Edival Lourenço - Poema













Soneto de uma só nota




Nem me dou se sou sim ou se sou não
Já nem sei se sou grão ou se sou mó
Se sou um sol ou só um ser de pó
Ou se sou pó de luz de sol em grão


Nem me dou se sou rés ou se sou vão
Já nem sei se sou vau ou sou nó
Se sou um ser do mal ou ser de dó
Dum cão em si sem dom ao rés do chão


Quem diz que ser é ser o sal de Ló?
Quem diz que ser é ter o dom de Jó?
Quem diz que ser tem que ser ás e são?


Quem diz que ser é ter o breu na mão?
E ter que ser de Deus ou ser do cão?
- No vão de ser eu só sei que sou só.



(26.11.07)

Foto by Raul Alexandre (Foto gentilmente cedida pelo Fotógrafo Português).

Mário Quintana - Poema


O Baú




Como estranhas lembranças de outras vidas,
Que outros viveram, num estranho mundo,
Quantas coisas perdidas e esquecidas
No teu baú de espantos... Bem no fundo,
Uma boneca toda estraçalhada!
(isto não são brinquedos de menino...
alguma coisa deve estar errada)
mas o teu coração em desatino
te traz de súbito uma idéia louca:
é ela, sim! Só pode ser aquela,
a jamais esquecida Bem-Amada.
E em vão tentas lembrar o nome dela...
E em vão ela te fita... e a sua boca
Tenta sorrir-te mas está quebrada!




In.Jayrus

Imagem retirada da Internet: Baú

Mário Quintana - Poema


A rua dos cataventos



Da vez primeira em que me assassinaram,
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha.
Depois, a cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha.

Hoje, dos meu cadáveres eu sou
O mais desnudo, o que não tem mais nada.
Arde um toco de Vela amarelada,
Como único bem que me ficou.

Vinde! Corvos, chacais, ladrões de estrada!
Pois dessa mão avaramente adunca
Não haverão de arracar a luz sagrada!

Aves da noite! Asas do horror! Voejai!
Que a luz trêmula e triste como um ai,
A luz de um morto não se apaga nunca!



Imagem retirada da Internet: vela

Ronaldo Costa Fernandes - Lançamento


UM HOMEM E O MUNDO


Este romance de largo fôlego, Um homem é muito pouco, de Ronaldo Costa Fernandes, apresenta-se como um desafio ao leitor, desde seu título enigmático. Para pensá-lo com eficácia, ainda que não seja sua decifração, lembro de uma sugestiva passagem do poema do poeta, pintor e revolucionário inglês William Blake (1757-1827), denominado “O casamento do céu e do inferno”:

“Sem contrários não há progressão. A atração e a repulsa, a razão e a energia, o amor e o ódio são necessários à existência humana. Desses contrários emerge o que os religiosos chamam o Bem e o Mal. O Bem é o passivo que obedece à Razão. O Mal é o ativo que nasce da Energia”.

Sendo um romance moderno e nosso contemporâneo, os contrários marcados com clareza abstrata por Blake, nele se expressam pela ambiguidade, pelo princípio da incerteza e ainda pelos inúmeros contrastes que nos marcam nas sociedades de classes que o capitalismo construiu e vem consolidando.

A narrativa da memória subterrânea dos tempos sombrios da ditadura militar se concentra no tema espinhoso da inviabilidade da constituição de um sujeito humano e social estável na nossa modernidade periférica perpassada pelo avanço e o atraso, como unidade contraditória. As personagens, a rigor, podem ser quase tudo e nada, ao mesmo tempo, inseridas num Rio de Janeiro que também é assim. Elas amam, odeiam, fogem, somem, escondem-se, viajam, retornam e não ficam, perseguem e são perseguidas, modulam-se por choques e trompaços, sem destino entre a vida e a morte.

Por isso a trama de seu mundo não se pode organizar: razão e desrazão trocam todo o tempo de lugar e de sinal, vivendo do acaso e no acaso. Assim também o Mal e o Bem, que nunca se completam nem são definitivos, estão sempre presentes, como virtudes sem metafísica nem transcendência.

As estruturas narrativas experimentam variações do ponto de vista, em terceira ou em primeira pessoas e a identificação dos narradores é sempre um exercício de descoberta para o leitor, mas uma vez percebidos acendem-se luzes para a coerência do narrado. Por sua vez os estilos dos enunciadores formam-se por um processo singular: as ações ou reflexões sempre comparecem como imagens, as quais são exploradas em várias facetas e se desdobram em muitas outras imagens, constituindo uma teia emaranhada que muito revela ou oculta em seu andamento, que podemos chamar dialético.
Valentim Facioli

SOBRE O AUTOR
Ronaldo Costa Fernandes publicou, entre outros romances, O viúvo (2005) e O morto solidário (1998). Ganhou vários prêmios, entre eles, o Casa de las Américas, Revelação de Autor da APCA e o Guimarães Rosa. Além de ficção, publicou poesia e ensaios. Dirigiu por nove anos o Centro de Estudos Brasileiros na Venezuela e, de volta ao Brasil, a Coordenação da Funarte em Brasília.


Fonte: Nankin
vendas@nankin.com.br

Mário Quintana - Poema


Canção da Garoa




Em cima do meu telhado,
Pirulin lulin lulin,
Um anjo, todo molhado,
Soluça no seu flautim.


O relógio vai bater;
As molas rangem sem fim.
O retrato na parede
Fica olhando para mim.


E chove sem saber por quê...
E tudo foi sempre assim!
Parece que vou sofrer:
Pirulin lulin lulin...



In. Jornal de Poesia

Imagem retirada da Internet: anjo no telhado

Arseni Tarkovski (1907-1989) - Poema

VIVA, VIDA!






Não acredito em premonições, não temo superstições,
veneno e calúnia não vigoram sobre mim.
Não existe morte, senão plenitude no mundo.
Somos todos imortais; tudo é imortal.
Não é preciso temer a morte,
seja aos dezessete ou aos setenta.
Nada há além de presente e de luz;
escuridão e morte não existem neste mundo.
Chegados que somos todos à margem, sou um dos escolhidos
para puxar as redes quando o cardume da imortalidade as cumular.
Habitai a casa, e a casa se sustentará.
Invocarei um dos séculos ao acaso: eu o adentrarei
e nele construirei minha morada.
Sento-me portanto à mesma mesa
que vossos filhos, mães e esposas.
Uma só mesa para servir bisavô e neto:
o futuro se consuma aqui agora,
e quando eu erguer a minha mão,
os cinco raios de luz convosco ficarão.
Omoplatas minhas como vigas mestras,
sustentaram por minha vontade a revolução dos dias.
Medi o tempo com vara de agrimensor:
eu o venci como se voasse sobre os Urais.
Talhei as idades à minha medida.
Rumamos para o sul, um rastro de poeira pela estepe.
As altas ervas agitavam-se entre vapores
e o grilo dançarino,
ao perceber com suas antenas as ferraduras faiscantes,
profetizou-me, como monge possuído, a aniquilação.
Atei então, rápido, meu destino à sela,
ergui-me sobre os estribos como um menino
e agora cavalgo os tempos vindouros a meu ritmo.
Basta-me minha imortalidade,
o fluir de meu sangue de uma para outra era,
mas em troca de um canto quente e seguro
daria de bom grado minha vida,
conquanto sua agulha voadora
não me arrastasse, feito linha, mundo afora.




Tradução de Álvaro Machado


Poema de 1950, lido pelo autor no filme O Espelho (1974), dirigido por seu filho, Andrei Tarkovski.
Imagem retirada da Internet: imortalidade

Louise Labé - Poema


Soneto VI




Duas ou três vezes seja louvada
A volta do Astro claro, e sem demora
Esta que o olho seu olhar adora.
Que de manhã ela seja saudada,

E que também consiga, enfatuada,
Beijar somente o melhor dom da Flora,
Melhor aroma que já viu a Aurora,
E nos seus lábios fazer a morada!

Somente a mim este bem é devido,
Por tantos prantos e tempo perdido:
Mas, quando o vir, tanto o festejarei,

Tanto usarei dos olhos o poder,
Para maior vantagem receber,
Que, em breve, grande conquista farei.



Tradução de Felipe Fortuna



In. Louise Lambé: amor e loucura. São Paulo: Siciliano, 1995, p.180.
Imagem retirada da Internet: lábios

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