ENTREVISTA COM HELENO GODOY
Heleno Godoy - acervo Pessoal |
A Revista Banzeiro republica a entrevista* com o escritor, professor e crítico literário Heleno Godoy. Natural de Goiatuba, Goiás, ele foi professor titular de Literatura Inglesa na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás (hoje é aposentado, trabalhando apenas como professor voluntário/colaborador na pós-graduação em letras) e ex-professor adjunto de Teoria da Literatura e Literatura Brasileira no Departamento de Letras da PUC-GO. Concluiu a Licenciatura Plena em Português-Inglês no Departamento de Letras da UCG (PUC Goiás), é Mestre em Letras Modernas pelo Graduate Institute of Modern Letters da University of Tulsa (Tulsa, Oklahoma, EU) e Doutor em Letras (Estudos Linguísticos e Literários em Inglês) pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Como escritor, estreou em 1968 com o livro de poemas-práxis Os veículos. Tem publicado vários outros livros, As lesmas (1969, romance), Relações (1981, narrativas), O amante de Londres (1996, contos), A feia da tarde (1999, contos). Seus outros livros de poesia são: Fábula fingida (1985), A casa (1992), Trímeros (1993), A ordem da inscrição (2004), Lugar comum e outros poemas (2005). Organizou e editou os livros de ensaio O ser da linguagem (1983) e Identidades prováveis, representações possíveis (2005). Tem colaborado com inúmeras revistas acadêmicas e suplementos literários do país, assim como de outras coleções de ensaios, além de já ter publicado inúmeras traduções de poetas e ficcionistas de língua inglesa, sobretudo escritores irlandeses. Ao completar 47 anos de Literatura, Heleno Godoy, ainda este ano, terá toda sua poesia reunida em livro, sob a coordenação da professora Dra. Solange Fuiza Yokozawa.
* Esta entrevista foi, originalmente, publicada online na Revista Bula, em duas partes, em maio de 2006. Dela fizeram parte Edival Lourenço, Flávio Paranhos, Carlos
Willian Leite e eu, Francisco Perna.
Escrita "Não vejo problema em um escritor ser influenciado por outro. Recomendo apenas a busca de influência de escritor realmente bom e grande." |
FRANCISCO PERNA –
Julio
Cortazar, numa entrevista, afirmou que se não tivesse escrito Rayuela (O
jogo da amarelinha) teria se atirado no rio Sena. O senhor já foi salvo
pela palavra? Quando?
HG - Ser escritor não
foi coisa decisão recente em minha vida. Desde menino já escrevia, sonhava
escrever livros e publicá-los. Daí concordar com sua pergunta, mas no sentido
de a palavra me fazer ser o que sou, não no sentido messiânico da salvação. Não
sou escritor por achar que tenho algo a dizer ao mundo, nem por vaidade ou
qualquer coisa do gênero. Não acho que o mundo precise de mim, muito menos a
literatura. Sou escritor por não dar conta de não sê-lo. Escrever é condição
essencial para eu poder continuar existindo, independentemente de ser
reconhecido, ser considerado importante, ter fama, ficar para a posteridade. Nada
disso faz sentido para mim. Não estou inscrito na “Maratona da Glória”, não sou
atleta da “Corrida da Fama”. Sou escritor como condição de vida, é o que eu
sou, como me defino. As outra coisas eu as faço por profissão, para ganhar
dinheiro, para sobreviver e prover para minha família: sou professor em duas universidades,
em duas línguas diferentes, cumpri todas as exigências acadêmicas do ensino
superior – fiz graduação, mestrado e doutorado, sou professor titular em uma
universidade federal, por concurso público; sou professor adjunto em outra,
também por concurso. Não tenho mais o que fazer, a não ser, talvez, um
pós-doutorado, já que o plano administrativo da vida universitária não me
interessa, não me atrai – também já passei por isso, já fui diretor de
departamento. Nada disso, no entanto, valeria a pena se eu não fosse escritor e
não publicasse meus livros. Daí, mas longe do sentido messiânico, a palavra não
apenas me salvou, ela me definiu, deu rumo e sentido à minha vida.
Julio Cortázar |
FLÁVIO PARANHOS - Sua graduação,
pós-graduação e docência universitária em letras/literatura atrapalham ou
ajudam na criação literária?
HG -Não atrapalha; na verdade, ajuda. Não confundo as coisas: uma coisa é
eu ser professor há mais de trinta anos; outra é ser escritor. O que sei como
professor de teoria da literatura ou de literatura (principalmente de línguas
portuguesa e inglesa, minhas especialidades) amplia minhas possibilidades como
escritor. Mas eu já era escritor antes de me tornar professor. Em minha vida, escrever
precedeu ensinar. Quando escrevo, não penso a teoria a priori, penso minha escrita, o que estou criando. Não quero, ao
escrever, provar nenhuma teoria, testar nenhum estilo, me incluir nesta ou
naquela tendência. Quando escrevo, penso apenas na eficácia de minha linguagem,
na adequação entre o que quero fazer e o que consigo realizar. Na minha
capacidade de realizar o que pretendo e quero, se a linguagem que estou usando
é adequada ao tema ou assunto que abordo, se a estrutura que estou criando é a
melhor para o que me propus, estas coisas todas que afloram à mente de um
escritor no momento do processo criativo. Sobretudo, penso em como meu
significante vai funcionar, não apenas os conteúdos possíveis e significações
várias de meus significados. Não sou um escritor impulsivo. Escrevo somente
após muita elaboração mental. Meu processo criativo é emocional apenas no
momento da concepção da idéia, depois é a vez da criação racional, da busca da
melhor linguagem. Acredito muito naquilo que o grande poeta francês Paul Valéry
disse certa vez, mais ou menos assim: “Os deuses dão/propiciam o primeiro
verso, o poeta escreve os outros.” Meus conhecimentos de teoria da literatura e
de literatura não afloram no momento criativo, mas estão na base, como coisa sedimentada,
aquilo que já faz parte do meu eu, pois é disso e com isso que vivo, é meu
trabalho no dia-a-dia. Eles me deixam mais alerta, mais atento a erros, mais
severo quanto ao resultado de meu trabalho. Sobretudo, deixam-me muito mais
exigente comigo mesmo. Assim, garanto-lhe que ser professor não é incompatível
com o fato de eu ser escritor. Continuo achando que uma coisa não atrapalha a
outra, até ajuda.
Paul Valéry |
FLÁVIO PARANHOS - A faculdade de medicina
forma médicos, a de engenharia forma engenheiros. E as de filosofia e letras?
Formam filósofos e escritores?
HG - Flávio, faculdades de filosofia formam professores de filosofia (se
alguns desses formandos se tornam efetivamente filósofos é uma outra história),
assim como faculdades de letras formam professores de língua portuguesa e
estrangeira e também professores de literaturas de língua portuguesa e
estrangeira. Esta é a razão para cursos de letras existirem, este é o objetivo
delas. Inexistem faculdades para a formação de escritores, nem mesmo aqueles
conhecidos cursos de creative writing,
por exemplo, nos Estados Unidos. Eles podem fornecer informações, técnicas,
orientação, mas não dão talento e qualidade, apenas contribuem para o
desenvolvimento de um escritor. Cursos de letras, no entanto, podem ser úteis a
quem quer ser ou é escritor, ao menos para o estudo de teoria da literatura e
literaturas várias, pois é um estudo formal, melhor do que o informal que todo
escritor faz ao ler um livro. Pois é isso o que na verdade fazemos quando lemos
um livro, nós estudamos o modo como o escritor o escreveu, como nele lidou com
os temas que se propôs, seu uso da técnica, o uso que fez nele de determinadas
palavras, sua linguagem, seu estilo, etc. Quem quer ser escritor, deve fazer
isso obrigatoriamente. Ninguém se torna um escritor sem conhecer a obra de
outros escritores e o maior número possível deles, em verdade. Sem leitura
não há literatura. Então, cursos de letras podem ajudar na formação, mas não
formam escritores e, insisto, não existem para isso, mas para formar
profissionais da educação, para o trabalho de ensino de língua e literatura em
escolas de nível fundamental, médio e superior. Um escritor se forma, é o que
penso. O estudo formal auxilia muito, mas estudo mesmo, intenso, ainda que
informal, é indispensável a qualquer escritor. Sem estudar literatura ninguém
se torna escritor. Pode publicar livros, mas isso é outra coisa. Aliás, nem
todos os médicos são bons só por terem feito o curso de medicina, não é? Nem
também todos os engenheiros; muito menos, os filósofos. Não há garantia alguma.
A existência de diploma não é garantia de qualidade. Qualquer qualidade vem da
prática, é evidente, mas principalmente, da capacidade que tem o profissional
de ser cada vez melhor, de se superar sempre. É preciso ter talento e saber
usá-lo.
Heleno Godoy |
FRANCISCO PERNA
- No
conto “O Albino”, o
senhor aborda os procedimentos da literatura fantástica e, ali, percebe-se –
claramente - o pleno domínio desta modalidade narrativa. Qual a importância da
teoria na literatura? Pelas teorias é possível escrever boas histórias? Bons
poemas?
HG - Antes desse conto a
que você se referiu, de meu livro O
Amante de Londres, já havia escrito a “Segunda” das narrativas do livro Relações, também fantástica, sobre o avô
que perde a sombra, aos poucos os membros do corpo, assim por diante. Esse
conto foi escrito antes de 1979, pois Relações
ganhou o prêmio da Bolsa de Publicações Hugo de Carvalho Ramos naquele ano,
embora só tenha sido publicado em 1981, pelo CERNE. Minha aproximação com o
fantástico decorre de minha leitura de literatura gótica – O Castelo de Otranto, Frankenstein,
O Retrato de Dorian Gray, Drácula (todos do século XIX, com exceção
do primeiro, que é de 1764). Li todos esses livros na adolescência, quando
tinha entre onze e quinze, talvez dezesseis anos. Devo me lembrar ainda dos
contos de Edgar Allan Poe, um de meus poetas e contistas preferidos, e de meu
gosto (duvidoso, alguém poderia dizer) por filmes de terror, mesmo aqueles de
produção pobre, filmes B e C, se não forem até piores. Isso é uma preferência
(por gosto pessoal meu), não um pecado (não quero que alguém goste deles como
eu gosto). Quando escrevi a “Segunda” narrativa de Relações, tinha acabado de estudar o livro do Tzvetan Todorov, Introdução à Literatura Fantástica. Na
década de 70, por sinal, comprei uns trinta volumes da coleção “Livro B”, da
Editorial Estampa, de Portugal, toda ela em capa de papel preto, com letras impressas
em branco. Esta
coleção incluía, entre muitos outros livros, os Manuscritos Encontrados em
Saragoza, de Potocki, as Fábulas
Fantásticas, de Ambrose Bierce, O
Lobisomem, de Dumas, Vatek, de
Beckford, O Horla e Outros Contos Fantásticos, de
Maupassant, os Contos Fantásticos, de
Hoffmann. Li todos eles, mais a obra de Lovecraft, claro, inclusive seu livro
teórico, O Horror Sobrenatural na
Literatura, que estudei primeiro em espanhol (El Horror en la
Literatura ), numa edição da Alianza Editorial, de Madrid.
Ele existe numa edição brasileira, da Francisco Alves, de 1987. Assim, acho que
tudo o que aprendi com os melhores mestres do fantástico do passado e também
com os teóricos do gênero, aflorou quando escrevi esse conto e também, tempos
depois, quando escrevi “O Albino”, mas não intencional ou propositadamente. Aliás,
só com a “Segunda” narrativa de Relações
se poderia dizer que isso aconteceu de forma consciente (mas não quanto ao
fantástico), já que neste livro testei e tentei, propositada e intencionalmente,
todas as possibilidades técnicas da construção da narrativa: vozes,
focalização, ponto de vista, estrutura, enfim, as técnicas de construção do
enredo, pois era professor de teoria da narrativa no Departamento de Letras da
UCG na época. Foi uma forma de unir duas experiências, a de escritor e a de
professor. Relações é um livro que
confirma meus conhecimentos teóricos sobre a construção da narrativa. Quanto a
“O Albino”, o propósito foi outro e a escolha do fantástico foi mera decorrência
do tema, o preconceito social contra a diferença. Em verdade, esse conto nasceu
de eu observar pessoas na rua, sempre que ia para minha casa, depois do
trabalho, no fim da manhã. Quando parava no sinaleiro da Rua 55,
coincidentemente encontrava varredores de rua na Avenida Goiás e, entre eles,
um albino que se cobria todo de mangas compridas da camisa, panos na cabeça e
nos ombros, além de usar um largo chapéu. Era o único dos varredores de rua que
fazia isso. Comecei a pensar no tema, por não conseguir entender como a
Prefeitura de Goiânia não via que aquele era um emprego impossível para aquele
albino, que devia sofre um calor medonho debaixo de tanta roupa, panos e chapéu,
para poder trabalhar. Por qual razão não lhe davam um trabalho que lhe permitisse
ficar dentro de algum lugar, longe do sol e da rua? Um belo dia não vi mais nem
ele, nem outros varredores. Devem ter mudado de horário de trabalho e minha
passagem de carro por ali não coincidia com a presença deles na avenida. No entanto,
a idéia permaneceu em minha cabeça, a da diferença estabelecida pelo fato de um
albino ter de ficar exposto ao sol, o que lhe causa danos à saúde da pele e dor
nos olhos. O que aconteceria na vida de um albino, que transtornos para a vida
da pessoa adviriam daí? E se o personagem que comecei a imaginar tivesse
hábitos noturnos, evitando o sol? Daí para acusá-lo de ser vampiro ou qualquer
outra coisa seria um pulo, não é? Então a diferença seria a causa da repulsa
dos outros e assim por diante. Achei que com esse tema o uso do fantástico
servia melhor ao meu propósito.
Por
isso, posso responder que estudar teoria da literatura (inclusive a literatura
fantástica), me ajudou muito. Ajuda em toda a minha produção literária, na
verdade, já disse isso antes. Não creio, entretanto, que o fantástico tenha
importância em minha literatura, nem creio que recorrerei a ele novamente. Mas
isso não é promessa. Posso voltar a usar o fantástico de novo, sem problema
algum. Agora, quanto a saber se conhecer teoria da literatura ajuda a escrever,
minha resposta continua sendo afirmativa: – Sim, ajuda, claro. Mas escrever bem
ou boas histórias ou bons poemas? Isso é outra coisa, que independe do
conhecimento teórico. Quem tem de dizer se o conto foi bem realizado ou bem escrito
são os críticos e você foi um dos que disse que foi, pois escreveu um ótimo
ensaio sobre o conto “O Albino”, publicado na revista Estudos, da UCG, pelo que lhe sou grato.
Não
acredito que o conhecimento teórico crie o bom escritor, mas ajuda, pois esse
conhecimento é fundamental para qualquer escritor. Horácio, na sua velha Epístola aos Pisões, sua “arte poética”,
já chamava a atenção para o fato de que sem a ars (o arete, a arte, a
técnica, o conhecimento do modo de fazer), o ingenium (a inclinação para, o talento individual) é insuficiente.
E é, evidentemente, para a tristeza de muitos que têm pretensões, mas não têm
nem uma coisa nem a outra, nem, às vezes, as duas, ao mesmo tempo. É que não
basta ter talento ou inclinação para a poesia, é preciso aprender a escrevê-la;
é preciso estudar os grandes poetas para se aprender a escrevê-la melhor. É
preciso que o poeta adquira técnica, destreza, capacidade, e isso só vem com o
estudo e a prática. A boa obra de arte nasce do equilíbrio entre a ars e o ingenium. Não foi por isso mesmo que Camões disse que cantaria, n’Os Lusíadas, os grandes feitos heróicos
do povo português, “Se a tanto me ajudar o engenho e arte”? Está lá, no fim da
segunda estrofe do poema. Camões sabia das coisas e foi um grande estudioso dos
poetas épicos do passado e de suas técnicas. Se não fosse, como poderia ter
escrito seu poema? Re-inventando a épica, escrevendo como se toda a épica
anterior não existisse? Ou fingindo que não existisse? Seria impossível! Poeta
que não estuda e aprende está condenado a repetir o passado, principalmente os
erros do passado. Está condenado a dizer o que outros poetas anteriores já
disseram e de forma melhor.
Ernst Theodor Amadeus Wilhelm Hoffmann |
CARLOS WILLIAN
LEITE -
Otto Maria Carpeaux, em A Cinza do Purgatório,
disse: "As velhas universidades são de utilidade muito reduzida. Elas não
formam homens práticos; formam o tipo ideal de nação: o lettré, o gentleman, o gebildeter". Sendo professor, como
o senhor identifica a universidade brasileira na era do pragmatismo, da voragem
informativa e do desenvolvimento tecnológico?
HG - Carpeaux não
estava falando da universidade brasileira, nem de uma universidade em
particular, estava falando muito mais de uma política de classe ou de educação,
de uma escolha ideológica por um determinado tipo de formação, através da
educação. Se isolamos frases como esta e as aplicamos na avaliação de uma
universidade qualquer, estaremos cometendo um erro. Isso é um risco. Nem a
Universidade de Oxford, nem a da Sorbonne, nem a de Harvard, nem qualquer
outra, no mundo, forma letrados pedantes. Quando discutimos a universidade
brasileira, tendemos a menosprezá-la, como se ela não produzisse nada. Entra em
funcionamento nosso famoso complexo de inferioridade colonial. Não deve ser bem
assim. A universidade brasileira, com e apesar do poder público, vai bem.
Poderia ser melhor, é verdade, mas já produziu e continua produzindo muito.
Situações erradas existem em qualquer universidade, pesquisas inúteis são
feitas todos os dias, aqui, ali e mais além. Fraudes também. Uma fraude recente
não aconteceu na Coréia, na Universidade de Seul? As universidades no Brasil
lutam com falta de dinheiro (se são privadas), com falta de verbas (se são
públicas), mas sobrevivem e desenvolvem pesquisas e já conseguiram muito e
conseguirão mais ainda, no futuro. Eu acredito na capacidade de nossos
cientistas, de nossos professores, apesar e com os que são de nível inferior
aos melhores. Se não acreditasse, não poderia estar trabalhando em duas delas,
aqui em Goiânia, a Católica e a Federal, nem torceria para que a UEG se
consolide e se torne um sucesso. Nem penso que a universidade brasileira esteja
aquém de outras, de outros países, em termos de informação, de pesquisa e
qualidade de seus professores. Temos muita gente boa desenvolvendo trabalho de
qualidade. Além do mais, e exatamente por causa dessa voragem informativa a que
você se refere, é impossível a uma pessoa desconhecer o que acontece no mundo.
O saber está disponível, basta que se tenha interesse por ele. Revistas
científicas da maior importância podem ser acessadas via Internet. Também se
podem comprar livros, pesquisar, obter informações vastíssimas. Se você fizer
essa mesma pergunta a um professor alemão ou japonês, ele reclamará de coisas
que não andam bem quanto às universidade da Alemanha ou do Japão. Lembro-me de
ter visto, na biblioteca da Universidade de Tulsa, onde trabalhei, quando lá
estudava, um professor reclamar que dois livros para a bibliografia, que ele
havia exigido para uso dos alunos, publicações recentíssimas, não haviam
chegado depois de uma semana. Pensei em nossa triste situação aqui no Brasil,
quando os professores pedem e as bibliotecas de nossas universidades às vezes
nem compram os livros ou demoram meses para fazê-lo. Pois bem, infelizmente
devo reconhecer que ainda estamos, quanto à universidade brasileira, longe do
ideal, mas – e isso é o mais importante – não no caminho errado. O que parece é
haver desconhecimento do que anda sendo feito, pesquisado e estudado em nossas
universidades. O grande público não compreende, nem pode compreender, o que se
faz na universidade, o que se pesquisa nela. O grande público vê os resultados,
como uma vacina, a descoberta de novas técnicas. O grande público não conhece
os intrincados caminhos da pesquisa acadêmica. Ele quer resultados. Mas não
pode, por desconhecimento, criticar sem entender. Lembro-me de um escritor
goiano que vivia falando mal de doutorados e de cursos de pós-graduação em
geral, no Brasil. Aliás, escritor que não tem nem segundo grau completo. Pois
bem, quando de uma doença em sua família, foi um doutor de um hospital especializado,
de Brasília, que podia atender e resolver o problema – um médico com graduação,
mestrado e doutorado e mais, capacitado para tal apenas em virtude de ter feito
suas pesquisas de doutorado sobre aquela específica doença, sua especialidade.
Ironia dolorida, não?
Otto Maria Carpeaux |
FLÁVIO PARANHOS - Muitos dos contos da Antologia do Conto Goiano (Editora da
UFG), organizada por Vera Maria Tietzmann Silva e Maria Zara Turchi, incluindo
o seu (“Quarta”) têm nível para publicação em editora de circulação
nacional. O mesmo vale para seu romance As Lesmas. Enfim, há muita coisa boa (claro, há muita coisa ruim
também) publicada em Goiás.
Uma pergunta óbvia, mas gostaria que enriquecesse sua
resposta com sua própria vivência: por que é tão difícil para a província furar
o bloqueio da corte?
HG - Exatamente por mantermos essa dicotomia “Colônia x Corte” e
acreditarmos nela, em sua existência. Quando você faz a pergunta e reconhece o
bloqueio, você contribui para que ele exista de fato. O que precisamos, a meu
ver, é parar de reconhecer a existência desse bloqueio e fazer o que fazem no
Rio Grande do Sul, por exemplo, ter uma literatura e um público regional fortes
e despreocupados com o eixo Rio-São Paulo. Se em todos os estados brasileiros
se fizesse isso, o eixo Rio-São Paulo não existiria. É difícil, eu sei, a
vaidade pessoal de ser editado por uma editora grande e de nomeada é sonho de
qualquer escritor, mesmo quando se tem de contentar com uma edição em papel
“quase bíblia”. Isso é muito triste. Pior é ficar contando vantagem aqui de pequenos
triunfos “lá fora”. Glória, sucesso e renome são passageiros. E isso também é
um lugar comum, mas vejamos: quem lê, hoje em dia, Coelho Neto ou Humberto de
Campos? Foram o que existia de mais respeitado, cada um em sua época. Quando
comecei minha carreira literária, no início da década de sessenta, Paulo
Pacheco, se não me falha a memória e não lhe erro o nome, era o mais publicado
poeta da época, juntamente com A. J. G. de Araújo Jorge. Quem sabe de seus
paradeiros hoje? A imprensa cria e desfaz reputações com muita facilidade. Se
você é colunista de algum grade jornal ou revista de circulação nacional, tudo
fica mais fácil. Mas livro nas livrarias, o que é mais importante, não temos.
Falta distribuição, no Brasil. Além do mais, nossas editoras, que editam muitos
títulos, editam poucos exemplares de cada título. Os autores mais editados têm
edições de, no máximo, noventa mil exemplares; às vezes, um pouco mais. O que
significa isso num país de cento e setenta milhões de habitantes? Nada! Livros,
em Goiás, quando são bem editados, saem em edições de mil exemplares. E, ainda
assim, não vendem. Drummond ou João Cabral, quando vivos, tinham edições de no
máximo três a seis mil exemplares para um livro novo. Isso é ridículo! Parece
brincadeira. Recentemente, numa entrevista, um poeta goiano de renome afirmou
ter esgotado três edições de seus poemas completos e coligidos. Em primeiro
lugar, ele se referia, na verdade, a uma edição e duas reimpressões. Espero que
tenham sido de, no mínimo (o poeta não disse nada sobre isso, na entrevista),
quarenta mil exemplares cada, pois se foram de apenas dois mil exemplares, foi
muito bom para o poeta, mas uma vergonha, ainda assim, para o país. Seis mil
exemplares, para um país de cento e setenta milhões de habitantes continua
sendo um ridículo total de edição. Claro que a culpa não é do escritor
brasileiro. Tudo isso, no fundo, tem a ver com uma estrutura de educação,
hábitos de leitura criados desde cedo, na família e na escola, e assim por
diante. Antigamente, comprava-se livros aos metros, para o enfeite de estante.
Hoje, nem isso, pois coleções inteiras poder ser vendidas agora em RD-Room e
estantes de livros não enfeitam mais salas de visitas de nossas casas ou
apartamentos. O gosto burguês quanto à decoração de interiores mudou. Mas
ninguém quer pensar sobre isso ou encarar assim o problema. Escritores preferem
contar vantagens por causa de uma edição de mil exemplares por uma grande
editora. Infelizmente, essa é a realidade nacional: publicam-se muitos títulos,
mas pouquíssimos exemplares. Somos um país de não-leitores, um país que lê
pouco e, sobretudo, mal. Quanto a mim, sou um escritor de Goiás, que vive em
Goiás e aqui publica. Se isso me angariar algum tipo de reconhecimento, ótimo;
se não, pouco me importa. Volto a insistir: não sou atleta da Maratona da
Glória, deixo a outros a tarefa do esforço na corridinha pela fama. Já enviei
originais para algumas importantes editoras. Foram todos recusados e a desculpa
era, usualmente, duas: “não estamos em condições de aceitar originais agora” ou
“infelizmente seu livro não se encaixa nos planos atuais da editora”. Bobagens,
claro. Depois de recusarem livro meu, vi algumas dessas editoras editarem
livros que, tenho plena consciência, eram inferiores aos meus que lhes enviara.
É por isso que continuo aqui, publicando aqui, quando posso. O que me interessa
é que construí uma carreira constante, regular, tenho escrito e publicado livros
desde 1968. Sei de escritores goianos que começaram depois de mim e já
publicaram muito mais livros. Não me faz diferença, volto a insistir, não estou
disputando nada com ninguém. E se esses escritores são assim tão melhores, por
qual razão ainda devem, a cada livro, lutar para conseguir editora. Todos
sabemos que grandes autores são disputados pelas editora, não o contrário.
Esses que se dizem tão bons aqui, por qual motivo não têm editora fixa – de
grande nível nacional – do eixo Rio-São Paulo, como você diz, com contrato para
livros futuros? Eu não tenho e nem me preocupo com isso. Publicarei quando e sempre
que tiver oportunidade. Minha palavra para os que são mais novos do que eu, mas
sem pretender dar lições, é de perseverarem, continuar cada um com seu
trabalho. E não se preocuparem se não ganharem nenhum prêmio por aí. Prêmios
são bons, mas também relativos.
Divulgação |
FRANCISCO PERNA – Para o senhor, existem em
Goiás prosadores, como José J, Veiga e Bernardo Elis, que são injustiçados por
não terem o reconhecimento nacional devido?
HG - Voltamos ao problema abordado na resposta anterior. Em primeiro lugar,
Bernardo Elis não foi nunca um escritor popular, nem tão famoso assim, no
Brasil inteiro. Para muitos e milhões de brasileiros continua um desconhecido.
Foi um grande escritor, mas de reconhecimento ainda hoje restrito. Nisso, José
J. Veiga teve um pouco mais de sorte. Afonso Félix de Sousa (na minha opinião,
nosso maior poeta) também continua desconhecido do grande público. Merece muito
mais fama do que tem. Alaor Barbosa, Miguel Jorge e Antônio José de Moura são ficcionista
goianos vivos merecedores de respeito e reconhecimento. Têm um e outro, mas por
um público restrito também. Na poesia, Yêda Schmaltz e Carlos Fernando
Magalhães, por exemplo. O fato de não serem nomes largamente reconhecidos no
Brasil diminui a qualidade de seus trabalhos? Nunca. Não acho que a fama seja
tão importante assim. Antes de se preocuparem com a fama, os escritores
deveriam se preocupar com a qualidade de seus trabalhos. Muitos famosos de dez
anos atrás não são mais lembrados hoje. Depois, é até fácil conseguir quinze
minutos de fama, no mundo atual, como disse ironicamente um artista famoso.
Bernardo Élis |
José J. Veiga |
CARLOS WILLIAN
LEITE -
O senhor não faz parte da Academia Goiana de Letras, mesmo sendo um dos
principais escritores de Goiás. Por quê?
HG - Nunca me
candidatei, jamais o farei.
Fardão da Academia Brasileira de Letras |
EDIVAL LOURENÇO - Joyce, Gertrude Stein, Rimbaud, Eliot,
Proust, dentre outros, só alcançaram o reconhecimento quando Edmundo Wilson
realizou críticas corajosas e inovadoras a respeito de suas obras (O Castelo de Axel - 1931). Aqui no
Brasil, escritores criativos, dentre eles Guimarães Rosa e Clarice Lispector,
também contaram com críticos igualmente criativos, como Otto Maria Carpeaux e
Paulo Rónai – europeus fugitivos da 2 ª Guerra – para aquilatar o elevado valor
de seus trabalhos. A crítica hoje, quase sempre de caráter acadêmico, não
estaria muito apegada a um figurino formalista, a um paradigma fóssil, e
dificilmente teria condições de, não apenas analisar (segundo o seu figurino),
mas de fazer críticas criativas e identificar obras que eventualmente estariam
a dizer novas coisas no turbilhão de publicações que assola o País?
HG - Acho que há uma
outra desinformação aqui. Todos os escritores citados já eram famosos e
respeitados, antes da publicação do livro de Edmund Wilson, que o escreveu
exatamente por isso, por a crítica literária europeia e americana já ter
consagrado esses escritores, inclusive pelo escândalo provocado por suas obras,
caso de James Joyce. O romance Ulisses,
na época, ainda tinha sua publicação proibida pela censura, nos Estados Unidos.
Sua liberação só aconteceu em 1933, numa decisão histórica do juiz John M.
Woolsey. Não vamos confundir reconhecimento crítico, por parte da crítica, com
popularidade, favor do público e grandes vendagens. A crítica de Wilson foi
inovadora quanto a seus postulados, não quanto à coragem de escrever sobre
escritores desconhecidos do grande público. Pelo contrário, Wilson raramente
escreveu sobre escritores pouco conhecidos. O resto de sua pergunta demonstra
apenas preconceito contra a crítica feita nas universidades, o que você chama
de crítica acadêmica, sem, no entanto, se referir ou precisar a que tipo de
academia você se refere. Se você estava se referindo à crítica produzida no
mundo acadêmico universitário, sobretudo em nível de pós-graduação, errou a
munição, o tiro e o alvo. A crítica universitária não difere daquela publicada
em rodapés (que, aliás, desapareceu do jornalismo brasileiro) senão quanto aos
objetivos e ao público a que é endereçada. A crítica de jornal se dirige ao
grande público e não pode ser erudita; a crítica acadêmica dirige-se ao público
universitário e serve aos propósitos de fazer evoluir e crescer os estudos
literários, aprofundando-os, o que a torna obrigatoriamente erudita e difícil,
apenas para iniciados, pois é essa sua obrigação e objetivo. Isso não quer
dizer formalismo. Mesmo quando certas teses de mestrado ou doutorado são
publicadas em forma de livro, são dirigidas também a um público de
especialistas, aqueles encarregados de fazer evoluir e melhorar os estudos
literários no país. Se não fizessem isso, estaríamos condenados todos à
repetição e ao marasmo, à não-evolução. O que é inconcebível. Depois, Alceu de
Amoroso Lima também reconheceu, logo depois da estreia da escritora, a
qualidade da obra de Clarice Lispector. E ele foi um grande crítico, coisa que
Paulo Rónai nunca foi. Você se esqueceu da importância fundamental de Antônio
Cândido ou de um Alfredo Bosi em nossa crítica? A melhor crítica à obra de
Clarisse continua sendo produzida na universidade, por um Benedito Nunes, uma
Olga de Sá, entre outros. Quanto a Guimarães Rosa, foi um crítico de rodapé, Wilson
Martins, quem atacou e não reconheceu a obra dele (principalmente Grande Sertão: Veredas), não os críticos
trabalhando nas universidades de todo o Brasil. Martins mudou de opinião, algum
tempo depois, ainda bem. E mesmo se muitos críticos tenham cometido erros de
avaliação no passado, isso não invalida o trabalho da crítica literária, apenas
denigre a pessoa do crítico que cometeu o erro. Ao longo da história da crítica
literária, muito erros de avaliação crítica foram cometidos. Mas foi o crítico específico que errou, não a
crítica. Agora mesmo, na Faculdade de Letras da UFG, a profa. Dra. Maria Helena
Garrido Saddi acabou de escrever e teve aprovada sua tese de doutorado, muito
boa, aliás, sobre Guimarães Rosa, na PUC de Minas Gerais, enfrentando uma vasta
bibliografia já escrita sobre o escritor. Dizer que isso é “paradigma fóssil” é
um absurdo. Você classificaria de
“paradigma fóssil” o trabalho de um Antônio Cândido, de um Alfredo Bosi, de um
Luiz Costa Lima, todo ele desenvolvido na universidade, na academia, em cursos
de graduação e pós-graduação? Só se você for louco.
Criticar não é
avaliar se uma obra é boa ou não, mas estudar como ela funciona, os motivos
pelos quais ela é única e especial, o que a torna diferente das outras e, por
isso, de qualidade, lembrada sempre. A crítica de jornal, aquela feita por
jornalistas que dizem que isso é bom e aquilo não é, isto é, apenas expondo
gosto pessoal, não é crítica literária. Uma coisa é analisar uma obra, outra,
muito mesquinha e insignificante, é avaliar o escritor e falar mal dele. Ou
encontrar defeitos em sua obra. Mesmo quando acertam, sem querer, quanto ao
caráter da obra de que falam mal. Isso sim, é paradigma fóssil, se entendi bem
o que você quer dizer com isso. A crítica literária feita hoje na academia
brasileira, na universidade brasileira, é boa e tem rendido bons trabalhos,
boas teses, ótimos livros. A pequena crítica de jornal, rápida e deselegante, apressada
e, muitas vezes, míope, essa sim, ineficaz e fossilizada, presa a valorações e
elogios compadrescos e interesses editoriais, tem sido incapaz de descobrir
valores entre os inúmeros escritores que hoje produzem e publicam no Brasil. Se
não forem estas as razões, por quais delas teríamos Chico Buarque de Holanda
reconhecido como bom romancista? Ele é? Ou dizem isso apenas em virtude de ele
já ser famoso e respeitado como grande compositor de música popular? Isso ele
realmente é. Não se preocupe muito, no entanto, com essa cena brasileira, ou,
ao menos, não se preocupe tanto, ela se repete em outros lugares, não acontece
só aqui no Brasil não, em qualquer lugar do mundo existe boa e má literatura,
boa e má crítica. Por isso, a crítica é útil sempre, inclusive quando erra. E
sempre haverá escritores reclamando contra ela, principalmente quando ela não
fala deles ou não lhes dá atenção.
Edmund Wilson |
FRANCISCO PERNA-
Por
falar em crítica, no Festival de Poesia de Goyaz, uma pessoa do Rio de Janeiro
(eu estava saindo do Teatro São Joaquim) lhe perguntou se o senhor conhecia
Carmo Bernardes, já que havia um interesse muito grande pela obra dele e que
ninguém no Rio de Janeiro o conhecia. Vi que o senhor ficou estupefato. Como
isso pode acontecer, uma vez que lá nós temos nomes representativos das nossas
Letras, como é o caso do Gilberto Mendonça Teles?
HG - Essa é uma
pergunta que você deve fazer a quem disse desconhecer Carmo Bernardes, não a
mim. Foi Maria Lúcia Del Farra, de São Paulo, quem me perguntou, durante o Festival
de Poesia de Goyaz, se eu conhecia o Carmo. Disse que sim, pessoalmente
inclusive, pois cheguei a conviver com ele. Pois ela me disse (e isso é responsabilidade
dela, não minha) estar chocada por Ivan Junqueira e Gilberto Mendonça Teles lhe
haverem dito que desconheciam a obra do Carmo Bernardes. Ela não disse que todos
no Rio de Janeiro desconheciam. Deve ter havido um mal entendido, pois Gilberto
não pode ter dito isso, tenho certeza. Fiquei espantado, de qualquer forma. Que
Ivan Junqueira desconheça, não me impressiona, no entanto. A verdade é que Carmo
Bernardes é reconhecido também, infelizmente, por poucos. Ainda bem que Maria
Lúcia Dal Farra, crítica e professora respeitada, o conhece, aprecia sua obra e
a divulga. Isso é que é importante. Que Ivan Junqueira desconheça (e muitos
outros com ele), perda dele, não do Carmo.
CARLOS WILLIAN
LEITE - Em
linhas gerais, qual a avaliação que o senhor faz da literatura goiana, na sua
precoce existência, pouco mais de cem anos?
HG - Nem tão precoce
assim, pois que de bem mais de cem anos, já que nasceu ainda no século XVIII, o
mesmo século de nosso “descobrimento” por Bartolomeu Bueno da Silva. Mas não se
amofine com isso, a ficção brasileira data de um pouco antes de meados do
século XIX, portanto, tem, a rigor, um pouco mais que apenas cento e setenta
anos. Assim, a ficção brasileira, que já produziu um José de Alencar e um
Machado de Assis, tem quase a mesma idade da literatura em Goiás, que já
produziu um Félix de Bulhões e um Hugo de Carvalhos Ramos, sem contarmos
Bernardo Élis, Afonso Félix de Sousa, José Décio Filho e José J. Veiga, já que
são do século XX. Um estado que conta com poetas como Carlos Fernando Magalhães
e Yêda Schmaltz ou ficcionistas como Miguel Jorge, Alaor Barbosa e Antônio José
de Moura não tem com que se preocupar. Sua literatura vai muito bem, obrigado!
Yêda Schmaltz |
FLÁVIO PARANHOS - Como professor de
literatura inglesa na universidade, quais suas preferências em sua área de
estudo? E quanto à literatura norte-americana dos séculos XX e XXI, quais suas
preferências? Conhece o trabalho do contista Raymond Carver?
HG - E a poesia dele, claro,
além dos contos. Seus Poemas Coligidos
saíram em 1996, quase dez anos depois de sua morte, 1988. Conheço não todos,
mas muitos de seus livros, como conheço livros de todos os grandes escritores
norte-americanos, sem me esquecer nem de um outro Raymond, o Chandler, que
nasceu um século antes da morte de Carver e morreu bem antes, em 1959. Seus
romances, como Adeus, Minha Querida, A Dama no Lago e O Longo Adeus, são imperdíveis. Sou leitor de Irwing, Hawthorne,
Poe, Wharton, James, Lewis, Faulkner (na época do GEN, entre 1963 e 1969,
cheguei a fazer conferência sobre ele, numa de nossas reuniões), Steinbeck,
Saroyan, McCullers, O’Neill, Tennessee Williams, são tantos. Mais todos os
escritores afro-americanos, inclusive os menos conhecidos entre nós, como a
contista e romancista Zora Neale Hurston ou a poeta Gwendolyn Brooks. E os
poetas? Whitman, Dickinson, Poe, Crane, Marianne Moore (grande influência
formal em minha poesia), Pound, Eliot (apesar de naturalizado inglês), assim
como escritores mais recentes, como o ficcionista Cormac McCarthy, o poeta Mark
Doty, a contista e romancista Annie Proulx, entre os mais recentes. Nem vou
falar dos escritores ingleses ou de Shakespeare, especialmente, que comecei a
estudar em fins de 1958, obrigação de qualquer escritor na face da terra, ao
menos uma vez na vida. Todo poeta tem a obrigação de estudar o grande Bardo
inglês.
Minha
sorte, ou meu problema, é eu ser professor de literatura inglesa ou de língua
inglesa na Faculdade de Letras da UFG e também no Departamento de Letras da
UCG, o que me obrigou a uma especialização em literatura da Inglaterra. Mas
esse colonialismo vai acabar. Nas duas universidades, já reformulamos os
currículos e agora estudamos “Literaturas de Língua Inglesa” e não mais apenas
inglesa e norte-americana. Ainda bem, pois isso me levou a fazer um doutorado
em literatura irlandesa e descobrir a riquíssima literatura da Irlanda.
Atualmente, ando interessado em outras literaturas de língua inglesa, como a do
Canadá, onde existe uma Margaret Atwood; da Austrália, onde existe um Patrick
White, que já ganhou o prêmio Nobel; da África do Sul, de onde saiu um John
Michael Coetzee e uma Nadine Gordman, também premiados com o Nobel; da Nigéria,
de onde saiu outro Nobel, Wole Soyinka, mas onde existe ainda um Chinua Achebe ou
um Ben Okri. Mas, na verdade, estou mais interessado em outros escritores menos
conhecidos ainda, como Musaemura Zimunya, Julius Chingono, John Eppel, Dambudzo Marechera, Chenjerai Hove, Freedom Nyamubaya, Kristina Rungano,
alguns dos mais importantes poetas do Zimbábue do período pós-independência. Estou
preparando um texto sobre esses poetas, para apresentação no próximo congresso
da Abralic (Associação Brasileira de Literatura Comparada) no Rio de Janeiro,
no próximo mês de julho. As possibilidades de estudo e de pesquisa sobre esses
poetas fora do cânone tradicional são inúmeras.
Acabei
de traduzir vários poetas africanos de língua inglesa e dois contos irlandeses,
um de Flann O’Brien (foi sobre seus romances que escrevi minha tese de
doutorado) e outro de James Stephens, para uma antologia de contos daquele
país, organizada pela profa. Dra. Munira Mutran, que foi minha orientadora, e
que deve sair pela Humanitas, uma das editoras da USP. O livro já foi aprovado
para publicação. Lamentei a morte recente de Muriel Spark, grande escritora.
Não tenho acompanhado, infelizmente, os mais recentes lançamentos de Doris
Lessing, não nascida, mas criada na antiga Rodésia, hoje Zimbábue. Desconheço
os últimos livros de Peter Carey, da Austrália, ou Hanif Kureishi, de origem
paquistanesa, mas inglês. Não li o último romance de Kazuo Ishiguro, nascido no
Japão, mas inglês por opção. Não estou me exibindo ou, talvez, diria Chaves, o
comediante, “sem querer, querendo!”. Sou professor e doutor em literatura, é
minha profissão, tenho obrigação de conhecer esses escritores, não posso deixar
alunos sem informação ou sem respostas. Literatura, um amigo meu professor, já
falecido, costumava dizer, é um poço sem fundo, quanto mais você lê, mais
existem coisas a serem lidas e descobertas. Eu tenho muita pena de pessoas que
sempre afirmam estar relendo algum clássico, tenho sempre a impressão de que
não saem do lugar. Não sou contra releitura dos clássicos. Mas a releitura dos
clássicos sem a leitura do novo e atual é inconcebível.
Raymond Carver |
FLÁVIO PARANHOS - Falando em
Raymond Carver, lembro-me da brilhante versão de seus contos para o cinema (Short Cuts, de Robert Altman). Qual
é maior, o cinema ou a literatura?
HG – Os dois são grandes e nenhum é melhor que o outro. São linguagens e
meios diferentes, apenas. Um grande filme é como um grande romance, eleva-nos e
emociona-nos da mesma forma. Não acho que exagero ao dizer isso, mesmo sendo
cinéfilo de carteirinha há anos, desde a adolescência. Fiz meu primeiro curso
sobre cinema com um professor que veio de Belo Horizonte, um padre salesiano ou
jesuíta, em 1960, quando tinha quatorze para quinze anos. Não me lembro de seu
nome agora. As aulas foram no auditório do Colégio Santo Agostinho, com
patrocínio do Ateneu Dom Bosco, onde estudava, se me lembro direito. Foi uma
revelação, abriu-me os olhos para o cinema como arte. Eu o via apenas como
possibilidade de diversão. Abriu-me os olhos também para os grandes filmes
clássicos, que passei a procurar conhecer. Foi quando vi O Encouração Potemkin, de Eisenstein, num antigo cinema de
Campinas, o Cine Eldorado. No antigo Casablanca, também descobri o cinema de
Akira Kurosawa, quando lá exibiram um festival de cinema japonês. Fiquei
maravilhado com Os Sete Samurais e O Trono Manchado de Sangue (que é uma
adaptação de Macbeth, de Shakespeare).
Mas, por falar em Short Cuts, por qual razão será, deram o último Oscar para Crash, esse filmezinho repetitivo e
pouco inventivo, inclusive o de melhor roteiro original, e não deram Oscar
algum para Short Cuts, na época, de
onde evidentemente saiu a ideia para Crash?
Quem já assistiu a Short Cuts, sabe de início que a ideia de Crash nasceu do filme de Altman. Mas isso não faz parte de sua
pergunta. Digo-lhe apenas que me interesso muito por cinema, tenho muito
respeito pelo cinema e digo sempre a meus alunos da UFG, que fazem uma
disciplina que ofereço lá todos os anos, “Literatura e Cinema”, que assim como
o cinema se alimentou da literatura em seu início, a literatura beneficiou-se
enormemente com a invenção do cinema, principalmente em relação às novas possibilidades
da narrativa ou dos modos de se criá-la.
Akira Kurosawa |
EDIVAL LOURENÇO
- Quando
e como o senhor começou a se interessar pela Literatura Inglesa, especialmente
a produzida na Irlanda?
HG – Meu interesse
pela literatura inglesa data do tempo em que comecei a ler livros. Naquela
época, década de cinquenta e início da de sessenta, romances ingleses do século
dezenove eram muito lidos. Além disso, na década de quarenta e cinquenta, minha
geração teve a sorte de poder contar e ler as traduções editadas pela Editora
Globo, de Porto Alegre, onde se publicou muito de literatura estrangeira, em
ótimas traduções, por grandes escritores brasileiros, assim como de uma coleção
da José Olympio, a “Fogo Cruzados” (tenho alguns desses volumes até hoje,
datados da década de quarenta, que pertenceram à minha família): Jane Austen,
as irmãs Brontë (quem não leu Morro dos
Ventos Uivantes na adolescência não viveu uma juventude romântica), Charles
Dickens, Thomas Hardy e D. H. Lawrence, principalmente. Na década de cinquenta,
também, foram publicados em Portugal, pela editora Atlântida, de Coimbra,
vários volumes de uma coleção chamada “Antologia do Conto Moderno” (a edição
original era em capa dura, vermelho-vinho, com letras em dourado – depois
passaram a fazer edições comuns, com capa em cartolina mesmo), que incluía
Steinbeck, Dorothy Parker, Ignazio Silone, Caldwell, Saroyan, Unamuno, Maugham,
Faulkner, Woolf, Lawrence, até uma contista alemã de quem nunca li livro algum
mais, Ana Seghers (a antologia dos contos dela, que tenho, é de 1954), sobre
cujos contos, aliás, escrevi um artigo e publiquei na antiga Folha de Goyaz. Quem nunca leu O Amante de Lady Chatterley escondido,
na adolescência, não aprendeu nada sobre sexo. Deles para os outros foi uma
questão de tempo e de estudo. Lembro-me de que, quando ainda era estudante do Liceu
e passei a freqüentar as reuniões do GEN, levado por Ciro Palmerston, depois me
tornando integrante do grupo, Miguel Jorge era apaixonado por Judas, o Obscuro, de Hardy, e emprestava
o livro para todo mundo, querendo que todos o lessem. Quase exigia isso. Minha
primeira leitura dele foi feita nesse volume, que o Miguel tem até hoje, em sua
biblioteca. A convivência no GEN foi outra oportunidade muito proveitosa, pois
todos nós líamos muito, discutíamos muito. Tínhamos quase que uma obrigação de
ler todas as novidades e quase um livro por semana ou dois. Depois, quando fui
fazer o curso de letras, fiz licenciatura em português-inglês. Foi
aí que descobri o colonialismo literário, pois o que se considerava e se estudava
como literatura inglesa não vinha da Inglaterra, mas da Irlanda: Jonathan
Swift, George Bernard Shaw, Oscar Wilde, William Buttler Yeats, James Joyce,
Samuel Beckett. Existe uma piada universitária, que diz que a melhor literatura
inglesa é escrita na Irlanda. E é mesmo! É verdade.
Depois,
fui fazer mestrado na Universidade de Tulsa, no Oklahoma, nos Estados Unidos.
Meus professores lá eram quase todos pesquisadores e especialistas em
literatura inglesa, principalmente irlandesa, como o Dr. Thomas F. Staley,
fundador e, na época, editor da mais importante revista sobre James Joyce no
mundo, a James Joyce Quarterly. Com
ele fiz um curso só sobre Joyce. Outro professor que tive em Tulsa foi o Dr.
Joseph Kestner, especialista em literatura inglesa e européia (que chamam de “continental”,
por lá), com quem estudei muito outros romancistas ingleses do século dezenove:
Disraeli (sim, isso mesmo, o próprio primeiro ministro da rainha Vitória),
Elizabeth Gaskell, George Eliot (de quem já lera, desde o fim da década de
cinqüenta, O Moinho à Beira do Floss),
Maria Edgeworth e George Moore (esses dois, irlandeses). Além de outros de
outros países: russos, italianos, francês e alemães. Foi lá que li e estudei Evgeny Oneguin, de Pushkin, um romance escrito em versos (lamento
que Haroldo de Campos nunca tenha traduzido este romance para o português, é
magnífico). Lá em Tulsa fiz minha pesquisa de mestrado e escrevi minha
monografia sobre a estrutura dos contos de D. H. Lawrence, sob a orientação do
prof. Dr. Donald Hayden, grande especialista em poesia inglesa vitoriana,
Shelley, Byron, Keats, Browning e outros.
Agora,
fazer doutorado em literatura irlandesa foi uma imposição das circunstâncias.
Por ser professor titular de literatura inglesa na UFG e por conhecer, na
época, apenas a Dra. Munira Mutran, dentre os professores orientadores
disponíveis, na área de literatura de língua inglesa. Ela só orienta teses
sobre literatura irlandesa, sua especialidade. Tive uma sorte enorme de poder
trabalhar com ela, que me aceitou como orientando, e descobrir mais sobre a
Irlanda e seus outros grandes escritores, principalmente esse fantástico e
inventivo, grande escritor que é Flann O’Brien, objeto de minha pesquisa. Hoje
ando pesquisando, como já respondi ao Flávio, outras literaturas em língua
inglesa. Meu poeta de leitura constante, nos dias atuais, é Dambuzo Marechera,
de quem comprei três livros: The House of
Hunger (contos), Black Sunlight
(romance) e Cemetery of Minds
(poesia). De Annie Proulx, por causa do filme O Segredo de Brokeback Mountain, tenho na estante, esperando para
serem lidos, The Shipping News (romance
que ganhou o prêmio Pulitzer), Close
Range e Bad Dirt (livros de
contos). Além desses, algumas antologias: The Oxford Book of Australian Short Stories, The New Oxford Book of Canadian Short Stories, The Best Australian Short Stories, The Faber Book of Contemporary Australian Short Stories, The Anchor Book of African Short Stories
e The Penguin Book of African Poetry.
Estão
todos na minha biblioteca, quase saltando na minha mão. É muita coisa para um
professor só, que ainda tem, por outros compromissos, de tentar ficar a par do
que se publica no Brasil e em
Portugal. Como não acompanhar a carreira de António Lobo
Antunes? É um extraordinário e difícil romancista, muito mais merecedor do
Nobel (insisto em dizer sempre: na minha opinião e ninguém precisa concordar
com ela, é só mesmo uma opinião, não uma verdade!) do que Saramago, mais
comercial e mais fácil.
Jane Austen |
FRANCISCO PERNA
– Por
falar em Irlanda, para o senhor, quem é mais genial, Oscar Wilde ou James Joyce?
HG – Francisco, você não obtém nada com uma pergunta como essa, só uma
opinião, nunca uma verdade ou um juízo definitivo e imutável, que todo mundo
deve aceitar ou engolir, repito. Opinião pessoal não tem valor cultural, não é
uma verdade. O “achismo” não é ciência. Esse tipo de pergunta interessa a quem
é preocupado em criar fatos, notícias escandalosas e controversas, que seja dedicado
a provocar debates tão insensatos quanto inúteis. Veja, Wilde e Joyce são ambos grandes
escritores, ambos geniais, cada um em seu tempo e por razões completamente
diferentes. Não posso menosprezar um em benefício do outro, não posso valorizar
mais um do que o outro. Tudo dependerá da aula que estiver ministrando, se for
sobre a literatura gótica, como estou dando aula neste ano de 2006, num curso
para meus alunos da Federal, do quarto ano seriado. Aí é Wilde que entra na
lista de leitura, com O Retrato de Dorian
Gray. Se for sobre o conto moderno, como no curso que ministro neste
semestre para o quinto período semestralizado, também na Federal, e para o
quarto período, na Católica, é Joyce que vai entrar, com seus contos de Dubliners, e muitos outros contistas. Os
dois escritores fazem parte de meu repertório de leituras, são grandes e
fundamentais. Só isso interessa.
James Joyce |
EDIVAL LOURENÇO - A Dublin de Joyce em Ulisses é um labirinto que se constitui
numa espécie de “prisão das almas”. Nada do que está nela contido (personagens,
ideias, hábitos, anseios, etc) parece encontrar saída. Há um contexto sócio-cultural
de colônia, disputas políticas, injustiça social, degradação familiar, droga
(álcool), corrupção, hipocrisia. Goiânia, ou qualquer outra cidade brasileira
de porte médio acima, vive em contexto semelhante à de Dublin de Ulisses, em 1904. O Sr. acredita
possível o surgimento de um Joyce tupiniquim, que possa traduzir o nosso
contexto com tanto vigor, ou a Literatura não tem mais o poder de representação
que teve com Joyce e no tempo dele?
HG – E por qual razão
estaríamos interessados em um escritor com o vigor irlandês de Joyce? Um Joyce
tupiniquin seria uma excrescência. Nós precisamos de escritores brasileiros,
com vigor brasileiro e só. O mundo mudou muito no século XX. Acho não haver
clima literário, no Brasil, para romances como Grande Sertão: Veredas, O
Romance d’A Pedra do Reino ou Catatau. Este último, aliás, é
propositadamente ilegível e, por isso mesmo, desafiador e importante, como toda
a obra do Leminski. Não é por isso que é “Prosa Experimental”? Cada um à sua
maneira, Guimarães Rosa, Suassuna e Leminski, respectivamente, tentaram em seus
livros um retrato do Brasil. Mas não acho que tivessem em mente repetir ou ser
igual a ninguém no mundo, nem mesmo Rosa, que foi inegavelmente influenciado
por Joyce, embora gostasse de negar isso. Ter influências não é vergonha ou
erro; fazer igual, sim. E eles não fizeram. O que interessa é que tenhamos
escritores que, de uma forma ou outra, também exponham nossa cara, como José de
Alencar, Machado de Assis e Aluísio de Azevedo fizeram, no século XIX. Qual o
tipo de romance que aparecerá na literatura brasileira atual? Não sei. Espero
que seja bom. Um Bernardo Carvalho, um Fernando Bonassi, um Cristovão Tezza, um
Marcelo Mirisola, um Marçal Aquino, e tantos outros escrevendo atualmente, não
me parecem interessados em criar romances com tão amplo escopo quanto o Ulisses, de Joyce. São escritores de
naipe ou clave diferenciada, mais miniaturistas, mais detalhistas quanto à
contemporaneidade, à violência urbana, à desintegração da sociedade em seus
vários níveis, mais pós-modernos. Hoje, menos que no século XX, para seguirmos
o raciocínio de Walter Benjamin, há menor possibilidade ainda para a ação
épica, para a construção de uma narrativa que dê conta de um painel amplo de
nossos problemas. Viva o Povo Brasileiro,
de João Ubaldo Ribeiro, tentou isso antes, não foi? Acho que Sargento Getúlio é mais pertinente, sob
este aspecto.
Acho
que precisamos de bons escritores, bons romancistas, só isso. Que sejam
brasileiros como quiserem, que retratem nossa cara tal como somos, que nos
surpreendam com sua criatividade e originalidade. E basta. Sobretudo, que não
sejam novos Joyces, novos Prousts, novos sei lá o quê. Espero que sejam apenas
eles mesmo. E muito, mas muito bons.
Walter Benjamin |
EDIVAL LOURENÇO – Uma das técnicas mais notáveis em
Joyce é o monólogo interior, usado principalmente no discurso de Molly Bloom,
em Ulisses. Essa técnica narrativa,
Joyce buscou em um certo Édoudard Dujardin (escritor do século 18), que, aliás,
é um ilustre desconhecido. O senhor concorda com Ralph Waldo Emerson que “nossas
melhores ideias são dos outros?”
HG – Desconhecido para
quem não leu nenhuma das duas traduções e edições brasileiras (além da
portuguesa), a última pela Editora Brejo, em tradução de Hilda Pedrollo. A
primeira (pelo menos, que eu conheço) saiu com o título de A Canção dos Loureiros, em tradução de Elide Valarini, pela Editora
Globo. Eu o li pela primeira vez em inglês, em 1981, na tradução de Stuart
Gilbert, quando fazia o Mestrado em Tulsa, no Oklahoma, Estados Unidos. Acho
que o problema não é o Monólogo Interior (Monologue
Intérieur, em francês), o discurso de um(a)
personagem posto(a) em cena e que tem como objetivo introduzir o leitor
diretamente na vida interior desse(a) personagem, sem que o autor intervenha
com explicações ou comentários. O que quer dizer que é um discurso sem
interlocutor, sem quem o escute. Ou em que o emissor é seu próprio
interlocutor. Ainda, quanto à forma, realiza-se através do uso de frases diretas,
reduzidas ao mínimo de sintaxe. Essa é a definição clássica de monólogo
interior, dada pelo próprio Dujardin. Mas é preciso distinguir o que Joyce fez,
que foi mais “Fluxo de Consciência” (Stream
of Consciousness, em inglês), no monólogo de Mary Bloom. O monólogo interior é mais organizado e lógico, enquanto o
fluxo de consciência, que é uma extensão do monólogo interior, é menos organizado
e lógico, com sintaxe praticamente inexistente, pela consciência do personagem,
que não fala para si mesma, apenas pensa, deixa sua consciência fluir, sem
nexos lógicos, valendo-se apenas de nexos emocionais ou psíquicos. Há teóricos
que não vêm diferença entre um e outro. Outros, mais minuciosos e detalhistas,
separam as duas técnicas. Eu sigo esses últimos. Monólogo interior e fluxo de
consciência são técnicas distintas e o segundo é um avanço sobre o primeiro,
sendo de uso mais difícil e complexo. Do primeiro, historicamente, Dujardin fez
uso inicial. Joyce reconheceu isso, também é verdade. Mas, se você ler Os Loureiros Estão Cortados, em
pouquíssimos momentos e de forma bem primária a corrente de consciência aparece.
O que predomina é o “monólogo interior”. O problema é que já em Dubliners e em O
Retrato do Artista
Quando Jovem essa técnica do monólogo interior aparece, assim como aparece,
de certa forma, em Flaubert, através do uso do “discurso indireto livre”, também,
de maneira insipiente, tateante, em Doistoiévski e Proust, por exemplo, sem ter nada a ver com
Dujardin. Joyce, muito mais que reconhecer um processo anteriormente utilizado
por outro escritor, fez uma homenagem a alguém cuja lembrança quase
desaparecera. Dujardin, já velho (nasceu em 1861 e morreu em 1949), teve sua
fama reconstruída e refeita por Joyce. Depois que virou celebridade, graças ao
escritor irlandês, passou a fazer conferências sobre o assunto, chegando a
publicar um livro crítico-teórico, resultado dessas conferências, que chamou de
O Monólogo Interior, publicado em 1931, em que fala muito mais da técnica de
Joyce do que da dele, que era incipiente e canhestra. Na verdade, estamos
diante de um caso de criação do antecedente. Joyce foi honesto e extremamente
gentil ao dizer a Valéry Larbaud, que divulgou a notícia, de ter tirado sua
técnica, muitos anos depois de ter lido o livro de Dujardin, de Os Loureiros Estão Cortados. Ele nem
precisava reconhecer que apreendera a técnica do monólogo interior com
Dujardin, pois na verdade foi ele, Joyce, a fazer uso consciente e definitivo
da técnica, transformando-a, ampliando-a, dando-lhe o aspecto definitivo do
fluxo ou corrente de consciência. Foi com Joyce, e não com Dujardin, que outros
escritores, como Virginia Woolf e Faulkner, aprenderam-na. A técnica, tal como
usada por Joyce, é muito mais complexa e rica do que a insipiência do
tratamento dado a ela por Dujardin. Basta que você leia o livro e vai comprovar
isso. É um livro interessante, mas insignificante, perto de Ulisses, tecnicamente falando. Às vezes,
na literatura (e nas outras artes também), isto acontece, alguém tem uma ideia,
mas ela é melhorada, ampliada e usada por outro, de mais talento, com muito
mais eficácia e precisão. Quem pode garantir, por exemplo, que Picasso não
copiou Bracque, ou vice-versa, quanto ao Cubismo? Ambos juraram, por toda a
vida, desconhecer o trabalho um do outro. A historiografia consigna que ambos
criaram o Cubismo.
Na
verdade, Joyce nem precisava ter dito o que disse. Se tivesse sido desonesto,
ninguém, até hoje, falaria tanto sobre Dujardin. Ele foi honesto e até hoje
existe gente que quer diminuir ou desqualificar Joyce, dizendo que ele tirou
sua ideia da técnica do fluxo ou corrente de consciência do uso do monólogo
interior por Édouard Dujardin. Esta sim, é que é uma discussão fossilizada e
inútil, condenar um artista por ter sido honesto e digno.
Agora,
ao citar o romântico norte-americano, do século XIX, Emerson, você tenta
desqualificar o também norte-americano, mas modernista, Harold Bloom, que
teorizou a “angústia da influência” e utilizou-a na teoria, na crítica e na
historiografia literária. Você está tentando, num gesto kenósico defensivo (a palavra é da teoria do Bloom) de recriação de
uma antecedência (no caso, mais remota ainda) que desqualificaria Harold Bloom
muito mais. Cá entre nós, a frase de Emerson é uma “verité de La Palisse ” ou “palissade”, uma
dessas verdades enunciadas com pompa e circunstância, mas que apenas repetem o
óbvio. Dizer que “nossas melhores ideias são dos outros” é repetir, com outras
palavras, uma velhíssima expressão: “Nada de novo sob o sol, depois da Bíblia.”
E isso sempre foi demonstração de poder e de desqualificação de ideias novas,
como se só o passado e o antigo contivessem verdade ou fossem merecedores de
respeito. Quem gosta dessas ideias, quer se manter no poder e não aceita o novo
e o transformador. Sou a favor da utilização de todas as boas ideias, desde que
de maneira criativa. Não vejo problema em um escritor ser influenciado por
outro. Recomendo apenas a busca de influência de escritor realmente bom e
grande. E volto a repetir o que disse numa outra entrevista, há algum tempo,
quem é influenciado por escritor menor não tem futuro literário.
Édouard Dujardin |
EDIVAL LOURENÇO - Em seu poema “Auto-retrato” (Lugar Comum e Outros Poemas - 2005) há a
seguinte estrofe: “Se já escolhi caminhos errados,/sempre sei aonde não quero
ir;/ prefiro evitar amigos a construir/adeptos – sou muito constante/quando
trato de ódio; vulnerável, /quando acho que o que é o amor/perdura.” José Régio
em seu conhecido “Cântico Negro” (Poemas
de Deus e do Diabo – 1925) diz: “Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,/
Ninguém me peça definições!/ Ninguém me diga: ‘vem por aqui’!/ A minha vida é
um vendaval que se soltou,/ É uma onda que se alevantou,/ É um átomo a mais que
se animou.../ Não sei por onde vou,/ Não sei para onde vou/ Sei que não vou por
aí!” Na opinião do senhor este ponto de contato, este diálogo estabelecido
entre os dois textos de épocas diferentes, constitui uma sedimentação cultural
ou a expansão de um sentimento que é recorrente à humanidade?
HG –
As duas coisas, acho. Eu uso muito, em minha poesia, esse jogo intertextual com
os autores de minha preferência. Meu livro Fábula
Fingida, de 1985, é todo construído sobre a intertextualidade, isso que
você chama de diálogo entre dois textos de épocas distintas e poetas diversos.
Pois José Régio está incluído entre meus poetas favoritos. Já ministrei muita
aula usando especialmente este poema dele. Depois, o imaginário coletivo sempre
guarda algumas coisas dos grandes poetas. Por exemplo: “Ora, direis, ouvir
estrelas!”, “Escarra nesta boca que te beija!”, “O poeta é um fingidor!” ou
“Vou-me embora pra Pasárgada!”. Mesmo quem nunca leu, respectivamente Olavo
Bilac, Augusto dos Anjos, Fernando Pessoa ou Manuel Bandeira reconhece, usa,
cita, parafraseia estas frases ou versos. A mesma coisa com os versos “Não sei
para onde vou/Sei que não vou por aí!”, do nosso grande José Régio. O diálogo
ou o jogo intertextual com eles, em meu poema “Auto-retrato”, foi proposital.
Há um outro, com Drummond, por causa do título de um dos livros dele, Fazendeiro do Ar. Em meu poema
“Fazendas”, do mesmo Lugar Comum,
digo que “Minhas fazendas nem estavam/ no ar”. Outro exemplo, agora de diálogo
com Casemiro de Abreu, poeta do Segundo Romantismo: meu poema “Deus” faz uso
consciente até do título do poema dele, e ainda intertextualiza versos dele “Eu
me lembro! Eu me lembro! – Era Pequeno”, que transformei em “Sim, eu me lembro,/
pois um dia também/ já fui pequeno”, em que o “sim” inicial e o “também” do
final do segundo verso claramente remetem o leitor ao poema de Casemiro de
Abreu, marcando uma repetição (sim) e uma referência proposital, posterior
(também). Na segunda estrofe do poema, só a palavra “bramia” é suficiente para fazer
o leitor se lembrar da expressão “o mar bramia”, do poeta romântico. E assim, da
mesma forma, em vários outros trechos de poemas meus.
Não tenho problema em dialogar com bons poetas. Não
dialogo com maus poetas, aqueles que não fazem parte do repertório de minhas
preferências O que é preciso notar, no entanto, é que não tenho linguagem nem
estilo parecido com os deles. Mantenho, ao longo dos anos em que tenho sido
poeta e professor, constante e perene diálogo com tais poetas, seja através de
minha produção poética e de minhas aulas, seja através de minhas leituras não
vinculadas a aulas. Meu processo de escrita envolve isso também. Daí eu ter
concordado com você desde o início de minha resposta, pois acho que sim, as
duas coisas acontecem, uma sedimentação cultural e também a expansão de um
sentimento que é recorrente, se você quer dizer com isso que guardamos na
memória e assimilamos, mais emocional do que racionalmente, versos, frases,
momentos da criação de grandes artistas, momentos esses capazes de nos
emocionar tanto, a ponto de não mais nos livrarmos deles. Creio que é
exatamente isso. E posso lhe garantir que esse diálogo ou esse jogo
intertextual estará sempre presente em minha poesia. Já esteve até na prosa. Todo
o conto “O amante de Londres”, do livro de mesmo nome, faz um jogo intertextual
com sonetos de Shakespeare. No título de meu livro A feia da tarde e outros contos esse jogo acontece também, por
causa do famoso romance de Joseph Kessel, A
Bela da Tarde. Em meu penúltimo livro de poesia, A Ordem da Inscrição, de
2004, fui além da mera intertextualidade, cheguei mesmo a incorporar, verbatim, trechos inteiros de Raniero
de’ Calzabigi, no original italiano e em itálico, para deixar bem claro ao
leitor que aquilo era mais que uma citação, era um incorporação. Isso sem
mencionar, no mesmo livro, o diálogo estabelecido também com Rainer Maria Rilke,
quer com Elegias de Duíno, quer com Sonetos a Orfeu.
Finalmente, nunca pretendi esconder meus
conhecimentos, minhas leituras, minhas preferências, minhas influências. Minha
poesia reflete isso claramente, pois nunca escondi meu jogo intertextual. Sabe
o que me angustia mais em relação a isso? É reler, por exemplo, Fábula fingida e ser incapaz de me
lembrar ou de identificar a origem da intertextualidade ou do diálogo, pelas
tantas vezes que eles acontecem nesse livro. Às vezes custo a me lembrar de
onde tal pequeno trecho saiu, quais transformações ou alterações incluí nele.
Acho que esse diálogo enriquece minha poesia e é salutar para eu saber, muito
conscientemente, que não sou o primeiro, que muitos outros chegaram primeiro do
que eu, que não estou só, que existem muitos e muitos outros poetas por aí. Todo
poeta, ao escrever, deveria ao menos pensar que, ao mesmo tempo em que ele
escreve seu poema, milhares de outros poetas estão, em todo o mundo, a fazer a
mesma coisa, no mesmo instante. A maioria dos poetas, dos escritores em geral, de
Goiás, que conheço, escreve como se tivesse consciência de que só eles existem
no mundo. Coitados, você não concorda comigo? Ter esses poetas uma tão
grandiosa visão de si mesmos? Escritores como Bernardo Elis, J. J. Veiga e Eli
Brasiliense, entre os que já morreram, não agiam assim, sabiam bem da
existência da literatura anterior à eles, que estudaram. Dentre os vivos, Alaor
Barbosa, Carlos Fernando Magalhães, Antônio José de Moura, Miguel Jorge, não
agem assim. Todos têm a maior consciência do que se faz na literatura
brasileira e estrangeira hoje, por isso mesmo são bons e eu os respeito.
Divulgação |
EDIVAL LOURENÇO - O uso extraordinariamente criativo
da linguagem, proporcionando o surgimento de novas realidades, a introdução de
arquétipos, fazendo o texto ecoar o processo civilizatório percorrido pela
humanidade são alguns pontos em comum de Grande
Sertão: Veredas de Guimarães Rosa e Ulisses
de James Joyce. Rosa teria recebido influência direta ou indireta do escritor
irlandês, ou tudo não passa de mera coincidência?
HG – É claro que a
influência existiu. Afinal, Guimarães Rosa começou a publicar muito tempo
depois de Joyce. Rosa negava e até não gostava de que se referissem a isso, à
influência sofrida de Joyce. Mas ela é inegável. Rosa, afinal, sabia muito bem
inglês e várias outras línguas. O que ele parece não ter entendido é que essa
influência foi salutar e benéfica, não um desdouro. O que Guimarães Rosa fez
com a língua portuguesa é similar, mas não igual ao que Joyce fez com o inglês.
Além do mais, a inventividade dele não é igual, embora também similar, à de
Joyce. Rosa já havia lido Joyce antes de escrever Sagarana, mas a influência maior do escritor irlandês foi sobre Grande Sertão: Veredas, evidentemente.
Isso não desmerece Guimarães Rosa em hipótese alguma e nem é um problema. Será
que ninguém nunca notou que Dom Casmurro
é o avesso de Madame Bovary, que o
livro do brasileiro é o reverso do livro de Flaubert, isto é, que Dom Casmurro é uma clara e evidente,
incontestável reescritura de Madame
Bovary, do ponto de vista do marido traído? E olha que eu não acho ter
havido adultério. Só os cegos não enxergariam isso. Além do mais, tudo não é
apenas um disfarce? Machado não fez uso declarado de Otelo, de Shakespeare, em seu romance, para disfarçar aquele uso
mais sutil, mas de mais forte influência, de Flaubert?
Volto
a insistir: influência nunca foi problema. Copiar e repetir, sim. Só se
preocupa com a influência quem tem consciência de estar apenas repetindo ou
copiando técnicas e procedimentos alheios.
João Guimarães Rosa |
CARLOS WILLIAN
LEITE - Quando
as vanguardas brasileiras se esgarçaram, falou-se muito em pós-modernismo e
cultura de assimilação. Hoje, décadas depois, é possível dizer precisamente, em
qual período estamos? É possível contextualizar a inércia dos anos 90 com a
globalização linguística de agora?
HG – Engraçado seu uso
do verbo “esgarçar”, como se quisesse, já na pergunta, diminuir a importância
das Vanguardas. Desta forma, sua pergunta é preconceituosa. Você é ainda jovem.
Quando as vanguardas aconteceram – Concretismo, Práxis, Poema Processo – você
nem tinha nascido. Você não tem ideia do que foi viver os anos pouco anteriores
e, depois, os anos da ditadura de 64. Você não pode falar das Vanguardas assim
não. Concretismo, Práxis e Poema Processo, com todos os seus erros e seus defeitos,
com todos os desvios, foram fundamentais para o desenvolvimento da linguagem
poética brasileira da atualidade. Sem as Vanguardas das décadas de cinquenta e
sessenta, você não existiria hoje. Foram as Vanguardas que nos libertaram da
prisão da forma a que a insossa Geração de 45 nos havia condenado. Além de nos
terem libertado também de uma poesia sobre o “eu”, o “meu”, o “mim” e o “eu
mesmo”, a estética do próprio umbigo – infelizmente, ainda muito praticada
entre nós. Com exceção de João Cabral de Melo Neto, não havia nada de muito
interessante. Bandeira já não produzia nada de novo, Drummond demorou uma
década para se recuperar e cair no memorialismo de Boitempo e Boitempo II.
Pois as Vanguardas nos salvaram desse mesmismo e dessa repetitividade. O Concretismo
influenciou enormemente a propaganda, as artes plásticas, o design. Práxis
trouxe uma nova concepção de livro, de criação e de consciência poética. O
Poema Processo levou a liberdade da palavra a ainda mais amplas possibilidades.
Exageraram, erram de vez em quando? Sim, mas você não pode fazer pouco caso de
escritores, livros, posturas e tendências que ampliaram nossos horizontes
poéticos, nossa paisagem sonora, nossa capacidade de visualização além do verso
como apenas ou simples unidade rítmico linear. As Vanguardas descobriram novos
horizontes criativos, ao insistirem na qualidade verbi-voco-visual da poesia, que
nos enriqueceu enormemente e ampliou nossas possibilidades.
Quando
comecei na literatura, recomendavam os nossos escritores mais velhos (e
Domingos Félix de Sousa era o principal porta-voz dessa corrente, junto com
Gilberto Mendonça Teles), que devíamos estudar os clássicos, buscar o
aprendizado das técnicas do verso metrificado. Enfim, “repetir, para aprender”.
Mas pobremente se esqueciam eles de que, naquela época, no jornal Correio da Manhã, Mário Faustino, com
sua página de poesia, dizia isso, mas acrescentava o que a nós interessava muito
mais: “criar, para inovar”. E mais, diziam-nos por aqui que devíamos ser
“regionalistas”. Já imaginou? A diferença, e o que nos salvou, é que víamos o
futuro, não queríamos caminhar para o passado. Nós estudávamos e muito. O GEN,
por exemplo, tinha, como um de seus princípios, o estudo diário da literatura.
Quase toda semana (pois nos reuníamos semanalmente), um de nós se encarregava
de fazer uma pesquisa e uma palestra sobre um assunto literário qualquer, para
os membros do grupo. Fizemos inúmeros ciclos de estudos, sobre o conto, sobre
tendências da poesia, sobre estilos históricos, sobre tipos de romance, etc.
Ninguém nos mandou estudar. Por conta própria fizemos isso. E se melhoramos, se
alguns dentre os vários nomes que pertenceram ao grupo, perseveraram e
adquiriram respeitabilidade como escritores, foi por nossa conta mesmo, não de
sugestão de ninguém. E não foi só escritores que pertenceram ao GEN, dentre os
que não pertenceram, mas foram contemporâneos, alguns são hoje escritores de
respeito também.
Pois
as Vanguardas, que você parece menosprezar agora, ampliaram tudo isso,
salvaram-nos do regionalismo e da poesia da Geração 45, mergulhando-nos fundo
num mundo novo e frenético de criatividade nova. Devo reconhecer que a fundação
de Brasília deu novo impulso ao nosso estado e a todo o Centro Oeste.
Acostumados à Goiânia pequena e interiorana daquele tempo, nossos velhos
escritores e homens de letras não vislumbravam maiores possibilidades nem para
si próprios, embora sonhassem com a glória nacional. Alguns conseguiram alguma
glória. Nós, de outro tempo e com diferente predisposição, nunca aceitamos essa
forma de controle que queriam exercer sobre nós. Gostem ou não da ideia, foi o
GEN que abriu caminhos. Juntos com alguns outros escritores, que nunca fizeram
parte dele, é bem verdade, mas que comungavam com o GEN alguns ideais similares
ou concorrentes, como Carlos Fernando Magalhães, Antônio José de Moura e Alaor
Barbosa. E não interessa o que digam, nós, dessa geração, viemos primeiro.
Líamos jornais do Rio e de São Paulo diariamente; comprávamos O Estado de São Paulo por causa de seu
“Suplemento Literário” dominical (que não existe mais, com a mesma qualidade
daquele tempo, hoje); estávamos (e procurávamos ficar) a par de tudo o que se
fazia e se escrevia no Brasil. Goiânia cresceu quando nós crescíamos, quando
nossas duas maiores universidades, a Católica e a Federal, foram fundadas. Foi
nossa geração que colocou Goiás em sintonia de atualidade em relação ao que se
fazia no resto do país. Antes de nós isso não acontecia, tudo chegava aqui com
muito atraso. Gilberto Mendonça Teles estreou como neo-parnasiano, com dois
livros que denunciam isso irrefutavelmente, Alvorada
e Estrela d’Alva, com direito a uma
“Ode à Árvore” e tudo, na década de cinquenta, com o Concretismo já em
andamento e provocando mudanças. Não estou dizendo isso como se fosse culpa
dele. Pelo contrário, Gilberto construiu uma carreira respeitável e evoluiu
consideravelmente depois desse início neo-parnasiano. Nós tivemos mais sorte em
nosso início. Por causa das Vanguardas, fomos mergulhadas num universo mais
dinâmico e criativo, mais voltado para o futuro, para a busca do novo e do
diferente.
Se
as Vanguardas erraram? Sim, erraram, exageraram, caíram na repetição, como
qualquer tendência, em qualquer época e lugar. Isso não invalida a existência
dela. A afirmação de Ferreira Gullar de que as Vanguardas não valeram nada é
errada, sinto muito ter de dizer isso. Ele é muito bom poeta, mas nasceu no
Neo-concretismo e nele escreveu um grande livro, A Luta Corporal.
Pessoalmente, acho este livro mais importante do que Poema Sujo. Precisamos reavaliar as Vanguardas, é claro, mas não
fazer tabula rasa de todas as suas conquistas e dizer que não valeram a pena.
Ou, se isso for feito, que se diga ao menos a razão. Até hoje nunca ouvi razões
convincentes o suficiente para me fazer mudar minha opinião favorável às
Vanguardas. Só afirmações contundentes, que carecem de análise e confirmação
através da análise.
Mas
você ainda fala de um “marasmo dos anos 90” ? Não vejo os anos noventa como de marasmo.
Como, se foram os anos que viram a consolidação de um Francisco Alvim, de um
Alexei Bueno, um Carpinejar e um Paulo Henriques Brito? Não, definitivamente,
os anos noventa não foram de marasmo, e olha que estou me referindo só à
poesia. E se lhe indagar de Marçal Aquino, Bernardo Carvalho, e tantos outros
prosadores? Os anos noventa, em Goiás, viram o melhor possível de Miguel Jorge,
Antônio José de Moura, Yêda Schmaltz, Carlos Fernando Magalhães e Alaor
Barbosa, que publicou o romance Memórias
do Nego-Dado Bertolino D’Abadia
em 1999. Não, definitivamente os anos noventa não foram de marasmo. Releia o
que foi publicado no período e veja se não tenho razão.
Agora,
o que vem a ser “globalização linguística”? Não sei o que é isso. Seria, por
acaso, mundialização linguística. Porque mundialização é uma coisa,
globalização, atrelada às grandes corporações econômico-industriais, não tem a
ver com linguística. O que é isso, um novo conceito linguístico? Desconheço, se
for. Se você se refere a algo como o domínio de uma linguagem (a do computador,
por exemplo) ou de uma língua (o inglês) sobre as outras, então você está
falando de mundialização, não de globalização. Seria a possibilidade de que uma
só língua esteja ganhando primazia sobre as outras? Isso nunca vai acontecer,
não até que a identidade de um povo – suas emoções e paixões – seja marcada
pela língua que fala, e isso é imutável. Não se a melhor língua para o comércio
for a do freguês ou comprador, como insistem aos industriais e produtores
japoneses, derrotando os norte-americanos na conquista do mercado consumidor.
Para
complicar nosso problema, sua pergunta faz referência ao Pós-Moderno e
pós-modernismo. Talvez você não saiba que a expressão “pós-modernismo” tem
exatamente setenta e dois anos, pois foi cunhada por Federico de Onis (crítico
literário e antologista espanhol, catalão, mais exatamente), em 1934, para
expressar uma reação aos experimentos modernistas (portanto, de nascença, uma
posição retroativa, passadista e anti-revolucionária). Posteriormente, em 1947,
o historiador inglês Arnold Toynbee usou-a para se referir ao período que viria
depois do modernismo na história do mundo. Em 1959, Harry Levine transformou-a
em expressão pejorativa, para descrever a decadência que aconteceu com as
consequências do modernismo. Na década de sessenta, a expressão passou a ser
usada em sentido de aprovação a uma nova sensibilidade, em referência a
atitudes que, nos anos posteriores à Segunda Grande Guerra, rompeu com as
técnicas e convenções do modernismo, sem, no entanto, retomar as posições
realistas e pré-modernistas. A partir dos anos setenta, a expressão passou a
ser usada para se referir à condição humana geral, depois da dissolução da
hegemonia burguesa no capitalismo tardio e ao desenvolvimento da cultura de
massa. Quem melhor escreveu e continua escrevendo sobre este último significado
da expressão é a canadense Linda Hutcheon. Ao menos, na minha opinião. Tais
informações você encontra nos críticos, historiadores e teóricos do assunto.
Existem vários.
A
qual desses pós-modernismos você se refere? Se entendi o que quis perguntar,
você parece se referir a esse último. Mas parece querer entender a codificação
cultural da pós-modernidade como uma construção (ou seria des-construção?)
sócio-histórica. Será? Tem certeza? Por quê? Isso você não falou. Preferiu
falar na inércia dos anos noventa ou a partir dessa perspectiva. Ora, seria
mais lucrativo se abordássemos o problema do ponto do vista do conceito
literário do pós-modernismo como uma tendência que evita o simbolismo, promove
a indeterminação da linguagem ou no uso da linguagem, busca propositadamente a
fragmentação, colocando-se contra toda e qualquer reconciliação, mais
preocupado que está com a ironia do que com a catarse. Sem nos esquecermos de
que esse pós-modernismo é também auto-reflexivo e pluralista, preferindo os
gêneros híbridos, os discursos marginais, privilegiando a intertextualidade, as
variações topográficas que levam à fragmentação visual e física da obra, da
página, da palavra. Enfim, uma tendência que celebra a paródia, o jogo, o
pastiche, o anti-mito. Acima de tudo, uma tendência que não aceita nenhuma
noção de textualidade que promova a possessão e o gênio, questionando a
unificação de vozes, por ser anti-autoria.
Outra
coisa. Você terá que concordar, depois de tudo o que foi dito, que um poeta que
se auto-denomine “ícone de uma geração” já pulou fora da pós-modernidade, por
erro indevido e imperdoável. Então, entendido o pós-modernismo literário da
forma como resumi acima, vê-se que ele é avesso também às classificações, por
serem elas desnecessárias. O mundo mutante e dinâmico do pós-modernismo
literário não se enquadra em classificações, pois todas elas envelhecem e
perdem eficácia no momento mesmo em que são feitas. Acho que estamos em pleno
domínio dessa tendência. Somos todos pós-modernistas ao nos recusarmos a uma
classificação, ao resistirmos a um enquadramento, ao nos atirarmos à conquista
de novas linguagens, ao ousarmos novas técnicas e sermos, inclusive,
contraditórios e desrespeitosos. O que é preciso é saber o que vamos fazer com
toda essa possibilidade de liberdade, transformação e ousadia. A única coisa
que deve prevalecer na literatura e em todas as outras artes é a qualidade. É
esse o padrão. Não saberia contextualizar tudo isso de outra forma.
Arnold Toynbee |
EDIVAL LOURENÇO - No primeiro quartel do século
passado, a Literatura latino-americana de língua portuguesa (brasileira)
importou o que havia de mais novidade nas vanguardas europeias e fez o
movimento modernista de 22. A
Literatura latino-americana de língua espanhola fez o movimento inverso. Foi
buscar subsídios no chamado Século de Ouro (séc. 17), nas obras de Francisco
Quevedo, Calderon de la Barca, Lope de Vega, Luís de Góngora, etc. Quando veio
o boom da Literatura latino-americana, ele só chegou para o pessoal de língua
espanhola, com vários autores sendo laureados com o Nobel e muitos até
supostamente injustiçados por não o terem ganhado. Será que a nossa Literatura
fez uma opção equivocada ou é a nossa vez que ainda não chegou?
HG – Como não sou
especialista em literatura hispano-americana, posso lhe dizer apenas que o
modernismo hispano-americano, que começou em Cuba, com José Marti; no México,
com Manuel Gutiérrez Nájera; e na Argentina, com Olegario Andrade e Rafael Obligado, deve sua influência ao romantismo e seus desenvolvimentos, sendo influenciado,
em seu início, pelo parnasianismo e por Góngora, é verdade, mas só esse poeta
barroco, que eu saiba. Nesse período, final do século dezenove, o movimento
visava o verso de intrincada elaboração (tal como foram os versos de Góngora),
imagens brilhantes, sendo influenciado, principalmente, pelas artes plásticas,
que os poetas tomavam como modelo. Com Ruben Darío, nicaraguense que se mudou
para a Espanha e lá viveu até próximo de sua morte (morreu na Nicarágua, para
onde retornou), e que publicou o primeiro livro realmente modernista em língua
espanhola, Azul, em 1888, o
modernismo espanhol e hispano-americano sofreu influência do parnasianismo e,
ainda, do simbolismo (sobretudo o ideal da musicalidade “acima de tudo”, tal
como preconizada por Verlaine) franceses e de Edgar Allan Poe, além de uma
evidente influência do verso livre do norte-americano Walt Whitman. Não sei de
onde vem esse barroquismo a que você se refere. De Calderón de la Barca e Lope de Veja, menos
ainda me parece ele ter vindo. De Góngora, ainda vai, mais essa influência
desapareceu com Ruben Darío, Nicolás Gullién (em sua busca de ritmos e
vocabulário afro-caribenhos) e Borges, em que não vejo nenhum neo-barroquismo.
Menos ainda em
Gabriela Mistral , do Chile, a primeira latino-americana a
ganhar o Nobel, em 1945, portanto, muito antes do boom do romance hispano-americano do realismo-mágico dos anos
sessenta. Também não vejo esse neo-barroquismo no peruano César Vallejo, cujo Trilce é exemplar livro de poesia. Na
ficção, talvez, com Astúrias e Gabriel Garcia Marques, como antes com Jorge
Icaza, em Huasipungo (que é de 1934),
Alejo Carpentier (e seu realismo-mágico de O
Reino deste Mundo, de 1948), possivelmente Juan Rulfo e seu Pedro Pájamo (que é de 1955, mas fruto
de uma longa gestação, começada anos antes) e Horácio Quiroga, tenha havido um certo
gosto neo-barroco pelos excessos da linguagem narrativa e pelo jogo dos
contrastes. Na poesia não, não vejo Jorge Luis Borges (principalmente por seu
gosto orientalista) e Pablo Neruda como neo-barrocos, a despeito do gosto
nerudiano pelo excesso, pelo falar demais.
Agora, que uma possível influência de Góngora tenha
servido, décadas depois (o modernismo hispano-americano desapareceu por volta
de 1914, para dar lugar a uma literatura voltada para os aspectos
sócio-políticos da região, sendo neo-realista de fatura e perspectiva), para influenciar
o boom da ficção hispano-americana, acho
difícil de imaginar e aceitar. Uma coisa não tem a ver com a outra, acredito. O
Nobel atribuído a Miguel Angel Astúrias em 1966 premiou muito mais um autor
político e engajado do que necessariamente o escritor, embora ele seja muito
bom. Os prêmios posteriores a Garcia Marques e Octavio Paz não têm nada a ver
com possível escolha do barroco como influência pré-moderna.
As literaturas hispano-americanas e brasileiras têm
origem diversa e desenvolvimento paralelo, mas diferente. Não somos tão
conhecidos, escritores de língua portuguesa, tanto quanto os de língua
espanhola, pelo fato de nossa língua não ter, internacionalmente, a mesma
influência política que o espanhol. Nem economicamente. Como compro muitos DVDs
importados de ópera, posso lhe garantir que trazem legendas em várias línguas,
inglês, francês, italiano e, obviamente, em espanhol; até em algumas línguas
orientais, mas nunca em
português. E por qual razão, não somos, por acaso, um grande
público consumidor? Além do mais, nossa experimentação linguística talvez seja mais
desconcertante do que aquela praticada por escritores espanhóis e
hispano-americanos. Não sei, essa parece uma afirmação temerosa. Em todo o
caso, Guimarães Rosa e Carlos Drummond de Andrade, que conheço em língua
inglesa, são mal traduzidos e soam comuns, ao menos não tão bons como soam e
são, em português. As
melhores traduções de Rosa, em alemão e italiano, não chegam ao grande público
de língua inglesa, daí não terem atingido ou provocado boom nenhum. Ora, até o Nobel, ao considerar e premiar um escritor
de língua portuguesa, preferiu Saramago sobre António Lobo Antunes, muito
melhor, mais complexo e difícil. Depois, tudo tem a ver com o peso político que
tem um país. Brasil e Argentina,
enquanto não superarem seus problemas internos e suas dificuldade de entrada no
primeiro mundo, jamais terão força suficiente para ocasionar ou despertar um
grande interesse por suas literaturas. Produzem escritores de peso e
importantes, reconhecidos pela crítica internacional e respeitados, mas não o
suficiente para provocarem boom
nenhum. Aliás, esse boom nem durou
tanto assim, logo o realismo-mágico esgotou suas possibilidades. Em fins da
década de setenta esse boom acabou. E
ele foi uma criação principalmente editorial, de interesse econômico editorial.
Um fato interessante, a respeito dele, por sinal, é ter saído de outros países
latino-americanos sem grande desenvolvimento econômico, mas com grande passado
e tradição cultural. Daí que talvez ao Brasil não faça diferença entrar no
primeiro mundo, se nossa atividade cultural for socialmente secundária, com
pouca penetração popular. Volto a um ponto abordado antes: somos um país que lê
pouco e mal. O livro não é nosso objeto cultural mais importante, pois se
publicam muitos títulos, mas com pouca tiragem. Não é por isso mesmo que o
livro é um objeto caro, muito caro, no Brasil? Não podemos comprar livros por
menos de R$ 25,00 hoje em
dia. Sabe a razão? As editoras sabem muito bem que a camada
social que compra livros no Brasil é sempre a alta e a essa não interessa o
preço, vai continuar comprando livros do mesmo jeito, a preço maior ou não.
Tome a Editora CosacNaify como exemplo: só faz livros de luxo, encadernados e
com sobrecapa, muitíssimo bem feitos e impressos. Seu livros são os mais caros
do mercado (juntamente com os da Editora Martins Fontes, caríssimos), mas a
editora é um sucesso e vende muito bem. Quem compra seus livros, as classes
baixas? Não, não têm como! E não se esqueça, nossos escritores modernistas
pós-22 (nenhum deles, é triste ter de reconhecer isso), jamais conseguiram,
fora do Brasil, atingir o grau de respeitabilidade conseguido pelo nosso velho e
glorioso Machado de Assis. Nosso maior escritor, o mais respeitado em círculos
acadêmicos e críticos, em qualquer lugar do mundo, continua sendo Machado de
Assis. Outros sucessos, quando ocorrem, são eventuais e pontuais. Nisso, estamos
muito aquém dos países hispano-americanos. Não temos, além, de Guimarães Rosa,
ninguém para ombrear com Borges, Neruda, Garcia Marques, Quiroga, Paz, Fuentes
e tantos outros escritores hispano-americanos. Mas isso não tem nada a ver com
influências barrocas pré-modernas, se existiram.
Machado de Assis |
CARLOS WILLIAN
LEITE- Há
quem considere que as vanguardas tinham um propósito construtivo, a ruptura com
o passado, e a manutenção de uma autonomia formal para o poema, por exemplo,
depois que a versolibrismo criou mais poetas do que poesia. Além desse, existem
outros méritos? Qual sua opinião sobre as experiências vanguardistas na
literatura?
HG – Da forma como
você pergunta, “Há quem considere...”, até parece que somos minoria. Fique
certo de uma coisa, somos a maioria, apenas uma minoria cega para a história e
para a seriedade com que se deve estudar a literatura é que não reconhece a
importância das Vanguardas. Começando pela última de suas perguntas: tenho a
melhor opinião possível. A melhor possível, repito, e existem muitos méritos
nas Vanguardas, já lhe disse isso na resposta que dei a outra pergunta sua
sobre o mesmo tema. As vanguardas nos jogaram na pós-pós-modernidade, como
entendem alguns teóricos mais recentes. Mas a reação aos excessos do verso
livre não foi conquista ou trunfo ou mesmo triunfo das Vanguardas. Não no Brasil,
evidentemente, onde o que lutou contra o que você chama de “versolivrismo” foi
a Geração de 45, que tinha como lema uma frase de Ledo Ivo: “Retornemos a
Bilac!” O que o Concretismo fez foi decretar o fim do ciclo do verso, para,
anos depois, seus praticantes, Haroldo e Augusto de Campos e Décio Pignatari,
sobretudo depois do II Congresso Brasileiro de Crítica e História Literária,
realizado em Assis, São Paulo, em 1961, reconhecerem sua utilidade, dizendo que
dariam o “pulo da onça”, isto é, fariam uma volta estratégica atrás, para
recuperarem ao menos a possibilidade de engajamento sócio-político que não
tinham ou não praticavam, e que era a grande crítica que se fazia a eles,
naqueles tempos de início da década de sessenta. Esta história pode ser lida,
se você tiver acesso a ele, no primeiro número de Invenção – Revista de Arte de Vanguarda, lançada pelo grupo
concretista no primeiro trimestre de 1962. Nela estão publicados dois ensaios
(apresentados naquele congresso), um de Cassiano Ricardo, intitulado “22 e a
Poesia de Hoje” (p. 5-50) e outro de Décio Pignatari, “Situação Atual da Poesia
no Brasil” (p. 51-70). São fundamentais para a crítica e a historiografia das
Vanguardas. Ambos discutem a situação da vanguarda brasileira naquele período,
Cassiano Ricardo tentando mostrar que a maioria das “invenções” concretistas já
haviam sido realizadas ou inventadas por poetas de 1922. Pignatari tentando
mostrar a validade das propostas concretistas e sua atualidade, mas
reconhecendo, afinal, embora a contragosto, a necessidade de uma espécie de
retorno ao verso, para a poesia dar conta de formulações políticas, sobretudo,
do engajamento na luta política que se travava então. Veio o golpe militar e a
ditadura de 1964. Tudo não passou mesmo só de um sonho. Na mesma época,
Ferreira Gullar mergulhou de corpo e alma na poesia falsamente de cordel, mas,
como se exigia naquela época, “engajada”, isto é, de denúncia das injustiças
sociais e políticas, que nossa contraditória sociedade vivia e não dava conta
de resolver (não dá, até hoje!). Ora, a poesia social engajada do início da
década de sessenta – os vários volumes dos Violões
de Rua –, produziu até o poema “Operário em Construção”, de Vinícius de
Moraes, esquecido momentaneamente de sua poesia machista e às vezes pedófila de
enganar mocinhas ávidas por amores românticos inatingíveis. Ainda bem que ele
foi grande letrista de música popular, não é?, senão já estaria mais esquecido
do que está hoje, como poeta. A experiência de Gullar, de qualquer modo,
frustrou-se (esteticamente, era muito ruim) e o próprio poeta reconheceu isso,
embora sem voltar a fazer a mesma poesia que antes fazia, como em seu A
Luta Corporal (de
1954) ou Poemas – 1959.
Diferentemente
do Concretismo, a Poesia Práxis nunca se preocupou com o fim do verso, apenas
se propunha a articular o conceito de uma “unidade de composição” que não
estivesse presa à ideia da “unidade rítmico linear” (definição tradicional de
verso, desde sempre). Práxis propunha a construção da poesia a partir de uma
“área de levantamento”, isto é, de uma elaboração poética que fosse o resultado
de um levantamento anteriormente feito das contradições sócio-político-culturais
existentes na sociedade brasileira. Daí Práxis não ter de dar “pulo de onça”
nenhum, já que ela nascia uma poesia politicamente comprometida. Além do mais,
Práxis trazia, em sua própria teoria, a ideia da renovação constante como uma
das necessidades básicas da própria construção poética, vendo-se com uma
inserção a mais no processo desencadeado pela Semana de Arte Moderna de 22,
como um prolongamento do modernismo posto em marcha a partir de 22, cujo ciclo
não se encerrara e nem se encerraria. Ao contrário, abria novas e amplas
possibilidades. Em verdade, não se encerrou, pois nada surgiu ainda, quase um
século depois, capaz de pôr um fim a seus postulados.
Se
a prática do Poema Processo, posterior ao Concretismo e à Práxis, foi a de, no
início, nazistamente botar fogo em livros de grandes escritores, de grandes
poetas, como Cabral de Melo Neto, Drummond, até mesmo de Haroldo de Campos e
Mário Chamie, que eram mais recentes, passada a euforia inicial, os erros e os
contratempos, pode-se reconhecer no Poema Processo uma radicalização positiva
quanto à nossa concepção de livro, página da poesia ou do poema, do próprio
poema como um objeto visual manipulável, estendendo as conquistas do
Concretismo. Além do mais, ao Poema Processo se deve um grande avanço ao design
brasileiro, sobretudo na arte da publicidade, nas campanhas visuais de
marketing. Nossos cartazes publicitários, nossas propagandas em páginas de
revista melhoraram muito, depois do Concretismo e do Poema Processo. Práxis não
teve nada a ver com isso porque Práxis nunca se propôs como poesia visual,
nunca se preocupou com esse aspecto.
As
Vanguardas não devem ser desprezadas, pois foram responsáveis por nossas
atualizações, por nos obrigarem a fazer o que propôs um dia Ezra Pound, a ideia
do “make it new”, do constante “fazer o novo” – uma obrigação modernista, em
qualquer época e lugar. Sem elas, estaríamos à mercê daquilo que Mário Chamie
chamou de “novidade velha”. Sem elas, estaríamos sempre à mercê dos diluidores,
dos oportunistas que vislumbram alguma boa ideia anterior, para regurgitá-la
décadas depois, a partir do conforto da ausência de problemas (já que em sua
época, por ser nova, a ideia era perigosa) e da aceitação da ideia já operada
ou processada pela sociedade. É fácil ser poeta posterior, não dá trabalho, é
só ajuntar as sobras do trabalho alheio e de vanguarda de algum poeta que teve
a coragem e a ousadia de antever rumos novos décadas antes. É muito fácil fazer
poesia visual, décadas depois, no conforto da aceitação do Concretismo e da
respeitabilidade com que ele é visto e estudado hoje. Poesia visual que
interessa é aquela feita naquele tempo, quando as condições exigiam coragem para
tanto. É muito fácil fazer hoje uma poesia com aliterações, assonâncias e
consonâncias, nós de Práxis, aqui em Goiás, fizemos isso demais, até à
exaustão, na década de sessenta. Esses repetidores e diluidores chegaram com
quase cinquenta anos de atraso. Precisamos nos livrar desses parasitas, essa é
que é a verdade, nunca da lembrança ou da importância das Vanguardas.
Lêdo Ivo |
FRANCISCO PERNA-
Por
falar em poetas, qual foi a sua maior emoção, conhecer Jean-Nicholas-Arthur Rimbaud ou Mikhail Iúrievitch Liérmontov?
HG – Ao ler ambos, em
épocas diferentes e por razões diferentes. Aliás, de Liérmontov, meu
conhecimento é mais da prosa, de seu romance desmontável em contos, chamado Um Herói de Nosso Tempo, que já usei
várias vezes em cursos de teoria da narrativa na Católica e na pós-graduação da
Federal. Conheço pouco sua poesia romântica e sempre em traduções. Rimbaud é
sempre uma revelação e um impacto a cada leitura, desde a primeira. A minha
leitura de Uma temporada no inferno e iluminações
data da década de sessenta, numa tradução de Ledo Ivo, de que gosto mais do que
daquela outra em português, no Brasil, da obra completa do poeta, feita por Ivo
Barroso. De Liérmontov, guardo bem a revelação do homem supérfluo – em russo, lishnii cheloviek –, a contrapartida
russa ao homme sensible e sua maladie du sciècle ocidentais.
Petchórin é um dos grandes personagens românticos do século dezenove,
juntamente com o Werther (de Goethe, em verdade, do século dezoito), Atala e
René (de Chateaubriand), o Jacopo Ortis (do italiano Ugo Foscolo), o Adolphe (de
Benjamin Constant) e Oblomov, (do também russo Gontcharov).
Mas
Chico, esta pergunta me parece meio ‘preciosista’. Não estou propositadamente
ofendendo-o ou a quem quer que seja. Se estivesse, nem me daria ao trabalho de
responder às perguntas todas desta entrevista. Mas pergunta desse tipo me faz
apenas exibir conhecimento e não deveria ser essa a proposta da entrevista. Com
perguntas intrincadas, às vezes várias em uma só, vocês acabam por me forçar a
pôr para fora informação que são do meu dia-a-dia como professor e não de
possível vontade minha de me exibir. Essa técnica de embutir, numa só, várias
perguntas (e vocês às vezes teorizam antes e perguntam depois, ainda por cima –
como se obrigando o entrevistado a concordar com a pergunta), é perigosa para o
entrevistado, sobra sempre a sensação de que não se obteve a resposta desejada.
Jô Soares faz muito isso com seus entrevistados; Marília Gabriela, também, que
faz até pior, pois no meio de uma resposta sendo elaborada, interrompe o
entrevistado para lhe fazer uma nova pergunta. Depois, diz: “Mas você não me
respondeu!” Ora, como, se foi ela mesma que não deixou? Volto à minha pequena
reclamação: não estou me exibindo. Mas acabo sendo obrigado a isso, mesmo sem
gostar. Veja: estes livros que acabei de citar, se não dei aulas, já escrevi e
publiquei ensaios sobre eles. Em aulas, já trabalhei com Os sofrimentos do jovem Werther, Atala, René, Adolphe. Já escrevi e publiquei sobre As últimas cartas de Jacopo Ortis, de
Foscolo, e o Adolphe, de Constant. Só
Oblomov eu apenas li, em tradução
para o inglês. Aliás, das traduções que conheço do romance/contos de
Liérmontov, a primeira foi de Portugal, da coleção “Livros de Bolso
Europa-America”. A brasileira, que também tenho, é muito posterior. A melhor que
tenho e conheço bem é a de Vladimir Nabokov (que escreveu para ela uma
importante “Introdução”) e seu filho Dimitri Nabokov. Hoje, o livro de
Liérmontov é encontrável, com notas explicativas e tudo, online. Que diferença do meu tempo de aprendizado! Como é mais
fácil hoje e como se lê menos também, infelizmente. Não estou me exibindo,
Chico, mas, por outro lado, não pedi que perguntassem. Aliás, tenho muito
receio de pessoas que se exibem muito, comentam livros que leem, até sobre a
qualidade de suas traduções, mesmo não sabendo língua estrangeira nenhuma.
Mikhail Iúrievitch Liérmontov |
EDIVAL LOURENÇO- De um modo geral, os livros que
alcançam grandes tiragens e frequentam as listas dos mais vendidos são
catapultados por grandes e dispendiosos esforços de marketing e raramente são representativos de uma Literatura digna
do nome. O senhor acha que a Literatura de qualidade pega carona nesse processo
ou ela (a Literatura de qualidade) é desencorajada ou afugentada para pequenos
círculos?
HG – Nem uma coisa,
nem outra. Virginia Woolf, um dos maiores nomes da literatura do mundo, em
todos os tempos, fez uma ironia enorme disso em seu romance Orlando, na figura do crítico literário
que é sempre contra os escritores novos e a favor dos mais antigos. Só que, com
a passagem do tempo, ele passa a ser favorável àqueles a quem antes atacava,
por causa de seu medo pelos ainda mais jovens, que vão aparecendo. Acho que boa
literatura nunca desaparecerá por causa da má literatura. Um caso curioso e, ao
mesmo tempo, também irônico, é o de Isadore Ducasse, conde de Lautréamont, e
seus Cantos de Maldoror, enormemente
criticados na França, quando apareceram, como plágio e outras coisas mais,
principalmente a de querer matar a poesia. Pois bem, havia na França, na época,
um tal Georges Ohnet, escritor de alguns livros atacados pela crítica como
irreais e cheios de lugar comum, mas que caíram no gosto do público e se
tornaram muito populares, vendendo bastante. Um caso como o de Paulo Coelho,
hoje. Ele gozou de sucesso até seu último livro, La dixième muse, de 1906, se minha informação está correta.
Fausto Cunha, em seu livro A Luta Literária, de 1964, num ensaio
intitulado “Lautréamont ou o plágio como necessidade”, trata desse episódio,
concluindo que o poeta d’Os Cantos de Maldoror “não sairá da
literatura da qual foi posto para fora um honestíssimo Mr. Georges Ohnet”. Os
detratores de Joyce vão continuar falando mal dele, sem nunca conseguirem
expulsá-lo do nicho que ele tem como um dos maiores escritores do mundo em
todos os tempos. Alguns grandes escritores são esquecidos por algum tempo, até
muitos anos, depois são redescobertos e passam a ocupar o lugar que merecem na
galeria dos grandes nomes: Rimbaud e Sousândrade, por exemplo. Alguns grandes
escritores são muito massacrados, em benefício de outros, até oficialmente,
como foi José de Alencar, em defesa de Gonçalves de Magalhães, poeta oficial de
D. Pedro II, a quem Alencar ousara atacar por causa de um poema épico sofrível,
A Confederação dos Tamoios. Ora, Alencar publicou O Guarani,
também para provar o que deveria ser o que chamou de a “épica dos tempos
modernos” e fez história, jamais sendo esquecido pelos leitores brasileiros.
Para cada grande escritor existem inúmeros Gonçalves de Magalhães, Paulos
Coelhos, Coelhos Netos, Humbertos de Campos, Georges Ohnets, Sidneys Sheldons
(que já vendeu mais de trezentos e cinquenta milhões de exemplares de seus
livros no mundo inteiro) e assim por diante. O tempo, a melhor resposta sempre,
deixa assentar poeira sobre tudo o que é passageiro e não representativo, mas
permite manterem-se sempre limpas de poeira as boas obras, as obras
significativas de cada período. Os Três Mosqueteiros, de Dumas, sempre
lembrados e relidos, provam isso.
Virginia Woolf |
FRANCISCO PERNA- Na orelha do seu
livro Lugar comum e outros poemas, a respeito do poema requerer
eternamente, a professora Albertina Vicentini assim se
manifesta: “uma longa ”tetra-tradução” do texto da missa de defuntos, tal
como utilizada por Giuseppe Verdi em sua monumental Messa da Requiem,(...).
Partindo do texto da missa em latim, inglês, francês e alemão, chega Heleno Godoy a um texto em
português que, ao mesmo tempo em que venera, destrói a linguagem escrita
do réquiem e, ‘vertiginosamente’ recria-o mais visual(...).O que o senhor
faz é uma transcriação da missa de defuntos, não é? Toda tradução de
poesia não termina sendo um reinvenção da mesma? Como o senhor lida com isso?
HG – Chico, meu texto,
o último desse livro, que na verdade se intitula “Requerer Eterno/Eterno
Resto/Repouso Eterno/Erguida Rua”, sem nos esquecermos da contrapartida em
latim, inglês, francês e alemão, não é apenas transcriação do texto da Missa dos Defuntos, é mais, pois também
é uma transposição e uma transmutação. Como está muito bem dito na orelha do
livro por Albertina Vicentini, trata-se de uma veneração aliada a uma
destruição e visam ambas à recriação “mais visual” que “significadamente” do
texto da Missa dos Defuntos, tal como
usado por Verdi em seu famoso Requiem.
Sempre que ouvia a uma especial gravação dessa música, dentre algumas que tenho
dela, em CDs e DVDs, sob a regência de Georg Solti e tendo Joan Sutherland como
soprano, entre outros também grandes cantores (e esta gravação é de uma
qualidade de som espantosamente boa), tinha nas mãos o texto da missa no original
(um livreto impresso que acompanha a gravação) e, lado a lado, acompanhando o
texto em latim, as traduções inglesa, francesa e alemã. Ora, ao acompanhar com
o olho o texto sendo cantado, dava-me conta de estar a fazer isso nas três
outras línguas, ao mesmo tempo. Como não sei alemão, o texto escrito nessa
língua parecia não fazer parte desse todo, pois eu apenas imaginava,
visualmente, suas possibilidades de significação, não aquilo que o texto
significa para quem sabe alemão, mas aquilo que parecia significar, pela
semelhança com a escrita em
português. O meu poema nasceu daí, dessa transposição – uma
destruição amorosa e respeitosa – “quadrilíngue”, do texto original, entre sua
escrita em latim e sua escrita em alemão, encaixando as duas outras línguas que
conheço e posso entender e ler, para além da mera visualização. A idéia que me
ocorreu foi a da possibilidade plurissignificativa de um texto que nascesse
dessa possível “quadritradução”, em que, por exemplo, da “lux aeterna” em
latim, eu poderia chegar, em português, a “luxo aéreo, lixo eterno” e “luz
etérea” e até mesmo à “luz eterna” da significação do original, assim como a
inúmeras outras possibilidades que os quatros textos me ofereciam. Mas esse meu
texto, mesmo nascido de uma “quadritradução”, é um original meu, não é uma
cópia ou mera transcrição. É transcriação sim.
Quanto
à tradução de poesia em si (e eu tenho traduzido e publicado alguma poesia, em
minha carreira), concordo com Haroldo de Campos: toda boa tradução é uma
recriação sonora do original em uma outra língua, é uma transcriação, isto é,
como queria o poeta e grande tradutor, uma tradução criativa. Assim, está certa
sua pergunta, toda tradução é uma recriação de um original em outra língua.
Deve ser, não é? A tradução que somente põe o texto de uma língua em português,
por exemplo, não vale a pena. Toda tradução tem a obrigação de ser
“transcriativa”, transformadora, inteligente, não mera elucidação de conteúdo
do original. A tradução não pode ser apenas do significado, deve ser do
significante também. É assim que entendo a tradução e é assim que espero dar
conta de trabalhar com ela. Ou procuro trabalhar com ela. Traduzir é uma coisa
que me agrada muito, principalmente se imagino que o autor da obra, do poema
que estou traduzindo, ficaria feliz com o resultado do que estou escrevendo em português. Estou
às voltas, presentemente, com tradução de poetas africanos de língua inglesa,
como já disse, e estou descobrindo grandes obras. Quem sabe publico, mais
tarde, essas traduções? Mas quero deixar bem claro que não sou
profissionalmente um tradutor. Traduzo só do inglês, aquilo que leio e de que
gosto, para meu prazer, não para trabalhar profissionalmente com tradução.
Joan Sutherland |
EDIVAL LOURENÇO - Para Habermas, fora da vida
doméstica, fora da igreja e do governo existe uma “esfera pública”, onde as ideias
são examinadas e discutidas. É onde se dá a formação da verdadeira “opinião
pública”. No entanto, essa “esfera pública” vem sendo disputada pelo poder da
mídia e das grandes corporações, especialmente as multinacionais, através de um
marketing avassalador. O senhor acredita que a Internet representaria o
surgimento de uma nova “esfera pública”, ou de seu alargamento, onde a reflexão
pudesse acontecer com autonomia, com contribuições positivas para a Literatura?
HG –
Talvez sim. O Google e o Yahoo alargam consideravelmente nossas perspectivas. O
que interessa é o que há de bom nisso tudo. Podemos encontrar coisas
fantásticas – desde o muito bom ao muito ruim – na Internet. Por isso, de certa
forma, não conseguimos mais viver sem ela. Sem ela, como as pessoas poderiam
comprar livros, CDs e DVDs, por exemplo? Como poderiam encontrar respostas
rápidas e eficientes para algumas pesquisas, inclusive bibliográficas? O
problema é o mau uso da Internet, como o caso de alunos copiando coisas e
apresentando-as ao professor como trabalho escolar exigido. Mas estes são
poucos e a rede de informações disponível nos ajuda enormemente em muitas
coisas boas. Temos livros, revistas, divulgação de resultados de pesquisa,
tudo, até mesmo o hipertexto, um grande avanço e uma possibilidade riquíssima.
Não sou fechado a nada disso, pelo contrário. E acho que teremos contribuições
positivas, através da web, para a
literatura. O hipertexto é uma dessas possibilidades. Você nunca pensou nas
inúmeras possibilidades da poesia hipertextual? Já existem seus cultores
produzindo-a, alguns com resultados até razoáveis. Falta um grande poeta entrar
nessa onda. Um Joan Brossa, por exemplo, seria o ideal. Ou alguém com sua
capacidade criativa, sua competência e sua qualidade. Ele já modificou nossa
compreensão de poesia ao insistir no que chama (e pratica) de poesia visual
(que não quer dizer apenas impressa na página). É de 2005 a publicação, no
Brasil, pela Amauta e pela Ateliê de seu livro Poesia vista
(poesia literária, visual e poemas objeto), em catalão e em português, em tradução
de Vanderley Mendonça. Também no ano passado, dele foram publicados Seborrea y otros poemas,
da mesma forma, poesia literária e visual, em espanhol e em tradução de Carlos
Vitale, em Miami, na Flórida, Estados Unidos, pela revista, Ambos Mundos, número 2 (primavera-verão). Admiro muito a poesia de
Brossa e até usei uma epígrafe dele como entrada de meu mais recente livro,
lançado em 2005, Lugar Comum e Outros
Poemas. O hipertexto parece-me capaz de oferecer inúmeras possibilidades
novas. Vejamos o que o futuro da poesia, por esse viés, pode nos oferecer. Acho
que toda novidade causa espanto. Depois, acostumamo-nos a ela, daí passamos a
esperar por mais transformações e mais novidades. É sempre assim, na história
da evolução artística do homem. Não devíamos nos espantar tanto, já devíamos
estar acostumados com tudo isso. Novidades sempre chegam e acabam por triunfar,
um dia. Foi assim com o Renascimento, com o Barroco, com o Arcadismo. O
Romantismo parecia a maior ameaça à sociedade, quando apareceu; já o
Parnasianismo, nem tanto. Mas o Simbolismo, esse sim, despertou enormes medos
outra vez. Com o Modernismo, nem se fala. Até hoje existem os que ainda temem
as Vanguardas e não se esquecem delas e estão sempre a falar mal delas,
coitadas, resumidas que estão hoje a mero passado e acontecimento deixado para
trás, sem deixar de ter importância, claro! É o medo do novo e transformador.
Desse medo não nos livramos com facilidade.
livros |
EDIVAL LOURENÇO - Com o avanço da informática, há
certos “moldadores de eventos” que preconizam o fim do livro e até mesmo a
redução da Literatura a uma atividade supérflua, restrita a grupos diletantes,
a uma espécie de falcoaria ou arte plumária. Como o senhor vê o futuro do livro
e da Literatura?
HG – Não acredito no
fim do livro, nem que a literatura será, um dia, num futuro próximo ou muito
distante, considerada uma arte supérflua, para diletantes. “Arte plumária”?
Cruzes! Não, de jeito algum! Já disseram coisas parecidas, de futurologia
desastrosa, desde séculos antes do nosso. Nada parecido aconteceu ou
acontecerá. O homem tem prazer físico com o livro. O livro é bom de se pegar,
folhear, rabiscar, anotar, marcar, dobrar página, pedir emprestado, emprestar
aos amigos. Nada disso se pode fazer com um e-book.
Na minha opinião, um trambolho pequeno e deselegante. Há os que gostam dele e
não os acuso ou critico. Eu sou fã ardoroso do livro, um objeto sem o qual não
vivo. Dos poucos prazeres que tenho na vida, de que necessito na vida (fora meu
sagrado whiskey de fim de semana), o
livro é um dos principais: não sei ficar sem comprá-lo, sem lê-lo, sem tê-lo,
quando ele me interessa. Outras coisas sem a quais não vivo são meus Cds e DVDs
de ópera, particularmente, e de música em geral. Constituem meu combustível
diário, é com eles que me afasto da brutalidade das coisas menores do dia-a-dia
(trabalho, trânsito, necessidade de dinheiro, sobrevivência) e me permito
reciclar, reanimar, reaparelhar para a semana que se inicia. São meus
suplementos vitamínicos constantes. Não, o livro não vai desaparecer – espero e
confio. Nem vai desaparecer a literatura. Um mundo sem arte é inconcebível. O
homem jamais deixará de produzir música, pintura, escultura, literatura, cinema,
o que seja. A arte é o que de melhor produzimos, o que temos de melhor, aquilo
com que enfrentamos as adversidades e desafiamos o futuro. A arte, acredito,
não morrerá nunca. Não pode morrer, por ser parte integrante do homem e de seu
modo de viver. É a arte que nos salva da bestificação. A única coisa, aliás,
que pode nos salvar da bestificação!