Antonio Carlos Secchin - Poema





De chumbo eram somente dez soldados



De chumbo eram somente dez soldados,
plantados entre a Pérsia e o sono fundo,
e com certeza o espaço dessa mesa
era maior que o diâmetro do mundo.

Aconchego de montanhas matutinas
com degraus desenhados pelo vento;
mas na lisa planície da alegria
corre o rio feroz do esquecimento.

Meninos e manhãs, densas lembranças
que o tempo contamina até o osso,
fazendo da memória um balde cego

vazando no negrume de um poço.
Pouco a pouco vão sendo derrubados
as manhãs, os meninos e os soldados.


In. Todos os ventos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002.
Imagem retirada da Internet: soldadinhos de chumbo

Francisco Perna Filho - Ensaio curto



Via crucis



O ápice do amor é a morte, diz George Bataille no seu livro O Erotismo, pois, segundo ele, para que uns tenham vida, é preciso que outros seres morram, e isso só se dá no paroxismo do amor, aqui entendido como a força de Eros: vida, em oposição a Thanatos, morte.

Se a morte é a única certeza que nós temos com relação ao futuro, o que nos parece óbvio, a ausência que ela provoca pode ser relativa, ou melhor, o que se supõe como fim, pode ser apenas o começo de uma perpetuação.

O corpo é vital para o espírito aqui na terra. A terra é o espelho desse corpo quando tudo se acaba. Viver, sofrer, seguir em frente, eis o que o sentimento de vitalidade nos provoca, já que as paredes são apenas ilusões, barreiras materiais para onde correm os homens.

O que sabemos da vida, a não ser que a possuímos até perdê-la? Melhor dizendo, como encaramos o nosso dia-a-dia e refletimos o nosso modo de existir? Não estaríamos distantes demais daquilo que seria considerado ideal para um ser humano?

Quantas vidas ainda teremos de viver? Quantas catástrofes teremos de presenciar? Quantos pilantras teremos de eleger para que consigamos entender o verdadeiro sentido da nossa existência? Talvez milhares, porquanto o homem parece não querer enxergar o lastro de destruição por ele deixado.

Pensemos nas guerras, na fome, no tráfico de seres humanos. Pensemos do poder de potência dos negociadores de armas, nos obtusos governos que se alastram pelo mundo afora. Pensemos na exploração sexual de crianças e adolescentes, nos desvios do dinheiro público, nas licitações fraudulentas, nos traficantes de drogas, soldados da destruição.

Muita coisa ruim tem tentado se perpetuar no mundo, mas as almas de boa vontade, os anjos da boa nova têm insistido nas ações que valorizam o ser humano, têm buscado a preservação da vida, a valorização da solidariedade, o amor incondicional entre os povos.

Talvez o que tenhamos feito tenha sido pouco, mas não em vão. Cada olhar de apoio, cada palavra de encorajamento, cada gesto de solidariedade, tudo isso tem uma importância imensurável, tudo isso é capaz de transformar vidas, tanto de quem doa quanto de quem recebe. São gestos como esses que nos dão a dimensão do que é ser verdadeiramente humano, a força de Eros em toda sua plenitude, com toda a sua força, para o reaprendizado de existências.


Imagem retirada da Internet: globo da morte

Francisco Perna Filho - Ensaio curto

medo


Medo, um ato de humanidade

                                                                                               

O medo que carregamos é a memória que trazemos das coisas, sem a experiência, não há evocação, por isso é que as crianças são destemidas, carregam apenas o não revelado e obscuro soluço dos deuses. Amedontrar-se é, pois, sentir-se humano e requer coragem para tal.

Há pouco, senti-me totalmente tomado por uma vontade de falar sobre este tema: o medo das coisas, o que buscamos e tememos, o que tememos e não conseguimos buscar, o que, a duras penas, levamos adiante. A necessidade que temos de chegar sempre em primeiro lugar, amedrontando aqueles que nos seguem, que nos acompanham, aqueles a quem dirigimos, aos nossos in-subordinados.

O medo que nos cerca  é, de todo, a arma que temos contra os corajosos, os ousados, os usados. Por que estamos sempre com um pé atrás, prontos para recuar, para dar o grito de alarme e sair correndo e, às vezes, é isso que nos salva, que nos determina como vencedores, como duradouros. O medo é a égide do historiador, ele não participa das guerras, das lutas; não se envolve nas diatribes, por que ele precisa contar os fatos. Alguém tem de contar a história.

O que move os críticos de todas as áreas é, justamente, o medo. Falo daqueles que temem e não se arriscam, jamais, a ousar nas áreas que criticam, preferem ficar na espreita, com um olhar carregado de teoria a mover-se de um lado para outro apenas a falar do que desconhece. Falo empresário que patenteia o invento alheio e, por “medo”, não revela o autor, morre de ganhar dinheiro em cima dele. Do jornalista que se esconde atrás dos fatos, por pura incompetência, valendo-se das agências de notícias e das cópias do alheio. Do professor de Língua Portuguesa, principalmente das universidades, que ensina regras e mais regras do bom falar e escrever e, por medo, fica escondido nas teorias sem nunca se revelar na escrita.

Sentir medo é sentir-se preso e liberto, alegre e triste, fechado e aberto. Sentir medo é ser dúbio, é ser  inconsciente, às vezes inconsequente, porque viver requer pressa e determinação. Uns, aceleram demais e vão-se embora, sem medo, sem ressentimento: “vida louca,vida,vida breve, se eu não posso te levar, quero que você me leve”. Outros, petrificados que estão nas suas prepotências, não enxergam o amanhã, só o agora, o presente que são, para esses, o medo é a força do apego, o delírio da perpetuação.

Quem não tem medo, que atire a primeira bala, o primeiro olhar, como o fazem os pistoleiros que, por medo, atraiçoam; os mandantes que, por covardia, pagam. Os políticos, que seduzem, prometem, e abandonam. Todos medrosos e covardes, revelando o lado pútrido do medo.

Sentir medo é o que nos mantêm calados, é que nos mantêm no emprego, é o que nos faz “ingênuos”, precisamos sentir medo para prosseguir, criar os nossos filhos, conhecer os nossos netos e, se possível protegê-los quando alguém tentar amedrontá-los, como acontece com a minha filhinha, todas as vezes que ela escuta esse grito: oooooolha a  pamonnnnnnnnha!! e corre para os meus braços. É o primeiro exercício de humanidade: sentir medo, um medo instantâneo, infantil, até o próximo e ousado ato. As crianças pertencem aos deuses, nós, ao medo, humanamente ao medo. Até que digam o contrário.


Imagem retirada da Internet: medo

Francisco Perna Filho - Poema




No balanço do vento


Para Adalgisa Nolêto Perna



Eu choro pela minha mãezinha,
que ficou só.
Ela era tantas,
estampava alegria,
um canto de primaveras,
um olhar para lá do rio.
Assim, como está,
hoje, como a flor solitária na roseira,
indo e vindo,
no balanço do vento,
só, sozinha, somente.
Para onde vão os filhos
depois que crescem?
vão para qualquer lado,
canto, ou país,
não importa.
O que importa
é a porta sempre aberta,
o barulho que levam,
e a certeza de que são muitos.
Eu choro pela minha mãezinha,
Só, sozinha, semente.


Imagem retirada da Internet: roseira

Miguel Jorge - Poema



Terra


           
Esta pequena dimensão de vagos horizontes
limita-se à extensão de tua destreza:
tudo está aí guardado
como coisa que nunca existiu
como pedra
como barro
sangue
lei
acontecimentos do dia.

Esta pequena dimensão de vacas paridas
não se dilata com teus braços
nem se torna reino em tua geografia.

Dentro do jogo
é arma poderosa:
um bispo um rei
um peão uma rainha
como qualquer fogo
cercado de novos cruzeiros.
Esta pequena dimensão tem muros
todos sabem por testemunha
e
não lhe foi legada como pertence.
Há procissões de patrões
pálios sem ornamentos
bandeiras sem cores
andores engavetados no tempo.

São de asas estas terras
e voam como o vento
forças que encurtam vidas
tesouro negro
cinturão de balas
dinheiro de coronéis
fedendo a bordéis.

Nesta pequena dimensão
teu corpo de morto é teu trabalho
teu sangue é vinho como regalo
tua sombra armação de espantalho
demônios que bailam nos campos da noite
ombros operários.

Esta pequena dimensão
que se carrega nos olhos
pele dura que o sono cava
entre sonhos
pacto que se cala
viola a morte
campos que semeiam
colheita com gosto de mortalha.


In.Profugus.Goiânia,1990.
Imagem retirada da Internet:sol terra

Miguel Jorge - Poema







Voz


           
Tua voz
minha voz
nossa voz
ó tu divina voz!
Sempre viva quase morta
vigiada falseada
em seu canto primitivo
luminoso som de pétalas
que navega em mar de bocas.
Tua voz
minha voz
nossa voz
ó tu suave voz!
Para os deuses para o nada
fônicas faces moduladas
no silêncio dos cortes
no lamento da esperança
que se faz de espera.

Minha voz
tua voz
nossa voz
sempre viva meio morta
som e sol de puros nós.

Minha voz
                                       (Yes)
Tua voz
   (Non)
nossa voz plastificada
   (Yesnon)
nauseada coqueteada
com
chicletes e outros etes
vinda do fundo da alma
do fundo da calma
pesando por falar
pesando por calar
sem que ninguém
pudesse senti-la:
“As aves que aqui gorjeiam
não gorjeiam como lá.”

Nossa voz
minha voz
esgotada em sua essência
sem clemência
paga dura penitência
de milenar existência.

Tua voz
   (Yes)
Minha voz
   (Non)
Nossa voz
   (Yesnon)


In.Profugus.Goiânia,1990.
Imagem retirada da Internet: voz

Heleno Godoy - Poema


Sem Título



nos espaços de teu corpo
teu nome em todas as pedras
no espanto de teus traços
teu nome em todas as horas
e meu estar incontável
entre pedras por todas as horas
nos pontos de teu corpo
teu fato em todas as tendas
na marca de teus braços
teu fato em todos os lados
e meu estar incontável
entre tendas por todos os lados

nas amarras de teu medo
teu contra em todas as feras
no vazio de teus laços
teu contra em todos os cantos
e meu estar incontável
entre feras por todos os cantos

nos confins de tua fuga
teu normal em todas as vagas
no desejo de tua volta
teu normal em todos os dias
e meu estar incontável
entre vagas por todos os dias



In. Fábula Fingida. Rio de Janeiro, 1985.
Imagem retirada da Internet: Eu e as minhas poetas

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