (sem que Dylan
na vitrola perceba)
alisa lentamente as rosas do
púbis
pensando na imagem de um poeta
que a excita
Possivelmente um poeta que os
críticos tacham de louco
desses que os pais de família
chamam de irresponsável
e os executivos fazem aguardar
nas antessalas
(como a flor de plástico
que desabrochará no jarro)
avesso a cortesias e gravatas
italianas
mas cúmplice de todos os
carinhos
capaz de exterminar o estoque
de rosas vermelhas
dos restaurantes e
floriculturas
e doar (por intrépida doçura)
as cerejas de todos os martínis
doces
Ela está só e esqueceu a
identidade burguesa
o vestido francês o concerto de
Shankar
e passeia (na imaginação) por
verdes pradarias
como uma égua servindo-se do
seu cavalo
No cenário nu que a rodeia
o ketchup e o vidro de esmalte vermelho
derramam sangue sobre o tapete
da sala de estar
É uma corça ferida de desejo
no entanto o seu desejo não
está só
2
Decididamente
deve existir por aí uma mulher
estátua viva do mais puro
mármore
musa de mil tentáculos
especialista em naufrágios
vaga inclinação para as causas
mais secretas
sem
compromissos maiores que não seja o amor
Miss noite mademoiselle fúria
(está só nesse instante em que
pisco os olhos)
na janela do apto. em frente
o bico do seio (como um
diamante
ferindo a vidraça)
enquanto durmo e sonho acordado
(com a aurora do seu ventre em
chamas)
desperta em seu quarto na
América
e envia os sinais lânguidos de
leoa acossada
para a selva do meu quarto de
dormir
Decididamente
deve existir por aí uma mulher
que me ensine lições de abismo
(e me atualize o desejo
tempestuoso do amor)
que me toque tão profundamente
(como a brasa acesa toca o
cigarro)
que me dê colo e transcendência
(e me fale de Deus e sexo
Henry Miller e S. Francisco de
Assis)
e responda a questões urgentes
do meu ser
(não com mensagens de sua boca)
mas com palavras quentes de
todo o seu corpo:
o amor é uma turbação?
é uma perturbação?
uma revolução?
uma realização?
um desejo etéreo?
um mistério eterno?
Como compreender o instante e a
eternidade
de amar a terra e o céu ao
mesmo tempo
se tenho amado quem não quero
e não tenho amado quem quero?
Se meu corpo faz o que não
pretendo
e
a minha alma regozija com o que não posso?
Se o gozo das coisas do alto
eleva-me o desejo das coisas de
baixo?
3
Esta noite Deus (em sua
misericórdia)
perdoará o excesso de
fragilidade humana
e descontará a minha fatia de
céu
Mas ainda que me fira a carne
com todos os espinhos
jejue mortifique-me e veja os
sinais de queda
tudo será em vão
Hoje meu céu está na terra
e o desejo é o meu único pastor
Quero escorregar como um sol de
abismo
e no leito da noite num corpo
de mulher
descobrir o paradoxo de todos
os mistérios
desnudar a plenitude de todos
os fracassos
e nas curvas sinuosas do seu
corpo
acender as estrelas da Ursa
Maior
"É de cem saídas o beco de Luís Augusto Cassas, abrindo-se a um fecundo diálogo com a tradição e a experimentação poéticas. Livro de autor que cresce de obra a obra, este Bhagavad-Brita representa, até o momento, o patamar mais elevado da produção poética de Cassas, ao reelaborar antigas dicotomias que fundam nossa civilização e ao propor novos espaços onde essas mesmas dicotomias se interpenetram e se dissolvem, através da síntese fundadora da palavra poética."
Antônio Carlos Secchin
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São Francisco recebendo os estigmas - Caravaggio |
(Arcano
13)
A primeira vez
que
a Morte passou pela minha vida
caíram-me
por terra
a
coroa do império o cetro do orgulho
o
castelo da vaidade
E
fui ficando mais leve
do
enorme peso da vida
A
segunda vez
que
a lâmina da Morte passou pela minha vida
cortou-me
os braços
e
todo o apego fugiu-me por entre os dedos
E
fui ficando mais livre
do
enorme peso de existir
A
terceira vez
que
a lâmina da Morte passou pela minha vida
cortou-me
as pernas
e
aprendi a caminhar com os próprios passos
E
fui ficando mais livre
do
eterno peso de existir
A
quarta vez
que
a lâmina da Morte passou pela minha vida
rasgou-me
o horizonte do coração
e
todas as estrelas do futuro
caíram-me
aos pés
E
fui ficando mais solto
do pesado fardo de ser
A
enésima vez
que
a Morte passou pela minha vida
já
estava podado
de
quase todos os excessos do ego
Separado
o espesso do sutil
reduzido
à essência do ser
E
fui ficando mais leve
do
aéreo peso da vida
A
última vez
que
a Morte passou pela minha vida
decepou-me
o pescoço e a esperança
Minha
cabeça rolou pelos campos de toda memória
Estava
livre de todo o excesso da matéria
e comecei a viver.
"A poesia de Cassas nasceu como Minerva da cabeça de Júpiter. Grego equinocial. Cidadão do mundo. Amante do corpo e do intelecto."
Marco Lucchesi
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Michelangelo Merisi da Caravaggio 1571-1610
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em são luís do maranhão
todo bar tem um santo
que bebe cachaça
na mesa e no balcão
embriaga-se o santo
apóstolo da fuzarca
dos bêbados - proteção -
consome o mar das garrafas
em estado de graça
até se estatelar sóbrio
bêbado como gambá
anônimo de ressaca
em são luís do maranhão
todo bêbado tem um santo
que lhe veste a carapaça
padroeiro da
ilusão
ou o santo é santo bar
ou o milagre é santa farsa
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Mona Lisa - Leonardo Da Vinci |
a vida inteira amei a chuva
como platão amava os elementos
e nietzsche o espírito do vento
protegia-a da fúria dos
relâmpagos
deitada em lençóis de aquecimento
aberto exemplar de “o ser e o tempo”
na horizontalidade de suas curvas
o abajur nos acendia os corpos
incendiária musa em “novecento”
partia úmida e em contentamento
lágrimas nas vidraças a mona lisa
no verão do meu desfalecimento
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Pintura de Celso Antonio de Menezes - Artista Maranhense |
BIOGRAFIA DO AUTOR SEGUNDO O PRÓPRIO
Mestre em becos,
Ph.D. em ladeiras,
Ofm das águas do Maranhão.
Luís Augusto Cassas (2 de Março de 1953, São Luís do Maranhão) nasceu longe, como as utopias, desenvolvendo a vocação para o horizonte.
Trilha o caminho do meio, mas há risco de abocanhar o inteiro. Após ciclo de mortes e transformações, novo nascimento entre duas palavras.
Tendência à profundidade, por estar sempre em queda. Teórico do mais. Hoje, discípulo do menos.
Poeta do alto e do baixo, do externo e do de dentro; às vezes é fogo; às vezes, vento.
De índole solitária, não é membro de nenhuma academia de letras, sindicato ou entidade de classe. Mas aprecia longas caminhadas e bom papo.
Gosta de contemplar a unidade, dispersa na criação: “Embora o olho não perceba, sabe-o o coração”.
A serviço da luz, do belo e do verso. Para ele, o mundo é pura poesia. Não é à toa que o chamam de universo.
"Não tenho dúvidas de que Luís Augusto Cassas é já agora uma das mais belas realizações poéticas engajadas na carne e no sangue e na substância da vida, tirando desta as palavras mais belas e mais tristes e mais vindicativas com que cantar a vida mesma — que a morte, não!"
Antônio Houaiss
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Satã, Adão e Eva" - William Blake |
A Chegada da Luz
cisco no olho. água de piscina.
rôo meu dilúvio como posso.
quem derramou esse oceano
não é só o romance do amor
é mais que a memória do amor
não fosse a biografia do suor
narrando as suas estórias
segredos do espinho à flor:
‑ a noite escura da alma.
‑ a sabedoria e a loucura.
‑ os dois caminhos do amor.
‑ o infanticídio de kosovo?
‑ a explosão das galáxias?
‑ a via crucis e a via láctea?
‑ o eterno renascer do amor.
eu não sou meu país, meus pais, minha
família, minha casa, minha religião, meu carro,
minha conta bancária, minha arcada
dentária, minha glândula pituitária
eu sou o cordão umbilical do sol, o sonho da luz,
a morada do ser, o pássaro e a asa,
a origem e o original, a água e o sal,
a família planetária, a flor azul de belém-efrata
‑ quem és? ‑ sou eu, não temais!
‑ quem sou? eu sou ‑ sempre e jamais!
à causa primeira
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Francisco Goya - Velhos comendo sopa - entre 1819-1923 |
O Nome da Fome
quem lhe fornece a semente
e dá a luz
ao recipiente?
de todas
as formas de fome,
qual o
conteúdo, é o salame?
seja
carboidrato ou ternura,
ronca-lhe
o estômago, a usura.
quando é
anoréxica ou ética,
rói-lhe em
excesso, a metafísica.
mas se é
dietética ou kármica,
subtrai-lhe
ao estro, a lírica,
a
esvaziar-nos, além-ente.
a hidra, é
a mais assassina,
vai
mastigando-nos, al dente,
reclama ao
corpo ao espírito?
de todas
as formas de fome,
amor é o
verdadeiro nome!
"Na poesia brasileira o maranhense Luís Augusto Cassas ocupa um lugar de inconfundível relevo. A sombra e a luz regem, simultâneas, a sua partida e o seu regresso: o seu estar no mundo e a busca já tornada resposta, com a descoberta e o encontro de si mesmo."
Lêdo Ivo
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Roberto Ferri *1978 |
Diabetes
gestos
polidos unhas aparadas
bigodes
tosados pernas cruzadas
que
a arte está é nas ruas
mercados
feiras e prisões
imobilizados
em seus fardões
imortalizados
imorredouros
mortos
A poesia de Cassas é um outdoor luminoso em meio à treva desses tempos sem Deus. Saravá, poeta! Que Minerva te abençoe! A divindade, não o sabão em pó!
ZECA BALEIRO
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Caravaggio - Medusa |
Vejo
a obra reunida de Luís Augusto Cassas. E me espanto com a população que habita
seus livros. Uma demografia incomum. Toda ecumênica. Cheia de beleza. E
frescor. Mais de uma praia. E mais de uma cidade. O mundo e a redescoberta de
sua grande poesia. Uma das mais belas que se escreve hoje no Brasil. E das que
mais me comove.
Algo
de Apollinaire. Algo de Blaise Cendrars.
Mas tocado pelo tempo atual. E com uma síntese toda sua, uma linguagem toda sua
e um acento inconfundível.
A
poesia de Cassas nasceu como Minerva da cabeça de Júpiter. Grego equinocial.
Cidadão do mundo. Amante do corpo e do intelecto.
Para
Cassas, o universo é uma teia de correspondências, em que as pedras e as
estrelas se comunicam sob os céus do Maranhão ou de qualquer parte do Globo.
Como se buscasse a espiral de Deus. O nautilus
invisível.
E
Cassas é este sobrevivente pós-moderno de Babel, o DJ de Deus, o trapezista
luminoso de um circo de palavras, perdido entre alturas e adesões. O universo é
como um iPod. E Cassas busca o modo de fazer o download de alguns resíduos de
Deus que vagam no ciberespaço. Além da pedra. Do sonho. E da estrela. E o livro
do mundo precisa ser lido. Tudo aquilo que diz sem dizer. O espaço entre as
palavras. O branco da página.
Temos
o poeta da cabala do visível, que sai do papel e vai para a vida — nunca saiu
da vida este poeta nietzschiano, atrevido, apaixonado às últimas consequências.
Um
permanente j´accuse como um profeta
do antigo testamento no seio da modernidade. O drama da figura do Pai e da
piedade do Filho. Uma telemaquia de Cassas à procura de Ulisses. A espera do
Pai. E do futuro. E do filho pródigo. E a volta. A transfiguração materna em ampliados
afrescos. Dvořák e o banquete de cordeiros
físicos e metafóricos. O Alfa e o Ômega de uma dor íntima. Ao cabo, o encontro
com Hölderlin, atingindo o ápex de
uma vida dedicada de todo à poesia. Alta voltagem de mistérios e revelações.
Ele
preferiu a escola do abismo. Mais que a de Telêmaco. De quem aprende com as
impurezas do Hades. E ao voltar, como Orfeu, buscou Eurídice por todos os
quadrantes. Mas seus olhos tinham fogo. Sua boca havia sido marcada pela sarça
ardente da poesia. Era demasiado tarde para uma crítica da forma pura. E toda uma
língua forte — cheia de frescor — com uma férrea vontade de levar a termo uma
nova razão de estado da língua de seu país, em que tudo aparece deslocado e
destramado. Sua poesia não tem compromissos. E é livre e compartilha um
ecumenismo raro na literatura brasileira. E aqui não falo apenas de uma
compreensão mística, mas de uma variedade poética e vocabular cheias de
eletricidade. Poeta que canta as belezas do mundo. E suas partes trágicas. Mas
com um sorriso de fundo permanente.
A
Obra Reunida aqui está. Cassas tem agora a imagem do próprio rosto. O itinerarium mentis. As confissões deste
Augustinho pós-moderno, maranhense e brasileiro.
Considero
caleidoscópica a cartografia poética engendrada por Luís Augusto Cassas porque,
recusando-se, criativamente, a se enquadrar de forma passiva nesta ou naquela
vertente estético-filosófica, sua poesia,
portando exacerbada sede
de eternidade e
ânsia de infinito, transcende, pelo alto poder transfigurador
de que se reveste, as gramáticas mais rígidas e convencionais das elaborações
epistemológicas mais previsíveis e, guiada por uma peculiaríssima e
transgressora lógica que rompe os interditos, venham eles de onde vierem,
propõe, universal e transdialeticamente,
uma espécie de
holística compreensão da
realidade; atravessada por uma visceralmente dramática
compreensão do universo, através
de um vertical incursionamento pelas camadas mais abismais da sua significativa
e errante personagem histórica, e protagonista maior: o homem, com os seus desafiadores
enigmas e encantatórios sortilégios.
Franklin de Oliveira
Da
geração de poetas maranhenses que encontrou em Ferreira Gullar, Bandeira Tribuzi
e Nauro Machado as suas figuras mais representativas, talvez o nome mais
destinado a obter ressonância nacional seja o de Luís Augusto Cassas. O fazer
lírico do grupo que o antecedeu trilhou dois caminhos, não antagônicos, mas
complementares: o da poesia social (Gullar, Tribuzi) e o da poesia existencial
(Nauro Machado). Situado nessa encruzilhada, Luís Augusto Cassas celebra o
seu canto abrindo a via de um
compromisso entre aquelas duas grandes vertentes poéticas. Desta posição de
equilíbrio, Cassas extrai a força de sua poesia, que é a arte da palavra em el tiempo, como queria o grande Antônio
Machado.
O
tempo — o seu tempo vivido e celebrado!— reflete-se na sua linguagem perpassada
pelos objetos do quotidiano — os objetos, as sensações, as impressões. É essa
linguagem, enquanto metáfora do tempo, que imprime timbre social à sua poesia.
Ela socializa a sua poemática. Mas o substratum lírico da
poeticidade de Cassas, esse está preso à subjetividade do poeta, e com tal
intensidade a ela se vincula que, por vezes, leva a temática social a
desembocar no estuário do mais fremente lirismo de índole privatista. A sua
seria, portanto, uma poética condenada a desnortear o leitor, se a vigilante
autenticidade de sua emoção pudesse ser colocada em dúvida. Tal não acontece: Luís Augusto Cassas sabe
que o poeta jamais conseguiria dar voz ao mundo, sobretudo ao mundo social, se
fosse incapaz de conferir
liricidade às angústias humanas. No seu
canto o desespero social e o desespero individual estão correlacionados.
Defrontam-se, confrontam-se e se resolvem numa grande integração artística.
República
dos Becos
é um ardente testemunho dessa ambiguidade básica da poesia. Ela celebra, na sua
magia vocabular — a palavra é canto, mesmo quando é a rude palavra arrancada
ao quotidiano: a esperança de um tempo que aos homens só
oferece a perspectiva das vias sem saída. Cassas busca a sua e a nossa
saída. Eis por que todos reclamamos a
companhia do seu poema.
República dos Becos ilustra o estar no mundo com a consciência iluminada.
Josué Montelo
Alcântara, envolta de silêncio, defronte de São Luís,
no Maranhão, tem agora o seu poeta. Luís Augusto Cassas.
Luís Augusto Cassas conciliou ternura
romântica e protesto moderno, no tom elegíaco de seu
livro: A Paixão segundo Alcântara. O poeta maranhense, já veterano do verso,
encontrou o tom adequado para celebrar liricamente a velha cidade. Em vez de
chorar sobre suas ruínas e seu silêncio, cantou-a em tom de elegia moderna, com
o lamento associado à denúncia.
Alcântara estava à espera de quem a cantasse no tom
do poeta moço. Outros poetas a cantaram,
quase a carpir-lhe a morte. Luís Augusto
Cassas passeou por suas ruínas a emoção viva de quem canta com um tom de
esperança. Certa nota irônica, em meio à elegia, já é essa esperança. O que eu não disse em prosa, na
minha Noite sobre Alcântara, disse-o agora Luís Augusto
Cassas.
Prosseguindo nos caminhos abertos pelo vigoroso
imagismo de A República dos Becos (que me alegro de haver publicado ao lado de dezenas
e dezenas de outros bons poetas deste país, quando fui coordenador também das
edições de poesia na Editora Civilização
Brasileira) e de A Paixão segundo Alcântara, este Rosebud, somando-se
aos dois livros que o antecederam, coloca o maranhense Luís Augusto Cassas entre
as autenticidades criadoras da atual poesia brasileira e o torna de menção
obrigatória em qualquer antologia que se queira honesta e verdadeira.
Irônicos, bem pensados, sofridos, gozadores, às
vezes amargos, todos eixados em torno de uma visão de mundo revoltadamente
estruturada e religando os atos e as
coisas mais simples do cotidiano com importantes nomes e fatos
da história e da cultura mundiais, os seus versos são como / nas pontas de facas
atiradas contra e estourando os enorme balões coloridos — inflados de mentiras
e hipocrisias e desumanizações — com que as nossas elites econômicas alardeiam
as suas riquezas sobre a pobreza moral e física de mais de cem milhões de
brasileiros.
Isento do panfletarismo superficial e boboca (e,
portanto, politicamente deformante e errado) dos que se querem “poetas
engajados” sem as filosóficas busca e conquista de uma técnica de pensar
essencialmente antissectária porque dialeticamente libertária, Cassas é, neste sentido,
um autor de poemas realmente significantes porque alinhados ao lado de afirmações
como as do filósofo Arthur Giannotti
de que “houve uma
espécie de transposição
da loja de
departamento para a cultura como tal. A cultura está sendo
apresentada como um supermercado” e de que “ser de esquerda hoje é, por
exemplo, realizar a crítica aos
defeitos alienantes da
técnica no capitalismo”;
ou como as
desse percuciente jornalista que é o Zuenir Ventura quando acentua que
“no Brasil, onde não há resistência crítica a essa ditadura do marketing, há de
fato o perigo de se cair no reino da mediocridade bem-sucedida, se é que já não
caímos”.
Cassas sabe e sente isso. E por isso deve ser lido
em seus três livros raivosamente xilografados no tempo porque conscientes de
serem o avesso do amor humano que se sabe engaiolado nas alienações de uma história
sem Liberdade porque de poucos opressores e de multidões de oprimidos.
A poesia como um desesperado recurso de
sobrevivência. Resistir, ironizar, tanger o lugar comum e transformá-lo num
código. Assim canta o poeta Luís Augusto Cassas. Este seu Rosebud é uma
sucessão de surpresas, deboches e distanciamentos de um puro maldito. Mas com a
poesia sempre presente. No discurso mais trivial está a poesia, porque as
linhas e entrelinhas estão curtidas de transcendência. Ele parece ter pudor
destes voos, mas não escapa. Desenha com incisão dolorosa o retrato do poeta, e
nele assomam ressonâncias dos antecedentes — Pessoa, Castro Alves, Drummond,
não devolvidos antropofagicamente, mas gozosamente embutidos, em levíssima
citação, no transcorrer da música do verso.
A música. Poesia é antes, de tudo música, e que bom
instrumento nos dá Luís Augusto Cassas. Lemos derramados e escorregando como de
um tobogã alucinante. É viagem e denúncia, sem interrupção.
“Escrevo com a tinta do ódio”, diz ele. E nisto não
convence. Porque sem amor não galgaria tantas montanhas, não se perderia em
tantos córregos, não tocaria o pó, o sujo, o sublime, o cotidiano com todas as suas
celebrações e seus desgostos.
As dores do mundo estão de repente presentes, como
em Um Poster contra a Posteridade; os desgastes domésticos, como em
Supermercado; a dor, o troco da dor como um sobrante que não se esgota.
Há uma litania perversa em A Mulher dos Lábios de
Atração Turística, onde o trágico vai se metamorfoseando em quase compaixão. Há
jeuxde mots, como em A Indesejada, onde se visualiza um teatro do absurdo, concreto
e escarrado. A arte poética, em Dialética do Olho Roxo, é das mais originais.
Quem atravessar a fronteira desta agressão amorosa não se perderá jamais da
poesia.
Esta sucessão anarquista de provas de amor à poesia,
por sinal, faz deste livro uma Arte Poética inconsútil. A sinistra elegia ao
peru é uma obra prima, uma abrangência do histórico que se faz cotidiano e
imediato, um crime que se mistura à compaixão e à fatalidade do destino. Mesmo
em perigosas situações poéticas como em O Rebanho de Deus, sai-se digno, limpo
e nítido na sua crítica. Há o terrível poema Tratamento de Choque, um dos
modelos perfeitos de sua inversão de valores, aparentemente delirantes, mas
cheios de trágica verdade. E a risada intercalada do Obituário dos Poetas, a
Missa Negra onde a poesia pousa na lápide, a Cronologia do Poema.
Página a página encontro o verdor da poesia, e me gratifico.
Francisco Carvalho
Essa Imitação de Cristo, pela carga de intenções e
pela ambiguidade poderia enriquecer
qualquer antologia de
poetas malditos: “Eu também
tenho 33 anos completos/barba por fazer/paixão por prostitutas ódio da
humanidade/e me crucifico diariamente nos bares da cidade velha”. Sua
poesia é coquetel molotov para “queimar as mãos”. É uma poesia direta de grande
força e marcante individualidade e cujo centro de gravidade reside na
irreverência. Decididamente, você rompe com o lirismo de postura acadêmica ou
de posturas equívocas e com todos os demais compromissos de uma poesia que já
não diz nada a ninguém.
Assis Brasil
Todos os livros anteriores parecem ser uma preparação para este, O
Retorno da Aurea, onde o poeta encontra um caminho, pervagando as múltiplas experiências
místicas para alcançar o que Octávio Paz chamou de “a outridade” do ser
humano. Quatro livros até agora, uma
obra poética já plenamente integrada no
quadro geral da poesia brasileira.
Ele é poeta total, dos calcanhares aos sótãos do espírito. Tão imensa é sua voz, que ressoa nos matagais
da metáfora, arrancando com ela temáticas que vão desde a usura dos cotidianos,
em nós, até os mais vastos vales do empíreo, onde os deuses maquinam o engenho
dos seus versos. Cassas, o executivo da alma, é o poeta do dilúvio e é de fato irmão
gêmeo da luz porque, onde quer que haja luz, a poesia é a sua mais estúpida e
bela consorte.
O Maranhão é terra de poetas, desde o período
inicial da nossa literatura até os dias de hoje. Inúmeros são os exemplos da
excelência da poesia maranhense. Não citarei nomes para não cometer injustiças.
Mas um nome se destaca, não só de lá, como da poesia contemporânea brasileira:
Luís Augusto Cassas. Desde o primeiro livro desse autor, República dos Becos,
editado pela Civilização Brasileira em 1981, seguido dos outros (enviados por
ele: A Paixão segundo Alcântara, pela
RK, 1985; Rosebud, Massao Ohno, 1990; Retorno da Aura, Nórdica, 1994; até
Liturgia da Paixão, Nórdica, 1997), que é um êxtase só, uma expectativa
recompensada, um susto gozoso. Porque
urge que a poesia seja isso que a dele salmodia.
Cassas endereça aos alertas leitores de poesia um
texto brilhante, intelectual e emocionado, inteligente e desesperado, como
raros são os que transcendem o mero malabarismo poético na contemporaneidade.
Ele, não. Cassas, profundamente apaixonado pela
palavra, pela ars poetica,
embrenha-se na sensualidade de uma poética de abismo, de naufrágio, mas que
sabe igualmente alçar-se aos cumes mais altos de um sol a pino, seta para o infinito
da mente que produz o milagre de verter pedra em pão. Ou melhor: amalgamar
pedra e pão.
Enérgica e inquieta, rítmica e impulsiva, vital e
magnética, rebelde e compassiva, impregnada de céu e terra, a poesia extasiada
e extasiante de Luís Augusto Cassas está votada à solidão do mais profundo self, do si-mesmo do poeta, da mesma
maneira que ao apelo do mundo. Entre recolhimento ascético e frenética
multidão, esta poesia se compartilha com a mais nobre fraternidade. Entre paz e
humor sangrando alicates, a coroa de
espinhos do poeta
é amar o
próximo ainda que
distante, invocando: “Senhor/crucifica-me
junto com o outro/pra ver se o suporto no paraíso.” E é assim que, para
este poeta, a duras penas, solidário e sozinho, sangue, suor e lágrimas, eis o
poema: a sua coroa de espinhos. Mas também a sagração da alegria, da alegria da
vida.
Ivan Junqueira
Assim como Eliot celebrou Londres em The Waste Land, ou Baudelaire fez o
mesmo com relação a Paris nos “Tableaux Parisiens”, de Les Fleurs du Mal, ou Joyce também o fez no que toca a Dublin no Ulysses, ou outros mais assim o fizeram
com outras tantas cidades em que nasceram ou
viveram, ou simplesmente amaram —
e não se esqueça aqui daquele Rio de
Janeiro de Machado de Assis ou Lima Barreto — assim também o faz
o poeta Luís Augusto Cassas no que
concerne a São Luís do Maranhão,
dita outrora a Atenas brasileira ou, como ele próprio diz agora em sua Ópera
Barroca: “Ó minha cidade / minha mãe podre
/ porque a vergonha é a minha bengala / e a peçonha é a tua fala / a dor é
lançada em fascículos”. A um tempo amoroso e sarcástico, Cassas deambula
entre as antigas glórias arquitetônico-literárias e as misérias hodiernas da
cidade, essa cidade que já nos legou, além de outras iguarias, os poemas de
Gonçalves Dias e Ferreira Gullar, o ensaísmo de Franklin de
Oliveira e a
cornucópica contribuição ficcional
de Josué Montello, para ficarmos
apenas com esses poucos nomes. Mas o tom geral da Ópera Barroca transita, a
rigor, entre o lamento e o escárnio, pois há pouco (ou quase nada) o que louvar
com relação a um patrimônio histórico, artístico e cultural que o país, com
diligente e criminoso descaso, insiste em ignorar ou devastar sem se dar conta
de que apaga para sempre a sua fisionomia, a sua própria identidade. Como disse
Franklin de Oliveira naquelas inesquecíveis páginas da Morte da Memória Nacional, não somos uma paideia, como o foi a da antiga civilização grega de que todos
descendemos, mas apenas uma “cubata” que a cada dia mais se avilta e que aos
poucos se torna inabitável.
Tem assim a Ópera Barroca, além da virulência
imagística e do pathos escarninho de
seus versos, esse
poder de denúncia
contra um processo predatório que se desenrola com a impunidade dos
crimes a que, por assim dizer, já se afeiçoaram as autoridades nacionais. Daí o
timbre de sarcasmo que ecoa em cada verso, em cada palavra, em cada poema deste
livro amargo e
indignado. Dai, também, a ira do
autor quando deplora: “Ó galinha dos ovos
de agouro/que chocas a nossa grã-miséria:/ titã da realidade funérea/do escalpo
escapo e escapulo/amaldiçoado via aérea/com o espírito impregnado/do chão de
doenças venéreas”.
As rimas surpreendem e, mais do que isto, laceram e
constrangem. A linguagem poética de Cassas evoluiu muito desde Rosebud (1990)
até um recente volume, o esplêndido Bhagavad-Brita: A Canção do Beco. (...).
Seu instrumental muitíssimo se aguçou, e seu ludismo verbal, antes algo
gratuito, ao invés de se esgotar no divertissement
consigo mesmo, serve agora aos propósitos de uma expressão poética que se
evadiu do gozo de si própria não para tornar-se socialmente engajada, mas para
denunciar, à sua maneira escarninha, uma realidade que nenhum poeta brasileiro
digno desse nome pode ignorar.
Nesse sentido — e em muitos outros, estes já de
índole estética — a Ópera Barroca é livro que não pode passar despercebido, já
que reflete não só a maturidade poética de um autor, mas também — o que aqui,
aliás, mais nos importa — uma radical e funda transformação na maneira como o
poeta passou a
encarar-se a si
próprio e a realidade
que o
circunda, uma realidade
que bem poderia
ser degustada num poema como “Pastelaria de Aquém-mar” ou
na magistral síntese de um dos símbolos mais caros à nacionalidade, como se vê
na “Feira do João Paulo”, onde lê-se apenas: “Grécia jamaicana: / tua bandeira republicana/ é um cacho de banana”.
E se ao fim e ao cabo entender o leitor o que acabo de lhe tentar dizer acerca
de um país que ainda não presta e ignora ainda o que seja dignidade humana,
entenda também que a linguagem debochada,
escarninha e sardônica
que instrumenta essa Ópera Barroca é a única que talvez se
preste para deplorar tudo aquilo que, em termos de nação — ou de uma cidade que
já mereceu o epíteto de “Atenas brasileira” — poderia ter sido, e no entanto
ainda não foi.
E não o foi por inépcia, por usura, por corrupção e,
mais do que tudo, por desamor. Lembrai-vos, leitor, do que nos disse São Lucas
em seu Evangelho (X,15): “Tu, Cafarnaum, elevar-te-ás, porventura, até o céu?
Descerás até o inferno”.
César Teixeira
Filho pródigo reincidente, o poeta Luís Augusto
Cassas retorna não à casa do pai (seria elementar, caro Watson), mas à casa da
mãezona, como quem sente saudades da primeira puta. Esse resgate edipiano, sem
prejuízo da aura reconquistada, reúne o poeta maduro ao adolescente lírico que,
após anos de masturbação entre ruínas despidas de azulejos, decidiu novamente
deitar-se com a sua Jocasta numa noite de lua.
Do amor incestuoso pela sua indigente cidade renasce
a notável poesia desse menestrel que conheci no final da década de 1960, quando
já proclamava a República de São Luís entre cachos de cajazinho e copos de
cachaça (o nosso caviar e champanhe dos becos e feiras), depois das fugas do
Liceu Maranhense em direção ao front do Bar do Joaquim, na rua do Passeio,
quando não explodindo as tendas da Ponta d’Areia com garrafas incendiárias.
Para ciúme das meretrizes palacianas e felicidade
geral de boêmios,
ex-lutadores de boxe, crooners
de cabaré e
cafetinas falidas da Zona do Baixo Meretrício, Luís Augusto
Cassas nos dá para ler talvez o seu livro mais irreverente — e, portanto,
louvável —, com o não menos sugestivo título de Ópera Barroca: Guia
Erótico-poético & Serpentário Lírico da Cidade de São Luís do Maranhão.
O autor de Rosebud e O Retorno da Aura
surpreende-nos mais uma vez com a sua nova cria, de quem há anos vinha
encomendando o parto, após insuspeitas traições à família. É que para Cassas a
poesia é uma amante contumaz, que hoje, por força de seu compromisso com as
leis, o obriga a pagar com prestações de dor o amor que lhe dedica anos a fio.
Deve-se dizer que agora está quites, com ou sem desquites.
A mãe, essa puta cidade, certamente está lhe dando
alguns puxões de orelha: “não precisava tanto revelar intimidades”. Mas o
sorriso de Mona Lisa no canto da boca denuncia que a cidade está satisfeita com
o seu filho pródigo. Até porque para ser pródigo tem que fugir sempre de casa,
como fazia o adolescente poeta Arthur Rimbaud antes de tornar-se contrabandista
de armas na África.
Desarmado de navalhas conceituais nesse seu retorno,
em vez do Livro de Thot, Cassas traz debaixo do braço esta nova versão do
Kama-Sutra, e, por um momento (que serve para a eternidade), abre mão dos
arcanos do Tarô para tirar da manga um sujo coringa do seu baralho poético, o
mesmo com que arriscou libidinosas partidas de buraco na ZBM durante décadas.
Este livro
revela a beleza
podre do que
há de melhor na poesia maranhense dos últimos tempos.
Trata-se de um inventário profano e lírico de tudo o que uma cidade, mesmo
depois de estuprada em séculos de pirataria, pôde dar a um poeta apaixonado e
sedento como um beduíno, inclusive a luxúria dos ratos e baratas do subterrâneo
que liga o Palácio dos Leões ao Xirizal do Oscar Frota.
Na Ópera Barroca Luís Augusto Cassas continua o
mesmo, com uma vantagem: não precisou dar explicações a Marx, nem a Lao-Tsé,
muito menos a Bota pra Moer. Padrinho de casamento do Louco com a Temperança,
não deve mais quitanda e o seu fígado está de bem com o mundo e com a poesia da
cidade-puta idolatrada. Lendo a obra vê-se logo que a filha é sua: tem a sua
cara.
E, considerando-se que o poeta Cassas só não é
abstêmio da poesia que procria, quem duvidar, freuda-se.
Hildeberto Barbosa Filho
A lírica contemporânea, na sua formulação estética,
não dispensa, muitas vezes, os conceitos de “apropriação” e
de “paródia” enquanto recursos ou
estratégias discursivas, no sentido de reforçar a dimensão dialógica conatural
à linguagem poética.
O lastro intertextual, portanto,
se torna característico do
texto moderno e contemporâneo ao mesmo tempo em que parece inevitável às
suas múltiplas possibilidades de estruturação. Enfim, o texto poético se quer
autônomo, mas não abdica, contudo, de se transmutar em ecoestilhaçado de textos
alheios. Uma voz que se é enquanto voz única e inconfundível, mas uma voz que
traz consigo, em ambivalências significativas, as identidades fragmentadas do
outro.
Ora, é o que faz o poeta maranhense Luís Augusto
Cassas na composição do poema Titanic-Boulogne: A
Canção de Ana
e Antônio, juntamente com mais
dois outros títulos de sua lavra, Ópera Barroca e O Shopping de Deus & A
Alma do Negócio, ambos de 1998.
Titanic-Boulogne convoca, para
a cena poética,
a história e o
tema dos amantes que se separam e do amor que não se consuma, a partir do drama
especial vivido pelo poeta Gonçalves Dias e Ana Amélia Vale. Ambientado na
cidade de São Luís na segunda metade do século XIX, o poema alegoriza, no seu
intercurso de vozes poéticas reaproveitadas, os contornos daquela tragédia
amorosa.
Como se sabe, ao poeta romântico foi negada a mão de
Ana Amélia em função do preconceito de cor. Desiludido, o poeta viaja para o
Rio de Janeiro e se casa com Olímpia Costa. Ana Amélia, por sua vez, desposa
Domingos Porto. Tempos mais tarde, em Portugal, Antônio reencontra Ana e o amor
reprimido volta a transbordar. É a época em que vem a lume o extraordinário
poema Ainda uma vez — Adeus. Finalmente, em 1864, o veleiro
Ville de Boulogne, em que Gonçalves Dias voltava para São Luís, naufraga e o
poeta morre aos 41 anos de idade.
A tragédia, vivida no plano afetivo, adquire, assim,
uma imponderável dimensão real. A particularidade do drama romântico se
universaliza pela via transfigurativa da visão poética. A história de amor e
morte sai, portanto, do seu restrito território episódico para notabilizar-se
enquanto metáfora das grandes histórias de amor. O poema de Cassas é também
poema de Tristão, de Romeu, de Francesco, de Abelardo e de todo aquele que
mergulha no mar da paixão amorosa.
Por isto mesmo, o
eu poético, para
além de constatar
a experiência vivida (“estamos em pleno mar: o poeta Gonçalves
Dias/promete à Ana e
às tias/amá-la acima
do azar”), reflete
sobre sua natureza
e singularidade, como se
pode observar na
palavra da Providência,
do sugestivo poema da página 63:
“Não existe
fracasso ou êxito
na via do
peregrino
Escusar-se ao
seu destino
é que avilta o
contrato
O amor
consiste-se em buscá-lo
Vivê-lo é
mor-travessia
Que importa à
flor se o talo
desfez-se-lhe a
companhia?”
Ao autor não escapa mesmo a sutil correspondência
dos naufrágios, que envolvem os amantes na impossibilidade de
plenamente viverem a realização do amor. Daí, a correlação entre o
Boulogne e o Titanic, filtrado do filme de James Cameron. De outra parte, a
fusão ambígua de passado e presente,
de romantismo e
pós-modernidade, materializada no espaço intertextual da dicção lírica.
Repassando Gonçalves Dias, Castro Alves, Oswald de
Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e tantos outros que robustecem
a nossa tradição poética, Luís Augusto Cassas, com Titanic-Boulogne ensaia, e
com êxito, a sintaxe do poema monotemático, polifônico, paródico, a reescrever
os sortilégios da experiência amorosa.
Sem escamotear sua inevitável componente trágica, o
poeta como que sinaliza, para o leitor deste fim de milênio, que o Amor está
aí. Está aí como a vida. Como o melhor da vida, pesar da agonia dos naufrágios.
Ecoando Manuel Bandeira, as canções de Luís Augusto
Cassas se localizam no beco, visto como habitat de gente humilde e mística que professa
nas pedras do calçamento a sua peregrinação espiritual. O Beco de Bhagavad-Brita fica em São Luís do Maranhão e traz a
espontaneidade de uma literatura que não descuida dos ritos populares. Trata-se
de um longo canto, dividido em várias estações, enaltecendo este lugar sagrado
que é, a um só tempo, espaço de comunicação com o povo simples da cidade e com
a poesia, vivida misticamente.
Da religião, o poeta incorpora a entrega aos
sentimentos, sendo todo o livro uma maneira de levar o leitor ao encontro da
palavra que o fecha: coração. Sim. Cassas é um poeta da emoção, embora use
várias conquistas estéticas, que se
entrega com fervor a este
objeto de adoração. Sentimos em todos os versos o
pulsar acelerado do poeta, num permanente transe.
Gerana Damulakis
Nono livro de poemas de Luís Augusto Cassas,
Bhagavad-Brita: A Canção do Beco, é um verdadeiro jogo de símbolos dialéticos.
Cassas está arrebatado
por uma dialética
profano/religiosa, por outra entre a pedra, símbolo da realidade, e
o sono, estado em que o sonho é possível.
Há em
Agradecimento Final do Discípulo depois da Iluminação com Pedrada no Cocuruto,
uma conclusão que está longe de ser aquela que manda oferecer a outra face. Há
“a doutrina da terra” porque o que se passou foi: “fragmentos da pedrada/incorporou-me o cimento/que a mente não
soldava”. Esta talvez seja a parte do poema que encerra, de maneira mais
contundente, a filosofia desta poética, antes de mais nada, de uma maturidade
ímpar.
Assim é que “toda
a missão do beco/é tornar-nos coração”. A lírica, neste casamento com a
arte, fez-se poesia pura. Lapidar, cuidada, cultivada, a poesia de
Cassas vem adquirindo uma força e
um estofo só encontrado nos grandes
poemas.
Puro-sangue Cassas certamente não é
— sua brasilidade não o
permitiria. Mas pura poesia isto ele é. Poesia pura, sim, explodindo em criatividade,
atacando com ironia feroz. Em suma: era o vampiro de que estávamos precisando.
O digno herdeiro da Antropofagia de 22.
Jaci Bezerra
Às vezes um livro nos encontra, pleno e redondo, e a
gente tem a sensação de que o tempo, por um momento, nos devolve o instante em
que, num lugar qualquer da infância, descobrimos a alegria de abrir um livro
pela primeira vez. Aquele momento no qual para sempre e mais um dia nos
entregamos, irremediavelmente, à descoberta da leitura e à sua sucessão de
maravilhas. A gente pensa que nunca mais esse acontecimento se repetirá, ao
menos com a mesma intensidade.
E, de fato, à medida que amadurecemos, se torna cada
vez mais raro a gente
descobrir um livro capaz de nos devolver com a mesma intensidade os
sortilégios e os encantos da infância e da mocidade.
Por tudo isso é bom para mim dizer que o seu livro,
Em Nome do Filho, renovou nos meus dias de hoje a alegria e a gula do menino e
aprendiz de leitor que fui em dias
antigos, por tudo que nele é linguagem
nova, invenções, descobertas,
alta poesia e
celebração. Livro impregnado do
que é humano e fraterno.
E, bem mais do que isso, sendo um ato e um gesto de liturgia do
ser e da palavra em louvor de cidade amada e venerada pelo poeta, para além do
tempo é um canto em louvor da vida e do homem.
Inclusive de exortação aos indiferentes e aos omissos.
Daí por que nele tudo é belo e límpido, impregnado
de beleza e manchado de infância e tempo, como se a poesia em você fosse o que
é e realmente parece ter sido sempre: ao mesmo tempo ato de criação e
ressurreição.
Sob esse aspecto, o mais participante de todos os
livros, porque tem o dom de nos encantar e comover, inclusive o de nos fazer
entender e ver, de maneira nova, coisas e tempos novos e antigos, além de nos
ensinar a sermos fraternos e
solidários, como entenderão todos
aqueles que abrindo o seu livro
escutarem esse rumor de fonte que, mesmo
depois de fechado, ressoa em nosso coração e em nossa lembrança.
Monja Coen
Invocando a cura
da cidade, do
povo, das casas,
das ruas, Luís Augusto Cassas desperta em nós a ternura
simples e profunda de amar e cuidar, com o mesmo carinho, as pedras e o
coração.
Leonardo Boff
Esta obra poética de Luís Augusto Cassas é
originalíssima! Fala do Evangelho como
boa notícia, usando dois códigos só possíveis em nosso tempo: o código do
inconsciente coletivo, onde vivem os grandes arquétipos que são os sonhos
ancestrais da humanidade; e o código da astrologia, que fala das Eras de Peixes
e de Aquário, este também um código dos grandes símbolos arquetípicos da
humanidade.
Quando se fala de peixes, não se pensa em peixes,
mas no seu significado simbólico. Peixes está no lugar do espírito de doação
irrestrita, do amor incondicional e da compaixão, espírito este que encontrou
no Cristo da fé sua suprema expressão.
Agora estamos
deixando Peixes, sem
perder nada de
seu valor perene. Entramos em
Aquário, o repositório de todas as águas, aquelas que tudo geraram e de onde
veio também a vida. A vida quer mais vida. Por isso Aquário representa a
solidariedade universal, caminho que leva à plena realização o processo da
individuação humana. Unindo Peixes com Aquário, encontramos aquilo que Luís
Augusto chama, com razão, de “a revolução da compaixão”. É o tempo a se
inaugurar.
Sua
poesia e suas
metáforas devem ser
entendidas neste transfundo
mítico-simbólico-arquetípico.
A mensagem nasce
da ecologia profunda e espiritual: “agora dai notícia ao povo / quem não assumir o lado
peixe / não nascerá de novo”.
Num outro momento, interpela: “lavai as
águas humanos / santificai o profano / seremos o que sempre somos / gotas do
mesmo oceano”. Ponto alto de sua produção poética é seguramente o Elogio da
Delicadeza: “Onde encontrá-la?
/ Está não estando / — cuidando
dos filhos — /(…) com suas mãos de fada / jamais nos fascina: / alivia-nos a
queda / reenvia-nos pra cima”. O sonho final deste evangelho se traduz
nesta conclamação: “afogai em lágrimas /
os sonhos de guerra / transmutando em água / o sangue da terra / desfraldai às
eras / a terra prometida / com o sal da terra / e a água da vida”.
Seu discurso poético revelando universalidade vem
revestido com os peixes, as águas, os rios e o universo ecológico do Maranhão,
conferindo especial singularidade ao seu texto, conjugando, com felicidade, o
local com o global.
Frei Betto
Não sei se louvo aqui o talento poético de Luís
Augusto Cassas, evidente nessas páginas, ou se assumo a postura reverencial de
quem se depara com um novo salmista.
Evangelho dos Peixes para a Ceia de Aquário é uma
obra de profundo vigor literário e
qualidade estética primorosa. O autor literalmente nos convida a um mergulho
nas raízes maranhenses que cada um de
nós traz dentro de si: “que o homem /
peixe é / na enchente de sua fé”.
Se o poeta-salmista assume aqui que a sua “profissão
é ser peixe”, na precisão do
verbo ele resume,
como toda boa
poesia, seu intuito, como se imbuído,
não de uma missão, mas de uma
vocação inelutável que brota da mais primeva
saudação: “Minha profissão é ser peixe: nadar
nas águas do inconsciente coletivo / fazer emergir a compaixão”.
O dizer do poeta é sempre recorrente. Como se o
exclamar trouxesse toda suficiência do falar. Então, as palavras tornam-se
pedras cuidadosamente lapidadas, de modo a revelar tão somente o brilho de seus
significados, sem fraseamento perdulário, nem as amarras da razão a impedir
voos. “meu nome é cristo-lampião / do
sertão da dor / vingança: fazer o bem / e semear o amor”.
Eis um livro-manifesto, um hino à vida, sem
concessões à rima fácil ou aos jargões que traem a identidade poética. “Irmãos do planeta / vençam a correnteza: /
antes que a vida crie / fundo de combate à tristeza / salvem a natureza / assim
seja”.
Luís Augusto Cassas demonstra, neste aquário de
preciosidades, ter atingido a maturidade literária, sem se deixar levar pelo
formalismo em voga dos que nada têm a dizer e pensam que as palavras foram
feitas para ter som e não sentido.
“Evangelho” é o título apropriado
para essa salmodia.
Significa boa nova. Aqui, a novidade é ótima. E salutar.
Paulo Urban
Costumo
dizer, como psicoterapeuta do
encantamento, que os mitos só têm sentido quando podem ser
sentidos. Afinal, de que valeria toda
a mitologia universal
se os mitos
não espelhassem sempre uma nova possibilidade de experiência
da alma humana?
De todos os heróis, digo ainda, o mais completo
deles são os poetas, desde que verdadeiros, como é o caso de Cassas. Poetas
assim, superiores nos dizeres de Pessoa, são pura hybris, posto que vibram a divina obsessão de
responder ao chamado
de sua própria
natureza, que os obriga a romper a dimensão do métron, a não caber nas próprias linhas,
a transformar a ordem das coisas e penetrar puros como crianças nos mistérios
insondáveis, buscando aquele quê de imoralidade inerente a toda transgressão
possível, de modo a libertar a alma dos grilhões de todo preconceito e nos
elevar em suas asas ao voo libertário do mergulho em direção ao numinoso
arquétipo da poesia.
Mais que heróis, os
poetas são p(r)o(f)etas; sabem como ninguém ouvir a voz do daimon conselheiro, e cumprem vislumbrar
paisagens além dos horizontes, para então contar aos homens o que nos espera no
transcorrer dessa nossa história anímica. Os poetas vivem, pois, a perscrutar o
interdito, a penetrar no Mistério, e, antevendo os raios da aurora de uma Nova
Consciência, cantam em
versonância com a grande orquestração divina.
Se cada um de
nós traz uma
missão nesta vida,
a do poeta
é a de se projetar no silêncio
dos abismos e atirar-se de alma em profusão na busca dos segredos do amor e da
dor, da luz e das trevas. Exceção entre os mortais, os poetas ousam penetrar no
mais profundo Hades, franqueados que são por sua própria arte e movidos pelo
quê de amor divino que faz dedilhar a lira de seu próprio coração.
Neste particular, A Mulher que Matou Ana Paula Usher
é, sobretudo, uma trágica história de amor. Mas é, ao mesmo tempo, uma tragédia
de final feliz em que o poeta, morto várias vezes em sua honesta condição egóica, encontra-se,
ao final de uma grande jornada
arquetípica, liberto do
veneno das paixões
por tê-las experimentado
até a última gota. Com isso,
percebe-se transformado pelo fogo da revelação divina, que, embora capaz de nos
fulminar em todos os sentidos, nos permite ressuscitar na Luz do espírito,
diga-se de passagem, permeada em cada uma das entrelinhas que faz brilhar de
amorosidade incondicional a essência desta Obra.
A senha deste opúsculo magistral de poesia alquímica
está guardada em sua Iniciação à Luz pelo
Verso e pelo Pão; são as palavras do Grande Arcanjo que, à Miguel, abençoa
nosso poeterói com as asas do rigor e do amor e o convoca a dissipar de sua
vida toda a ilusão pela força de sua luminosa espada, ainda que preciso seja
sacrificar-se por esta causa.
E Cassas cumpre bem o seu papel de modo a alegrar
seus anjos protetores, mas não sem antes despertar a inveja admirável dos
deuses que, por capricho, o condenam ao sofrimento insólito de, tendo encontrado
nesta vida a sua esposa alquímica, experimentar a profunda dor de concluir ser
este amor humano de todo impraticável e impossível. Sim, a primeira vingança
dos deuses contra seus heróis mais ousados, contra os poetas mais capazes,
desses que insistem em melhorar a Obra-prima,
é simplesmente a
solidão, prerrogativa dos
raros que chegam perto do cume olímpico das montanhas.
Em A Mulher que Matou Ana Paula Usher, Cassas
viaja por mitos que à Homero
enxergou, deslinda os segredos de uma paixão que à Camões experimentou, resgata
das mãos da morte a própria alma à Orpheu, e alcança à Ulisses a utópica Ítaca
dos que se sabem peregrinos de si mesmos, mas tudo isso não sem entregar aos
seus leitores a essência do drama da existência humana (está lá, na poesia que
dá nome a esta Obra), escrita à moda de um São Paulo enlouquecido pelo amor do Cristo,
banhado na Luz da Grande Consciência, e que humildemente, já caído do cavalo,
convida cada um de seus leitores a aprender de uma vez por todas a principal
lição da vida, razão pela qual estamos/somos todos entes viventes e encarnados.
Redestilando o poemextrato várias vezes na retorta:
o poetalquimista Cassas encontrou na paixão humana sua matéria-prima, e compôs
a partir dela esta sua Obra-prima do amor divino. Mas cuidado! Esta leitura
pode nos matar, e ainda assim, nos iluminar de Verdade!
A poesia como
arte de fazer
poemas, registro de
uma visão do mundo,
espelho de condição humana e uso supremo da linguagem, pulsa
neste O Filho Pródigo: Um Poema de Luz e Sombra, de
Luís Augusto Cassas.
Arte da língua e da linguagem, ela, a poesia, é
sempre o estuário de uma experiência pessoal e intransferível. Assim, todo
poema decorre de uma circunstância, como estatui Goethe, o que significa a
emergência e a presença de um timbre autobiográfico. Num poeta, a biografia e a
antibiografia estão sempre juntas, quer quando ele exprime claramente a sua
vida pessoal, quer quando recorre a máscaras e escondimentos, tornando-se uma
metáfora de si mesmo. Mas o que deve importar, realçando o acento íntimo ou
projetando o empenho de impersonalização e despersonalização, é o resultado: a
experiência tornada linguagem poética e a realidade convertida em imaginação.
Neste pungente e desdobrado poema longo de Luís Augusto Cassas, a experiência pessoal oferece ao leitor a sua alta pulsão e inequívoca tensão. É um cântico espiritual, uma interrogação ao divino. O poeta celebra a morte de seu pai, e o sentimento de perda justifica o seu canto, em cujos versos ressoam as notas de uma marcha fúnebre, as palavras de um sombrio cantochão. A densa subjetividade que permeia o poema se transmuda na sua razão artística e estética. A transcrição de uma dor pessoal tornada emoção comove aquele que está do outro lado do rio: o leitor.
Esta poesia de Luís Augusto Cassas, coabitada pela sombra e pela luz, é ao mesmo tempo um regresso à casa paterna viva na memória e erodida pelo tempo e pela morte, e uma incursão em uma luminosa e perene morada que está no passado e no futuro — esta poesia, atravessada por um sopro cosmológico, ora ostenta a linguagem faustosa e misteriosa de um ato litúrgico, de uma prece sibilina, ora se retrai e contrai numa inteira nudez monacal. É a nudez do filho pródigo, que volta ao lar paterno despojado de tudo, mas enriquecido pela experiência da amargura e da decepção — e o seu regresso se abre no horizonte como a promessa de uma nova esperança, de uma redenção.
“Caminho vivo entre mortos
Caminho morto entre vivos
Mas onde fui ferido
tornei-me mais reluzido”
Uma ferida de luz! Uma operação mística: nesta quadra em redondilha menor vibra o itinerário espiritual do poeta, sustentado por uma litania de alto teor religioso, de contundente carga de confessionalidade e memorialidade.
Na poesia brasileira — especialmente no território tão pouco visitado da poesia de natureza meditativa e reflexiva, voltada para a transcendência — o maranhense Luís Augusto Cassas ocupa um lugar de inconfundível relevo. A sombra e a luz regem, simultâneas, a sua partida e o seu regresso: o seu estar no mundo e a busca já tornada resposta, com a descoberta e o encontro de si mesmo.
Decifrar
o enigma e
proceder à construção
de sentido para
si, com o outro, na vida do mundo e entre o infinito do cosmos — eis a desafiante
tarefa que aguarda, segundo a segundo, a condição humana. O nada, a causa, a
necessidade, o acaso, o tempo e a morte são cartas do cortante baralho das
perplexidades do Homem que, sem escolha, é instado a
resolver a equação de tudo na
voragem da existência, nada bastante a
sua precariedade de transitório oleiro, sempre a caminho das cinzas, frente ao
sol e ao barro da esperança.
Mais do que bicho e menos do que Deus, como o definiu
Aristóteles, o Homem aspira ao mais e tropeça no menos, sujeito de todas as
grandezas e de todas as misérias, mais e menos consciente do caminho para a
lucificação que o plenificará, em sintonia, em sinfonia com o universo. No
& o da navalha, dançando sobre o abismo, este animal que pensa, sonha e
crê, ora sucumbe ao vazio, ora constrói prodígios, navegado pela dor e
cavalgando a alegria, na busca eterna e trôpega da sedutora e fugidia
felicidade.
O Homem, este
animal que pensa,
sonha e crê,
estrangeiro no mundo e despejado
da certeza, desde sempre testemunha de si mesmo e das suas circunstâncias, tem
levado à língua da percepção o sal do mito, da magia, da religião, da filosofia,
da ciência e da holística, perseguindo as
poéticas que o expliquem.
Eis quando desponta no horizonte Luís Augusto
Cassas, senhor de absoluta fidelidade à
poesia como sondagem de
Ser, com o
livro O Filho Pródigo: Um Poema
de Luz e Sombra, cuja tensa polaridade logo revela que foi escrito com nervo e
com sangue, flor de catarse nascida no chão de pedra do drama humano.
É que o poeta, em seu canto visceral de Filho, não
se explica sem o seu Pai. E este, como metáfora advinda dos tempos axiais,
enquanto elo, raiz e fonte, significa Deus, Rei, Chefe, Pátria e Superego,
tornando o Pai princípio, causa e proteção, mas também o peso da montanha
de chumbo a
carregar, sob o dever de, honrando
a sua autoridade, ser Ele, ser como Ele, ser mais
do que Ele. E o código e a gramática e o paradigma, sem dúvida, são do Deus, do
Rei, do Chefe, da Pátria e do Superego, tornando possível que a tese paterna
encontre a antítese filial.
Com a posição
reverente das palmas
unidas, o livro
de Luís Augusto Cassas constitui
uma saudação a seu Pai, Raimundo Nonato Corrêa de Araújo Neto, a declarar que o
poeta edificou pedra a pedra, vergalhão a vergalhão, cimento a cimento, a
reconhecida síntese de que o Deus da Causa é
o Deus do Efeito, unificados Pai
e Filho na bem-aventurança sofrida do " o do
tempo e da linha do horizonte. No além, da
água e do
espírito, em que
as esferas da
eternidade e do
infinito exprimem, amorosas, a Luz do Bem:
“Somos dois
diante da
divindade
Pequenos sóis
da mesma verdade
Somos o só
e o mesmo
Somos o próprio
si mesmo
Que viemos fazer
aqui
senão
confraternizar-nos
com a vida e o
seu longo elixir
no prazer de
reencontrar-nos?
Entre tantos semelhantes
façamos o mundo
girar
e como Zorba
dançar
enquanto escoam
os instantes
Eia juntos
caminhemos
além do além do
além
sob o amor
frutifiquemos
aos pés do
Supremo Bem!”
Só que a unidade pacificadora exigiu do poeta que
expusesse as vísceras dos antecedentes, definidos pelos embates dos códigos,
nuvens de desencontros e sombras de controvérsias. Eis os arquétipos de ambos,
o Pai, a indicar o destino, e o Filho, a contestar o caminho; o Pai, senhor das
palavras, e o Filho, a preferir
o silêncio; o
Pai, a ditar
a norma, e o Filho, a
transgredir em versos; o Pai,
fechado em copas, e o
Filho, faminto de afeto; o Pai, que também foi Filho, e o Filho, a
vislumbrar só o Pai; senhor da floresta, o Pai, e o Filho, a querer só uma
árvore: a do (im)possível. De onde o peso do Pai Totêmico:
“Antimilagre da
vinha
Abraão levantava
o braço
Isaac baixava o
cachaço
mas o céu não
intervinha
Narciso ao
avesso
toldei a imagem
de insana viagem
de auto desprezo
Trágico engodo
servido c/
torresmo:
poderia ser
todos
menos eu mesmo
E almoçávamos
contritos
disfarçados do
ocorrido
empanturrados de
sol
mas de afeto
subnutridos”
A narrativa cortante do poeta representa um parto de
libertação, o renascimento para a alegria pelo hemisfério da dor: a da casa que
não era lar, da vergonha como ama, da tristeza como cama, do regulamento contra
o sentimento, do dever contra o prazer e da obediência contra a inocência.
Nasceu daí o território demarcado: o Pai, fogo, luz e voo; o Filho, água,
sombra e mergulho. O poeta precisou embaralhar as cartas místicas do enredo,
para que o Pai-Luz e o Filho-Sombra pudessem ser o Pai-Sombra e o Filho-Luz e
se reencontrassem, fundidos e unificados, plenificados e compreendidos, o
círculo espiritual do Pai-Luz e do Filho-Luz, enfim, do Pai que foi Filho e do
Filho que é Pai. Na fraternidade do fogo e da água reside a completude.
Eis que o Filho ascendeu à compreensão de que foi o
juiz sem balanças justas do Pai, a quem, renascido, suplica que o abençoe.
Alcançou, o Filho, a paragem da gratidão ao Pai que nele revive, por
vislumbrá-lo, agora, como o humano Deus que, entre o erro e a verdade, entre o
menos e o mais, afinal, entre o bicho e Deus, pode inspirá-lo no mundo. A
translúcida comunicação do Pai-Filho ao Filho-Pai sugere a elevação ao
mensageiro do verde que, ao retornar à sua ilha, deve conhecer a magia, a alta alquimia
do semeador do sol, construtor da casa e artesão da obra.
É que o
contingente sucumbiu ao
absoluto. E quando, na
Luz, o Filho conquista
o coração do
Pai, a asa
do dharma revoga,
como revogou, todo o
peso do karma.
Luís Augusto Cassas, primo-irmão
do tempo, navegante das horas: ensaia, solfeja, canta. Canta alto, canta forte,
em seu regime espiritual:
“Ó amor de Deus
flui flui flui flui
dentro do meu
interior
com força e
alegria
Ó poder do céu
rui rui rui rui
todos os
obstáculos
e portões
fechados
à conciliação e
alegria”
Cecília Costa
Estou no Rio. É fim de abril. O sol beija a janela
amorosamente. Mornos e benfazejos, os dias vividos já anunciam maio. Penso em
Luís Augusto Cassas, homem solar do Maranhão, todo paixão, imaginação, carne e
vísceras.
Penso
nele e em
sua poesia derramada,
vital. Poesia de um ser corajoso que é tão somente coração
desnudado, delírio, espasmo, gozo, batida, ritmo louco.
Criação, ordem e caos. Penso em São Luís, o casario
baixo, branco e azulado, os
sobrados, as esquinas,
os telhados, as
igrejas, as ruas e
ladeiras com nomes líricos. Nomes que lembram os que designavam as ruas de um
Rio de outrora, perdido nas páginas do tempo. O Rio dos vice-reis. De reis
e imperadores. Ou
imperatrizes tristes, traídas.
São Luís, Rio, cidades irmãs, cheias de luz, cidades que nos entontecem
por serem abençoadas pela visão vertiginosa do mar, que chora e lava seus
sortilégios e pecados.
Assim como as ruas de sua cidade natal, que mantêm a
antiguidade do batismo,
Cassas também é um homem antigo,
ultrapassado, como ele mesmo diz, homem com o terrível
estigma de transformar tudo o que toca, cheira, come,
bebe ou sente em poesia. A vida, os
peixes, os frutos, as frutas, as ruas, os mendigos, os podres e ricos
poderes, o lixo, o desencanto e o cântico do amor. Poeta até à medula, Cassas
respira palavras. Sem medida,
luxuriosamente. Gosta de
extravagâncias. E escreve tudo o que reverbera nas profundezas de seu
ser, sem temer o que é considerado prosaico ou banal, pois sabe que o banal, o
hodierno, o comezinho, o cotidiano é rico e belo, por estar vivo. Pulsante.
Fazer parte da misteriosa, enigmática trajetória humana na terra. Ser
comestível. Alimento do corpo e da alma. Alma que a tudo se arrisca, embriagada
de sol, lua, estrelas, horizontes, poentes. Alma de ilhéu que quer ser
continente. Mundão vasto. Cosmos. Universo. Verso e reverso de cores, dores,
odores, suores, orgasmos endoidecidos, viscerais, telúricos amores.
Estou no Rio e
penso em Cassas e em seu último
livro de poesia, Bacuri-Sushi: A Estética do Calor. Ao ler os
versos, reencontro o homem. O
riso caloroso. O corpanzil, a cabeleira revolta e o imenso carinho pelos
amigos. O prazer
de comer, embriagar-se
de ilusões, novas paixões.
Entranhas de mulheres. Vulvas. Ventres.
Cassas conta as loucuras que comete, ou cometeu,
sempre rindo. Tem essa capacidade rara de rir de si mesmo. Sabe que vive em
fantasias e desvarios. Que sempre vai fundo, no poço da vida, em busca de novos
versos, sentimentos, êxtases. Viver é sempre perigoso. Consciente dos
precipícios, o poeta vai à luta, pois porta a arma e a bala de prata do verso, aquela que ama,
sangra, mata e se mata, mas renasce na poesia. Maculando com púrpura e sombra
das letras as páginas virgens.
O bardo maranhense
tem um credo.
Crê no sol
equatorial, crê na matéria e na Virgem
Maria. Crê no Espírito Santo do povo. E
crê na reencarnação do Verbo. Ao leitor incauto que quer entrar na selva
abrasadora de sua poesia, ele faz um alerta. Cuidado! Ao penetrar neste
país deixe a alma entreaberta,
quem dorme em São Luís acorda
poeta. Triste sina.
Os poetas, todos
sabemos, são benditos como os santos, mas também
amaldiçoados como os loucos e visionários. Os videntes. Os alquimistas. Os que
veem o invisível. O sexo das pedras, das nuvens e das 0 ores. O fundo do mar.
Aqueles que ouvem o gemido do céu. E o decifram ou traduzem,
sem saber que estão a decifrar o caminho do arco-íris, escavar o
umbigo do mundo, abrir portas sem retorno.
Mulheres, quantas mulheres, na poesia de Cassas.
Lençóis, quadris, sereias, haréns.
Coxas, lábios, nádegas,
espáduas nuas. Lagoas
e desertos. Vislumbre de um oásis florido que só viceja onde existem histórias, fábulas,
versos. Pois apenas
a mulher presa
no verso é
eterna como estrela nacarada pendurada na Via Láctea.
Mulheres e gozos, comida, paladares, gostos. Bacuri,
favos, camarão, daiquiris, ervas
e evas, línguas
e sushis. Tudo se come na cidade
do sol, a cidade dos prazeres. Feijoada, rapadura, cuscuz, carne de sol, chouriço,
esfihas. Galinhas sacrificadas ao paladar. Fêmeas torturadas. Cidade luxuriosa
e triste de perdas e silêncios, ruídos e alegrias. Babilônia moderna. Quem
beber da água saberá na ilha da mulher mais alva desnudando a
quilha. Cidade onde
corpos lascivos embalsamam
as mágoas e as feridas da sede da vida.
E São Luís também é cidade de bêbados, e todo bêbado
tem um santo e acredita em milagres. Milagres somente possíveis na cidade
sensual onde até a chuva cai em horizontal. Cidade que aluga horizontes. Vende
auroras e mares infinitos. Cidade da preguiça e do lento tecer dos dias. Da sesta e dos roncos. Dos
guarás e das formigas vermelhas, que queimam a pele com sua picada venenosa.
Como são belos,
simples e comoventes,
os retratos falados, as
homenagens às personagens
da cidade, às
cantoras, às santas,
ao médico, ao poeta e ao bêbado santificado. As louvações a Vieira, Rita
Ribeiro, sabiás em
lamparinas, loucos mortos
a dançar em
casuarinas. São fábulas, mitos, causos contados à beira da fogueira,
como a de Magno, bêbado recuperado, com pinta de Barack Obama que recolhia em
sua casa os embriagados do mundo. É singela a historieta sobre o doutor Odorico
Amaral de Matos, que cura e vacina crianças, doentes e feridos com as 0 ores da
piedade sangradas no peito.
Já o que
falar das duas Marias, a de
Jesus Carvalho e a Aragão, uma
a pregar
a luta de
classes e a
outra a pregar
o amor face a face? Nada,
nada mesmo. Cassas
falou tão bem
que o importante
é ler o poema para deleitar o coração. O mesmo
ocorrendo com os poemetos de contingência sobre Santa Almerinda e São José
Francisco de Chagas, aquele que, como seu fraterno homônimo, amante da
natureza, esculpe na carne do verso incendiários lírios. Leiam, leiam os
poemas…
Expondo
suas vísceras, o
poeta maranhense conseguiu
o que preconiza como arte maior
na arte de versejar: colher a pura rosa dos abismos. Ou tirar mel do fel, na
vigília e no sono. Poesia, diz Cassas, é
o incêndio da beleza. Com o sol e o sal do Maranhão no rosto, Luís Augusto Cassas,
empunhando quixotescamente a
espada do verbo e
depondo suas máscaras
no chão, sonhou
um novo livro.
Cheio de pecados e vertigens,
alegorias, metáforas e pesadelos, faróis e fogueiras, viciados e puros,
gênesis, evangelhos e apocalipses.
Com ele
soluçamos a palavra
amor em nossos
peitos abafados, numa escura sala
de cinema hoje inexistente. O da família. E nos redimimos. Eternizados em
palavras. Cheios de saudades de São Luís e de seus poetas muy loucos.