Clarice Lispector - CONTO


O Búfalo



Mas era primavera. Até o leão lambeu a testa glabra da leoa. Os dois animais louros. A mulher desviou os olhos da jaula, onde só o cheiro quente lembrava a carnificina que ela viera buscar no Jardim Zoológico. Depois o leão passeou enjubado e tranquilo, e a leoa lentamente reconstituiu sobre as patas estendidas a cabeça de uma esfinge. "Mas isso é amor, é amor de novo", revoltou-se a mulher tentando encontrar-se com o próprio ódio mas era primavera e dois leões se tinham amado. Com os punhos nos bolsos do casaco, olhou em torno de si, rodeada pelas jaulas, enjaulada pelas jaulas fechadas. Continuou a andar. Os olhos estavam tão concentrados na procura que sua vista às vezes se escurecia num sono, e então ela se refazia como na frescura de uma cova.

Mas a girafa era uma virgem de tranças recém-cortadas. Com a tola inocência do que é grande e leve e sem culpa. A mulher do casaco marrom desviou os olhos, doente, doente. Sem conseguir — diante da aérea girafa pousada, diante daquele silencioso pássaro sem asas — sem conseguir encontrar dentro de si o ponto pior de sua doença, o ponto mais doente, o ponto de ódio, ela que fora ao Jardim Zoológico para adoecer. Mas não diante da girafa que mais era paisagem que um ente. Não diante daquela carne que se distraíra em altura e distância, a girafa quase verde. Procurou outros animais, tentava aprender com eles a odiar. O hipopótamo, o hipopótamo úmido. O rolo roliço de carne, carne redonda e muda esperando outra carne roliça e muda. Não. Pois havia tal amor humilde em se manter apenas carne, tal doce martírio em não saber pensar. Mas era primavera, e, apertando o punho no bolso do casaco, ela mataria aqueles macacos em levitação pela jaula, macacos felizes como ervas, macacos se entrepulando suaves, a macaca com olhar resignado de amor, e a outra macaca dando de mamar. Ela os mataria com quinze secas balas: os dentes da mulher se apertaram até o maxilar doer. A nudez dos macacos. O mundo que não via perigo em ser nu. Ela mataria a nudez dos macacos. Um macaco também a olhou segurando as grades, os braços descarnados abertos em crucifixo, o peito pelado exposto sem orgulho. Mas não era no peito que ela mataria, era entre os olhos do macaco que ela mataria, era entre aqueles olhos que a olhavam sem pestanejar. De repente a mulher desviou o rosto: é que os olhos do macaco tinham um véu branco gelatinoso cobrindo a pupila, nos olhos a doçura da doença, era um macaco velho — a mulher desviou o rosto, trancando entre os dentes um sentimento que ela não viera buscar, apressou os passos, ainda voltou a cabeça espantada para o macaco de braços abertos: ele continuava a olhar para a frente. “Oh não, não isso”, pensou. E enquanto fugia, disse: “Deus, me ensine somente a odiar.”

“Eu te odeio”, disse ela para um homem cujo crime único era o de não amá-la. “Eu te odeio”, disse muito apressada. Mas não sabia sequer como se fazia. Como cavar na terra até encontrar a água negra, como abrir passagem na terra dura e chegar jamais a si mesma? Andou pelo Jardim Zoológico entre mães e crianças. Mas o elefante suportava o próprio peso. Aquele elefante inteiro a quem fora dado com uma simples pata esmagar. Mas que não esmagava. Aquela potência que no entanto se deixaria docilmente conduzir a um circo, elefante de crianças. E os olhos, numa bondade de velho, presos dentro da grande carne herdada. O elefante oriental. Também a primavera oriental, e tudo nascendo, tudo escorrendo pelo riacho.

A mulher então experimentou o camelo. O camelo em trapos, corcunda, mastigando a si próprio, entregue ao processo de conhecer a comida. Ela se sentiu fraca e cansada, há dois dias mal comia. Os grandes cílios empoeirados do camelo sobre olhos que se tinham dedicado à paciência de um artesanato interno. A paciência, a paciência, a paciência, só isso ela encontrava na primavera ao vento. Lágrimas encheram os olhos da mulher, lágrimas que não correram, presas dentro da paciência de sua carne herdada. Somente o cheiro de poeira do camelo vinha de encontro ao que ela viera: ao ódio seco, não a lágrimas. Aproximou-se das barras do cercado, aspirou o pó daquele tapete velho onde sangue cinzento circulava, procurou a tepidez impura, o prazer percorreu suas costas até o mal-estar, mas não ainda o mal-estar que ela viera buscar. No estômago contraiu-se em cólica de fome a vontade de matar. Mas não o camelo de estopa. “Oh Deus, quem será meu par neste mundo?”

Então foi sozinha ter a sua violência. No pequeno parque de diversões do Jardim Zoológico esperou meditativa na fila de namorados pela sua vez de se sentar no carro da montanha-russa. E ali estava agora sentada, quieta no casaco marrom. O banco ainda parado, a maquinaria da montanha-russa ainda parada. Separada de todos no seu banco, parecia estar sentada numa Igreja. Os olhos baixos viam o chão entre os trilhos. O chão onde simplesmente por amor — amor, amor, não o amor! — onde por puro amor nasciam entre os trilhos ervas de um verde leve tão tonto que a fez desviar os olhos em suplício de tentação. A brisa arrepiou-lhe os cabelos da nuca, ela estremeceu recusando, em tentação recusando, sempre tão mais fácil amar.

Mas de repente foi aquele vôo de vísceras, aquela parada de um coração que se surpreende no ar, aquele espanto, a fúria vitoriosa com que o banco a precipitava no nada e imediatamente a soerguia como uma boneca de saia levantada, o profundo ressentimento com que ela se tornou mecânica, o corpo automaticamente alegre — o grito das namoradas! — seu olhar ferido pela grande surpresa, a ofensa, “faziam dela o que queriam”, a grande ofensa — o grito das namoradas! — a enorme perplexidade de estar espasmodicamente brincando faziam dela o que queriam, de repente sua candura exposta. Quantos minutos? os minutos de um grito prolongado de trem na curva, e a alegria de um novo mergulho no ar insultando-a com um pontapé, ela dançando descompassada ao vento, dançando apressada, quisesse ou não quisesse o corpo sacudia-se como o de quem ri, aquela sensação de morte às gargalhadas, morte sem aviso de quem não rasgou antes os papéis da gaveta, não a morte dos outros, a sua, sempre a sua. Ela que poderia ter aproveitado o grito dos outros para dar seu urro de lamento, ela se esqueceu, ela só teve espanto.

E agora este silêncio também súbito. Estavam de volta à terra, a maquinaria de novo inteiramente parada.

Pálida, jogada fora de uma Igreja, olhou a terra imóvel de onde partira e aonde de novo fora entregue. Ajeitou as saias com recato. Não olhava para ninguém. Contrita como no dia em que no meio de todo o mundo tudo o que tinha na bolsa caíra no chão e tudo o que tivera valor enquanto secreto na bolsa, ao ser exposto na poeira da rua, revelara a mesquinharia de uma vida íntima de precauções: pó de arroz, recibo, caneta-tinteiro, ela recolhendo no meio-fio os andaimes de sua vida. Levantou-se do banco estonteada como se estivesse se sacudindo de um atropelamento. Embora ninguém prestasse atenção, alisou de novo a saia, fazia o possível para que não percebessem que estava fraca e difamada, protegia com altivez os ossos quebrados. Mas o céu lhe rodava no estômago vazio; a terra, que subia e descia a seus olhos, ficava por momentos distante, a terra que é sempre tão difícil. Por um momento a mulher quis, num cansaço de choro mudo, estender a mão para a terra difícil: sua mão se estendeu como a de um aleijado pedindo. Mas como se tivesse engolido o vácuo, o coração surpreendido. Só isso? Só isto. Da violência, só isto.

Recomeçou a andar em direção aos bichos. O quebranto da montanha-russa deixara-a suave. Não conseguiu ir muito adiante: teve que apoiar a testa na grade de uma jaula, exausta, a respiração curta e leve. De dentro da jaula o quati olhou-a. Ela o olhou. Nenhuma palavra trocada. Nunca poderia odiar o quati que no silêncio de um corpo indagante a olhava. Perturbada, desviou os olhos da ingenuidade do quati. O quati curioso lhe fazendo uma pergunta como uma criança pergunta. E ela desviando os olhos, escondendo dele a sua missão mortal. A testa estava tão encostada às grades que por um instante lhe pareceu que ela estava enjaulada e que um quati livre a examinava.

A jaula era sempre do lado onde ela estava: deu um gemido que pareceu vir da sola dos pés. Depois outro gemido.

Então, nascida do ventre, de novo subiu, implorante, em onda vagarosa, a vontade de matar — seus olhos molharam-se gratos e negros numa quase felicidade, não era o ódio ainda, por enquanto apenas a vontade atormentada de ódio como um desejo, a promessa do desabrochamento cruel, um tormento como de amor, a vontade de ódio se prometendo sagrado sangue e triunfo, a fêmea rejeitada espiritualizara-se na grande esperança. Mas onde, onde encontrar o animal que lhe ensinasse a ter o seu próprio ódio? o ódio que lhe pertencia por direito mas que em dor ela não alcançava? Onde aprender a odiar para não morrer de amor? E com quem? O mundo de primavera, o mundo das bestas que na primavera se cristianizam em patas que arranham mas não dói… oh não mais esse mundo! não mais esse perfume, não esse arfar cansado, não mais esse perdão em tudo o que um dia vai morrer como se fora para dar-se. Nunca o perdão, se aquela mulher perdoasse mais uma vez, uma só vez que fosse, sua vida estaria perdida — deu um gemido áspero e curto, o quati sobressaltou-se — enjaulada olhou em torno de si, e como não era pessoa em quem prestassem atenção, encolheu-se como uma velha assassina solitária, uma criança passou correndo sem vê-la.

Recomeçou então a andar, agora pequena, dura, os punhos de novo fortificados nos bolsos, a assassina incógnita, e tudo estava preso no seu peito. No peito que só sabia resignar-se, que só sabia suportar, só sabia pedir perdão, só sabia perdoar, que só aprendera a ter a doçura da infelicidade, e só aprendera a amar, a amar, a amar. Imaginar que talvez nunca experimentasse o ódio de que sempre fora feito o seu perdão, fez seu coração gemer sem pudor, ela começou a andar tão depressa que parecia ter encontrado um súbito destino. Quase corria, os sapatos a desequilibravam, e davam-lhe uma fragilidade de corpo que de novo a reduzia a fêmea de presa, os passos tomaram mecanicamente o desespero implorante dos delicados, ela que não passava de uma delicada. Mas, pudesse tirar os sapatos, poderia evitar a alegria de andar descalça? Como não amar o chão em que se pisa? Gemeu de novo, parou diante das barras de um cercado, encostou o rosto quente no enferrujado frio do ferro. De olhos profundamente fechados procurava enterrar a cara entre a dureza das grades, a cara tentava uma passagem impossível entre barras estreitas, assim como antes vira o macaco recém-nascido buscar na cegueira da fome o peito da macaca. Um conforto passageiro veio-lhe do modo como as grades pareceram odiá-la opondo-lhe a resistência de um ferro gelado.

Abriu os olhos devagar. Os olhos vindos de sua própria escuridão nada viram na desmaiada luz da tarde. Ficou respirando. Aos poucos recomeçou a enxergar, aos poucos as formas foram se solidificando, ela cansada, esmagada pela doçura de um cansaço. Sua cabeça ergueu-se em indagação para as árvores de brotos nascendo, os olhos viram as pequenas nuvens brancas. Sem esperança, ouviu a leveza de um riacho. Abaixou de novo a cabeça e ficou olhando o búfalo ao longe. Dentro de um casaco marrom, respirando sem interesse, ninguém interessado nela, ela não interessada em ninguém.

Certa paz enfim. A brisa mexendo nos cabelos da testa como nos de pessoa recém-morta, de testa ainda suada. Olhando com isenção aquele grande terreno seco rodeado de grades altas, o terreno do búfalo. O búfalo negro estava imóvel no fundo do terreno. Depois passeou ao longe com os quadris estreitos, os quadris concentrados. O pescoço mais grosso que as ilhargas contraídas. Visto de frente, a grande cabeça mais larga que o corpo impedia a visão do resto do corpo, como uma cabeça decepada. E na cabeça os cornos. De longe ele passeava devagar com seu torso. Era um búfalo negro. Tão preto que à distancia a cara não tinha traços. Sobre o negror a alvura erguida dos cornos.

A mulher talvez fosse embora mas o silêncio era bom no cair da tarde.

E no silêncio do cercado, os passos vagarosos, a poeira seca sob os cascos secos. De longe, no seu calmo passeio, o búfalo negro olhou-a um instante. No instante seguinte, a mulher de novo viu apenas o duro músculo do corpo. Talvez não a tivesse olhado. Não podia saber, porque das trevas da cabeça ela só distinguia os contornos. Mas de novo ele pareceu tê-la visto ou sentido. A mulher aprumou um pouco a cabeça, recuou-a ligeiramente em desconfiança. Mantendo o corpo imóvel, a cabeça recuada, ela esperou.

E mais uma vez o búfalo pareceu notá-la.

Como se ela não tivesse suportado sentir o que sentira, desviou subitamente o rosto e olhou uma árvore. Seu coração não bateu no peito, o coração batia oco entre o estômago e os intestinos. O búfalo deu outra volta lenta. A poeira. A mulher apertou os dentes, o rosto todo doeu um pouco.

O búfalo com o torso preto. No entardecer luminoso era um corpo enegrecido de tranqüila raiva, a mulher suspirou devagar. Uma coisa branca espalhara-se dentro dela, branca como papel, fraca como papel, intensa como uma brancura. A morte zumbia nos seus ouvidos. Novos passos do búfalo trouxeram-na a si mesma e, em novo longo suspiro, ela voltou à tona. Não sabia onde estivera. Estava de pé, muito débil, emergida daquela coisa branca e remota onde estivera. E de onde olhou de novo o búfalo.

O búfalo agora maior. O búfalo negro. Ah, disse de repente com uma dor. O búfalo de costas para ela, imóvel. O rosto esbranquiçado da mulher não sabia como chamá-lo. Ah! disse provocando-o. Ah! disse ela. Seu rosto estava coberto de mortal brancura, o rosto subitamente emagrecido era de pureza e veneração. Ah! instigou-o com os dentes apertados. Mas de costas para ela, o búfalo inteiramente imóvel.

Apanhou uma pedra no chão e jogou para dentro do cercado. A imobilidade do torso, mais negra ainda se aquietou: a pedra rolou inútil.

Ah! disse sacudindo as barras. Aquela coisa branca se espalhava dentro dela, viscosa como uma saliva. O búfalo de costas.

Ah, disse. Mas dessa vez porque dentro dela escorria enfim um primeiro fio de sangue negro. O primeiro instante foi de dor. Como se para que escorresse este sangue se tivesse contraído o mundo. Ficou parada, ouvindo pingar como numa grota aquele primeiro óleo amargo, a fêmea desprezada. Sua força ainda estava presa entre barras, mas uma coisa incompreensível e quente, enfim incompreensível, acontecia, uma coisa como uma alegria sentida na boca. Então o búfalo voltou-se para ela.

O búfalo voltou-se, imobilizou-se, e à distância encarou-a.

Eu te amo, disse ela então com ódio para o homem cujo grande crime impunível era o de não querê-la. Eu te odeio, disse implorando amor ao búfalo.

Enfim provocado, o grande búfalo aproximou-se sem pressa.

Ele se aproximava, a poeira erguia-se. A mulher esperou de braços pendidos ao longo do casaco. Devagar ele se aproximava. Ela não recuou um só passo. Até que ele chegou às grades e ali parou. Lá estavam o búfalo e a mulher, frente à frente. Ela não olhou a cara, nem a boca, nem os cornos. Olhou seus olhos.

E os olhos do búfalo, os olhos olharam seus olhos. E uma palidez tão funda foi trocada que a mulher se entorpeceu dormente. De pé, em sono profundo. Olhos pequenos e vermelhos a olhavam. Os olhos do búfalo. A mulher tonteou surpreendida, lentamente meneava a cabeça. O búfalo calmo. Lentamente a mulher meneava a cabeça, espantada com o ódio com que o búfalo, tranqüilo de ódio, a olhava. Quase inocentada, meneando uma cabeça incrédula, a boca entreaberta. Inocente, curiosa, entrando cada vez mais fundo dentro daqueles olhos que sem pressa a fitavam, ingênua, num suspiro de sono, sem querer nem poder fugir, presa ao mútuo assassinato. Presa como se sua mão se tivesse grudado para sempre ao punhal que ela mesma cravara. Presa, enquanto escorregava enfeitiçada ao longo das grades. Em tão lenta vertigem que antes do corpo baquear macio a mulher viu o céu inteiro e um búfalo.

In. Laços de Família.

Imagem retirada da Internet: búfalo africano

Raúl Antelo - Entrevista



ENTREVISTA RAÚL ANTELO / ÚLTIMA PARTE


O apóstolo da dissidência



Na terceira parte da entrevista, o professor e crítico literário Raúl Antelo discorre sobre a importância da construção dos sentidos a partir de si próprio, sem imposição, fala da pouca receptividade da poesia — dado o imediatismo da vivência cotidiana — e enfatiza que não é a adesão imediata das massas à poesia o que conta, mas sim o tipo de vínculo que estabelecem. Demonstra, com entusiasmo, seu interesse pela renegada literatura considerada marginal, porque a ação pelo diferimento é o que o move. Confira a última parte da entrevista concedida ao Jornal Opção.

Priscila Marília Martins — Parece-me alinhado o discurso de muitos críticos a respeito da poesia visual. Falam insistentemente na tese nietzschiana do eterno retorno, das linguagens poéticas utilizadas na atualidade como se fossem uma releitura, uma espécie de retorno diferenciado da poesia concretista. Em entrevista ao Jornal Opção, a também crítica Célia Pedrosa, da Universidade Federal Fluminense, afirma que esse aparente“retorno” da poesia concretista se dá a partir de elementos antigos lidos em novo contexto. O senhor concorda?

Para mim, o eterno retorno é sempre o eterno retorno da mesma figura, que dissemina uma energia, uma força, que é o que me interessa resgatar, e que nunca é a mesma. O eterno retorno não é sempre idêntico; o que me interessa nele é justamente o eterno retorno da mínima diferença, porque acho que é na mínima diferença que o sentido se constrói. Uma releitura é uma reconstrução e é claro que só pode ser outra, porque os tempos são outros, as inserções são outras, as posições dos sujeitos são outras. Mas o que vincula os dois momentos é uma demanda de sentido, uma solicitação, uma procura de sentido. A demanda de sentido só revela que o sentido nada deve à natureza, o sentido é puro artifício.

Priscila Marília Martins — A poesia tem atingido seu propósito? Se ele existe, consiste em essencialmente atingir o outro?

Atingir você sempre atinge. O problema é questionarmos sobre a qualidade do vínculo que se estabelece. Tenho a impressão que muitos dos autoproclamados poetas priorizam um contato mais festivo, esporádico, com o leitor, e julgam que esse vínculo é o que conta. Tento pensar o contrário, o vínculo como uma demora, um retardamento, um atraso, um diferimento; não espero a adesão imediata das massas, não é isso que conta. Nós vimos vários colegas, vários poetas aqui apelando diretamente para uma adesão, tentando arrancar uma reação visceral de gozo, de júbilo.

Priscila Marília Martins — Não é esse o maior propósito dos festivais, o apelo à adesão?

É uma ilusão ainda vanguardista a ilusão do agir próprio. Acho que talvez uma ação madura esteja na educação — que não é a pedagogia —, a educação como freqüentação, como retorno, como possibilidade de se permitir elaborar um problema, uma questão, um valor. Aí, sim, eu diria que a poesia pode cumprir uma função, um trabalho, apesar de ser um trabalho muito lento.

Priscila Marília Martins — Como o senhor trabalha com esse tipo de educação?

Às vezes me angustio muito por não ser compreendido de imediato, por alguns dos meus alunos não entenderem o que eu estou dizendo. Contudo, adoro que não compreendam, porque, se não entender for se traduzir em eles irem atrás, em poder recompor a biblioteca que apareceu na minha fala, ou seja, se eu citei, fulano, beltrano e sicrano, se esse aluno vai à biblioteca e persegue esses textos, cruza esses textos e volta no encontro seguinte com uma pergunta, com um questionamento — ontem você disse tal coisa, mas eu li fulano e beltrano e constatei que não é bem assim —, isso é educação, que não é pedagogia, porque pedagogia é visualidade. Esta me parece interromper a transferência. Educação é ainda manter o vínculo a partir do diferimento do sentido, não impor um sentido, mas fazer com que o outro aprenda a lidar com as ferramentas para ele próprio construir um sentido.

Priscila Marília Martins — Por que a poesia tem sido uma arte de pouca receptividade?

A sociedade em que vivemos é muito rápida, quer efeitos imediatos, quantificáveis, contáveis. As pessoas não têm tempo, não podem se dar ao luxo. Além disso, os poetas talvez sejam, dentre os artistas, os mais dispendiosos, porque gastam muito tempo para se formarem. Nesse sentido são anacrônicos na sociedade contemporânea. A sociedade pede um livro de poemas todo santo ano. Se você não lança, então já não é mais poeta, perdeu o vigor; não é bem por aí. Aposto muito na ação diferida, isso já é uma opção poética.

Priscila Marília Martins — O senhor escreveu João do Rio: o Dândi e a Especulação, além de ter reeditado A Alma Encantadora das Ruas. O que o levou a escrever sobre esse autor, visto o rechaço manifesto, de maneira geral, pela literatura considerada marginal, tida, quase sempre, como menor?

Essa foi uma lição. Por ter um livro sobre ele, Antonio Candido me pediu para organizar uma reedição d’A Alma Encantadora das Ruas para uma coleção da Companhia das Letras. Como sempre, as coisas que a gente faz são um misto de desejo e marginalidade, necessidade. Eu era leitor de João do Rio. Lembro-me quando me contrataram em Santa Catarina e me pediram um curso sobre pré-modernismo, porque a disciplina pré-modernismo era obrigatória, o que é meio sui generis, porque, se alguma coisa deveria ser obrigatória, seria o modernismo, que é a ruptura. Mas o pré-modernismo, que já de antemão nasce morto, porque não chega a ser tão completo como alguma coisa que veio antes, não se entende muito bem por que teria que ser obrigatório, se ele não é pleno. Em todo caso, a disciplina que tinha que ser lecionada era pré-modernismo, e ninguém se interessava por pré-modernismo. Se alguma coisa me caracteriza, é sempre remar contra a corrente. Recuso-me a dar um curso historicista sobre o pré-modernismo. Se estão esperando que eu vá dar vida e obra de Euclides da Cunha, negativo, não é comigo. Então armei um curso sobre o pré-moderno e o pré-modernista, escolhendo como representante do pré-moderno Lima Barreto e do pré-modernista João do Rio. Para mim parecia que na literatura de João do Rio prefiguravam os temas, as técnicas, as soluções que íamos encontrar em Mário [de Andrade], Oswald [de Andrade], dez anos depois. Eu percebia, ainda, talvez uma instância lacunar do próprio modernismo, a discussão sobre o artista como prostituta, como corpo, do próprio corpo como suporte e espaço da enunciação. Isso é fundamental em João do Rio, seja pelo interesse que ele dispensa à moda, aos perfumes, ao flerte, ao comportamento. Ele entrando para a academia e bolando o fardão, o próprio corpo obeso dele — um corpo que não se sustenta em todas essas regras de etiqueta que ele próprio, de alguma maneira, está divulgando — me fazem ver ali uma pré-figuração dessa instância demoníaca de que hoje estava dando um outro exemplo, também muito emblemático, que é do Flávio de Carvalho. Eles são como que as pontas do processo, quer dizer, a entrada e a saída do moderno. O Flávio coloca como sair do modernismo, e o João do Rio, de alguma maneira, está precipitando a questão de como entrar, como cristalizar, como fazer acontecer o moderno. Está claríssimo que ele encara os textos como partes que devem ser vendidas no mercado todo santo dia, sem nenhuma mediação, sem nenhuma ambição de idealização ou coisa que o valha.

Francisco Perna — Em Além do Bem e do Mal, Nietzsche diz que “a vaidade dos outros é fastidiosa apenas quando se choca com a nossa própria vaidade”. Como o senhor lida com a vaidade no meio acadêmico e literário, onde prevalecem as tertúlias, as igrejas e outros credos? No campo da religião, o senhor segue o papa ou se julga ateu?

Eu tenho uma clara vocação para dissidência, senão não estaria onde estou. Começa por aí. Se dou aula numa universidade como a de Santa Catarina, é porque de alguma maneira houve também uma deliberação na minha decisão de preferir a autonomia em detrimento à submissão. O fato de eu ter escolhido e ter permanecido em Florianópolis é também uma deliberação de uma posição marginal com relação aos grupos, o que não quer dizer menor, porque acho que, na atual conjuntura, a minha inserção é dúplice, mas eu sou lateral porque, embora tendo sido discípulo de grandes mestres, por exemplo, da USP, como Antonio Candido ou Alfredo Bosi, digamos, não gravito em torno deles, não estou inscrito numa disputa de herança. Não tendo sido discípulo de Silviano Santiago — somos quase contemporâneos, nos separam 15 anos — posso manter com ele uma relação de fraternidade, que é uma relação mais livre, menos comprometida que ser um discípulo direto, e, ao mesmo tempo, estando em Florianópolis e tendo essas relações, que são relações de freqüência, de respeito, cordialidade com esses e com tantos outros colegas, isso não impede que eu tenha também uma presença em outros espaços, seja em universidades americanas, seja em Buenos Aires. Me parece uma característica do mundo contemporâneo, do mundo global, poder ter relações intensas com colegas de várias procedências. Talvez os meus interlocutores mais cotidianos sejam colegas que hoje trabalham fora do Brasil.

Francisco Perna — O senhor, argentino de alma brasileira, voltaria a morar em Buenos Aires?

Não sei se eu algum dia voltaria a morar em Buenos Aires. Também me ofereceram para voltar, mas recusei. Todavia moro num confim. O confim é justamente um espaço em que se tocam os fines, os limites, ou seja, moro num espaço de superposição. Todo o meu corpo de referências e de leituras, de inserções, os ecos das minhas falas — a própria formação de alunos — se dá em dois espaços, ao menos em dois espaços simultâneos, que confinam, se superpõem, e isto não cria em mim divisão, quando muito cria uma síntese disjuntiva. Pode ser que as coisas me custem mais porque, de alguma maneira, é como se eu estivesse vivendo duas vidas simultâneas; estou constantemente tendo que provar aqui que eu não sou tão estrangeiro quanto me julgam, estou tendo que provar para os argentinos que eu não esqueci tão completamente tudo que me foi ensinado com a língua materna.

Francisco Perna — Já escreveu poesia?

Não, apenas na adolescência. Devia ser um arremedo de não sei lá quem. Acho que fiz meu trabalho crítico com um fim: a mescla de especulação e ficção. Deposito muita confiança no conceito de ficção; considero meu trabalho crítico ficção teórica, porque acho que só se lê fingindo. Para você ler, tem que montar uma máquina de leitura, ser escritor, poeta e sensível para armar esse artefato.

Goiânia, Maio de 2006.


Raúl Antelo - Entrevista


ENTREVISTA RAÚL ANTELO / 2ª PARTE

A poesia sem trégua


Na segunda parte da entrevista, o escritor e professor Raúl Antelo fala de sua infância, de suas influências, da proximidade com Carlos Drummond de Andrade e afirma que existe uma supervalorização de alguns escritores, como Ernesto Sábato e Vinicius de Moraes.

Francisco Perna — O senhor foi organizador de uma das obras mais interessantes que já vi, que é a do poeta Oliverio Girondo. Gostaria que o senhor falasse sobre a importância de Girondo para a poesia na América Latina e, especificamente, para a poesia brasileira.

Em termos de literatura latino-americana, Girondo é um marco inaugural fortíssimo. Pense que em 1922, quando ele publica o primeiro livro, Veinte Poemas Para Ser Leídos En El Tranvía, já capta uma tensão que Oswald de Andrade só vai plasmar com o Manifesto [Pau-Brasil, de 1924] alguns anos depois. A epígrafe do livro está dedicada ao grupo ao qual ele pertencia, porque eles seriam portadores de um estômago eclético, como todo estômago latino-americano, capaz de digerir e digerir bem um cuzcuz oriental, ou um peixe preparado à espanhola, ou um prato italiano. Quer dizer, a idéia da cultura latino-americana como um estômago que digere, que tritura, que elabora as influências mais diversas já está em Girondo. É bem verdade que isso circulava no grupo, em um amigo de Girondo, [René] Zapata Quesada, também poeta, que nesse ano já escreve um conto dedicado a Girondo em que toma justamente a figura mitológica de uma deusa da fertilidade, de uma fértil barriga proliferante e nutrícia como característica, como emblema da cultura latino-americana, apontando então para a antropofagia — a antropofagia e a criminalidade na América Latina como a ‘violência’ que vai ser capaz de equilibrar as distribuições. Está aí a matriz antropofágica do Oswald, está aí Caetano, está aí tudo que veio depois. Girondo captou isso e potencializou de uma maneira fantástica. Foi um grande poeta. Seu último livro, A Pupila do Zero, na tradução de Régis Bonvicino, En la Masmédula, traduzindo literalmente, é um livro contemporâneo do Grande Sertão: Veredas, e é justamente uma nábase, uma viagem na língua. É um poema decisivo, tão importante quanto os poemas do [César] Vallejo, [Andrés Eloy] Blanco, Octavio Paz. É um poeta pouco conhecido no Brasil, não é um poeta de referência, é um poeta mais programático talvez, mas sem sombra de dúvida um grande experimentador, um excelente tradutor; traduziu Rimbaud e outros poetas, além de ser um cara de um muito sutil engajamento ideológico, nada tosco, agrutalhado, nada primário na tentativa de elaborar uma vinculação entre arte e vida, que é o grande tema desses poetas todos.

Priscila Marília Martins — É esse o segredo da poesia de qualidade, que transpõe o tempo, o sucesso estabelecido nessa vinculação? Quais são os elementos, a partir de sua experiência, para que o poeta — isso é complicado eu sei — seja um poeta de valor?

É indispensável saber fazer. O saber fazer com as palavras para nós é decisivo; se você não sabe fazer, melhor não fazer. O segredo está na sofisticação. Para tudo há que se ter sofisticação na vida. Gostaria, entretanto, de suspender a ilusão de que um julgamento universal possa ser feito com relação ao que quer que seja em termos estéticos. E mais do que falar de poeta, poema, eu gostaria de pensar a literatura como textos, porque os indivíduos são descontínuos, têm momentos felizes e momentos de rara boçalidade; todos autores têm isso. Isso me leva a fragmentar a própria idéia de poema. Poema não é aquilo que o autor denomina poema, poema pode ser um único verso, quer dizer, um único verso pode conter toda a problemática que naquele momento sustenta a minha paixão, porque, quando falamos de literatura, o que falamos é de transferência, não falamos de outra coisa; existe transferência ou não existe transferência.

Francisco Perna — Quando você fala em transferência, está dizendo o quê?

Estou dizendo vínculo, desejo sustentado. Por que uma coisa te fissura? Por que você volta a um poema não sei quantas vezes, fica matutando aquilo e pensa e pensa e encontra mais uma volta? Isso tocou alguma lacuna em você. Parte de você está aí.

Francisco Perna — Essa questão sobre saber fazer me parece muito interessante. A partir disso, quem o senhor considera neste domínio, ou seja, quem é (são) o(s) seu(s) autor(es) indispensável(-is), que o senhor lê, relê?

Um autor que me acompanha com uma certa sistematicidade é o espanhol Vila Matas, que está começando a ser conhecido aqui. Acho que traduziram o Bartleby, não me lembro de outro. É um escritor que aprecio muito. [ A Cosacnaify publicou O Mal de Montano, Bartleby e Companhia e A Viagem Vertical]

Francisco Perna — Os seus poetas da adolescência são poetas brasileiros ou são argentinos?

Ambos. Tenho um exemplar da Antologia Poética do Drummond que ganhei quando tinha 14 anos. Muitos anos depois, pedi um dia a ele que me autografasse. Eu tinha uma relação de certa proximidade com Drummond; fui amigo da filha dele, pois trabalhamos juntos muitos anos em Buenos Aires, e, quando vim morar em São Paulo, sempre me recebeu muitíssimo bem. Era então muito freqüente eu ir visitá-lo e ficar conversando na casa dele, pedir materiais... era fantástico, puxava assunto — “aquela briga, em 1937, com não sei quem, a respeito de não sei o quê”. Abria uma porta, puxava uma pasta, “está tudo aqui”; era muito bom. Lembro-me que um dia eu levei o tal exemplar da Antologia Poética, não estou lembrando agora a dedicatória ipsis litteris, mas é qualquer coisa como “deixo, neste exemplar muito manuseado”, porque justamente se via que era uma coisa que tinha me acompanhado anos a fio, e era a melhor prova de perfil de leitura de cabeceira.

Priscila Marília Martins — Entre seus “eleitos”, algum contemporâneo brasileiro?

Dos poetas, quais seriam hoje os que não posso perder um livro? Hum... difícil dizer. Com nenhum dos poetas contemporâneos tenho a relação de deslumbramento que eu podia ter com vários poetas na adolescência e poucos são os que me despertam imprescindibilidade. Contudo, dos ultimíssimos, que estão na faixa dos 30 e tantos, 40 anos, acho o Marcos Siscar uma das vozes mais interessantes. Dos argentinos, um grande poeta da atualidade é Arturo Carrera.

Francisco Perna — Perguntamos sobre expressividade nas letras, mas, por exemplo, o senhor, nascido argentino, com mestrado e doutorado em literatura brasileira, evidentemente um conhecedor dessas duas realidades, com quem ficaria, Borges ou Machado?

Nisso vocês vão me desculpar, mas sou borgeano de carteirinha. Tenho uma afinidade muitíssimo maior com o universo de Borges. Talvez por um eco do romance familiar, pois minha adolescência foi marcada pelo barulho da bengala de Borges. Eu terminava de estudar na escola média ao meio-dia e, muito freqüentemente, almoçava no centro da cidade; passava a tarde na biblioteca nacional, que ficava a quatro, cinco quarteirões da escola. Eu me instalava na biblioteca nacional indefectivelmente lá pelas três, quatro da tarde, abria uma sala — não existe mais o prédio, agora há um prédio mais moderno — de leitura imensa, com uma imensa também cúpula em clarabóia de vidro, cercada por uma passarela de metal, com um corrimão também de metal. E então, lá pelas três ou quatro da tarde se abria uma portinhola, entrava um senhor de bengala e contornava essa passarela procurando algum livro e, para se orientar, ia batendo com a bengala no corrimão, que, sendo de metal, ressoava, e todos os que estávamos na sala de leitura levantávamos os olhares e víamos a cena. Ou seja, há muito de romance infantil nessa freqüência. Borges não é um escritor, é uma literatura; é uma maneira de ler a literatura. Acho que aprendi com ele isto. Não fui aluno dele, visto que ele já não era professor na universidade quando entrei, mas ouvi várias conferências dele sendo ainda adolescente. Essas coisas marcam muito na sensibilidade.

Priscila Marília Martins — E Machado? Não se faz uma leitura um tanto seca de sua obra? Não estão os críticos exauridos de extrair ‘‘sociologismos’’ de sua obra?

[Risos] Talvez eu faça uma leitura borgeana de Machado e aprecie sua obra justamente por conter, para além de ‘‘sociologismos’’, a experimentação, pelo valor da lacuna, pela omissão, pela concisão — coisas que normalmente não são tão apreciadas em seu legado.

Francisco Perna — Já nessa linha, e Julio Cortázar?

Cortázar foi o ruído da adolescência da minha geração. Nunca foi meu ídolo. Confesso que lia, sim, Cortázar. Inclusive, para mim, já era uma leitura escolar. Eu tive uma formação muito sui generis, quer dizer, nasci em 1950, mas em 1963, quando entrei na escola média, me lembro que uma das primeiras leituras do primeiro curso de língua foi Final do Jogo, que foi um livro publicado um, dois anos antes. Pode-se ver que já estava meio contaminado pelo universo escolar. Já era um autor “canonizado”. Confesso que nunca tive por Cortázar esse arrebatamento que me provocou a obra de Borges, de quem já devo ter lido umas 500 vezes um mesmo texto. Portanto li O Jogo da Amarelinha uma, duas vezes, mas há muito não volto a esse texto e temo voltar e encontrar um texto envelhecido.

Priscila Marília Martins — Tem algo a dizer sobre Ernesto Sábato?

Sábato, outro autor muito citado, é muito fraco. Seu texto nem chegaria a envelhecer. Parece-me realmente um autor menor, e os últimos textos são constrangedores.

Francisco Perna — Como o senhor avalia Drummond e Vinicius? Vinicius era um grande poeta ou apenas um grande letrista?

Eles têm também uma diferença colossal ao meu ver. Drummond é um grande poeta. Vinicius é um poeta médio, muito bom letrista, mas apenas um poeta mediano. Não tem uma elaboração de fôlego. Drummond, mesmo não tendo sido um ensaísta de poesia, não tendo escritos programáticos sobre a poesia, tem belos textos em prosa que também abordam a decisão poética, além, ainda, de decisivos sobre esse fazer. São bastante incomparáveis entre si.


Goiânia, maio de 2006.


Continua na próxima edição.

Foto by Nena Borba

Raúl Antelo - Entrevista



Entrevista com Raúl Antelo - 1ª PARTE



A poesia sem trégua



Professor titular do Departamento de Língua e Literatura Vernáculas da UFSC, Raúl Antelo, além de ter sido professor visitante nas universidades de Yale, Duke, Texas at Austin e Leiden, na Holanda, presidiu a Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic). Autor de vários livros, dentre eles, Literatura em Revista; Na Ilha de Marapatá; João do Rio: o Dândi e a Especulação; Transgressão & Modernidade, o intelectual de nacionalidade argentina, porém de alma brasileira, fala sobre os processos de difusão da poesia partindo da Europa, passando pela América Latina e culminando com Goiás. Discute, ainda, o esvaziamento das instituições públicas, a educação pela arte e alguns dos grandes nomes da literatura. Confira a entrevista cedida com exclusividade ao Jornal Opção.

Francisco Perna Platão expulsou a poesia de sua República. O senhor acha que ainda há espaço para a poesia no mundo moderno?

Sem sombra de dúvida que há. Há exemplos eloqüentes. Contudo, a poesia me parece nem sempre se encontrar onde ela é proclamada; nem sempre poeta é aquele que se diz poeta.

Francisco Perna A poesia é fundamental? A pergunta se dá pelo materialismo expresso na vivência cotidiana. A poesia parece não se estabelecer de uma maneira concreta a partir do momento em que não se percebe como ela se instaura, como se pode apalpá-la. O senhor, apalpa a poesia?

Para mim a poesia é fundamental. É possível que para muita gente não seja, mas eu só posso lamentar por essas pessoas. Quanto a apalpá-la, mas é claro, meu trabalho é palpar. Muitos a apalpam sem perceber, porque a apalpam em outras áreas. Quando um antropólogo se pergunta sobre o compromisso que ele mantém com, sei lá, uma comunidade indígena a qual ele vai entrevistar, colher um testemunho, um depoimento, ele se apresenta como mediador, como alguém que divulga a cultura dessa comunidade para a comunidade científica; está fazendo perguntas poéticas. Quem fala, quem é o sujeito, são típicas perguntas poéticas. A mesma coisa é o historiador. Quando o historiador se interroga sobre a verdade dos fatos, como concatenar um fragmento com outro, que verdade extrair de uma seqüência de acontecimentos, isso é, como construir um evento, ele está fazendo perguntas retóricas. Quando um advogado cria uma argumentação para defender uma causa qualquer, são enunciados poéticos que ele elabora. Provavelmente muitos desses profissionais nem desconfiam o que estão fazendo; estão fazendo poesia, estão apalpando.

Francisco Perna — Qual a importância de um evento como o I Festival de Poesia de Goyaz?

Eu acho, a princípio, salutar a reunião, mas desconfio do rendimento das reuniões públicas. Confesso que esses festivais, congressos, me interessam muito mais pelas conversas de corredor, pelos jantares, do que pela instância pública, visto estar ela muito esvaziada. Acho que também não há uma cumplicidade nos repertórios, o que impede ou mesmo dificulta o diálogo. Tenho observado nos debates um certo solilóquio, uma certa esquizofrenia, quer dizer, o conferencista fala alguma coisa, o público pergunta o que bem entende e custa a se amarrar uma ponte entre o que cada uma dessas instâncias está propondo; ao passo que, justamente nos encontros de corredor, nos jantares, aí, sim, se armam as afinidades. “Não há uma ética, tanto dos estudantes que se inscrevem e não comparecem quanto a nossa ética, dos participantes, de não podermos explicitar uma diferença leal, franca, aberta, com relação uns aos outros”

Priscila Marília Martins — Há algo nesses diálogos velados que não possa ser explicitado ao grande público — sobre os bastidores da produção crítica e poética da atualidade —, ou apenas figura uma política do não-confronto, uma “ética” do silêncio? O esvaziamento de funções da instituição pública, que forma esses intelectuais, não dá retorno à sociedade.

É como se as pessoas não quisessem explicitar as diferenças, não fosse conveniente, predominassem as políticas da boa vizinhança, de compadrios, de interesses de ocasião, ou que nome tenha. Isso parece ser mais importante do que qualquer outra coisa. Nas oficinas, a caricatura é justamente do esvaziamento da instituição. Acabo de assistir a uma oficina de um poeta, Manuel Ricardo de Lima, na qual havia 250 inscritos, ou seja, capacidade de ouvintes esgotada, mas na oficina não havia mais de 15, porque os 230 e tantos restantes vão receber o certificado de participação, porque, claro, ninguém vai controlar os que estiveram presentes ali. Isso te fala que as instituições públicas estão falidas, não há uma ética, tanto dos estudantes que se inscrevem e não comparecem quanto a nossa ética, dos participantes, de não podermos explicitar uma diferença leal, franca, aberta, com relação uns aos outros. Acho que na dissidência está uma maneira do respeito pelo outro, não devemos nos confundir. Eu poder discordar não quer dizer que eu seja inimigo; posso ser eventualmente adversário, mas não inimigo.

Francisco Perna — O senhor, como participante de um evento no qual decidiram homenagear Manoel de Barros, como vê, por exemplo, o desconhecimento de sua poesia pela maior parte das pessoas participantes do evento? Trata-se realmente de uma homenagem?

Uma coisa é a decisão da homenagem, que não sei de quem partiu, se simplesmente de organizadores, dos participantes. Os participantes não têm por que endossar os critérios da homenagem, eu não tenho por que endossar o critério do júri que concedeu os prêmios. Custa-me acreditar que Marcos Siscar, por pior que seja o seu livro inédito, que portanto não li, seja pior do que o primeiro colocado. Acho Marcos Siscar uma das vozes mais adultas da poesia contemporânea. O júri terá tido as suas razões para preferir outro livro ao do Marcos Siscar, os organizadores tiveram os seus motivos para escolher Manoel de Barros como homenageado. Não me cabe questionar isso.

Priscila Marília Martins — Parece-me incongruente a não-escolha de Cora Coralina, por exemplo, que é da própria cidade e tem uma visibilidade muito maior fora dela. Afinal, está fazendo 41 anos de sua primeira publicação e muitos nativos não leram sequer um poema seu. Os critérios da organização, se é que houve, não nos cabe julgar. Mas, saltando dos becos de Goiás para as quinas da América Latina, gostaria de saber o que senhor acha: o Neruda lírico, com o passar do tempo, suplantou ou não o Neruda engajado? Aproxima-se de Walt Whitman?

Os chilenos, que são ardorosos pensadores da própria literatura, cujo carro-forte é a poesia, se dividem, assim como os cubanos, em dois times: o de Neruda e o de [Vicente] Huidobro. Quem gosta de um não pode gostar do outro. Os cubanos se dividem entre pinheiristas e lezamistas. Quem gosta do Virgilio Piñera detesta Lezama Lima, e quem admira Lezama fala peste do Virgilio Piñera. O Neruda ideólogo, digamos, o Neruda comunista, tem um interesse anedótico, que é o interesse do comunismo como paixão do real. Refiro-me ao real não como aquilo que é realidade, mas como aquilo que não cessa de não se escrever, aquilo que retorna sempre. Acho que a posição do comunismo ao longo do século XX é, talvez, uma das mais emblemáticas ilustrações dessa paixão do real. Neruda é um stalinista de carteirinha. A pergunta que a obra, que a reflexão que Neruda nos coloca, é: como foi possível querer crer, durante tanto tempo, que a ruptura podia se dar ao preço de uma depuração tão obscena? Que para chegar à revolução fosse necessária tamanha depuração? Linhas de montagem de mortos na União Soviética, sobre as quais não se podia falar porque, em tese, era uma violência santa. Isso está absolutamente datado, é a parte mais interessante da obra dele. O Neruda lírico acho um bom poeta, entretanto, está aí um poeta com o qual não tenho muita sintonia, tenho que admitir.

Quanto a se aproximar de Walt Whitman, sim, sem dúvida, pertence a essa linhagem. Mas insisto: me sintonizo muito mais com as especulações sobre Huidobro. Acho que ele era um artista talvez mais completo que Neruda, mais difícil talvez, mais hermético com certeza, mas não menos engajado que ele. Huidobro era também um cara extremamente militante, claro, de posições trotskistas, posições mais radicais. A história sorriu muito mais para o Neruda que para Huidobro, mas talvez caiba a nós reivindicarmos esses poetas que ficaram no meio do caminho.

Goiânia, maio de 2006.

CONTINUA NA PRÓXIMA EDIÇÃO.

Foto by Nena Borba

Régis Bonvicino - Entrevista


INESGOTÁVEL MEDIOCRIDADE



O paulista Régis Bonvicino sustenta que a poesia brasileira está se tornando previsível e quantitativa Natural da cidade de São Paulo, onde nasceu em 1955, o escritor Régis Bonvicino estreou em livro com Bicho de papel, obra poética publicada em 1975. Desde então mergulhou na poesia contemporânea, como editor das revistas Poesia em Greve, Qorpo Estranho e Muda. Formado em direito pela USP, é juiz estadual de São Paulo desde 1990 e também tradutor. Em 1997, organizou, com Michael Palmer e Nelson Ascher, a antologia poética Nothing the sun could not explain, bilíngüe, publicada em Los Angeles, nos Estados Unidos. Traduziu, também, ensaios sobre o simbolista francês Jules Laforgue.

Régis Bonvicino é autor, entre outros livros, de Régis Hotel (1978), Sósia da cópia (1983), 33 poemas (1990), Num zoológico de letras (1994) e Céu-eclipse (1999), entre outros. A poesia de Bonvicino apresenta influências diversas, que vão do modernista Oswald de Andrade ao tropicalista Caetano Veloso, passando por Carlos Drummond de Andrade, Haroldo de Campos, João Cabral de Melo Neto, Laforgue, Paulo Leminski, Wallace Stevens, William Carlos Williams. Nesta entrevista ao Opção Cultural, concedida aos escritores Carlos Willian, Francisco Perna e Flávio Paranhos (da revista eletrônica Bula), Régis Bonvicino não foge da polêmica. Entre os alvos de sua língua ferina estão o poeta pantaneiro Manoel de Barros e o ministro da Cultura Gilberto Gil.


• Carlos Willian Leite — A poesia se esgotou como gênero literário?

Não, de modo algum. A poesia é um gênero inesgotável. O que se esgota são certas poéticas, certos modos de se escrever poesia, certas práticas poéticas, certas épocas, como o modernismo brasileiro se esgotou, como o concretismo se esgotou, como o tropicalismo se esgotou. Daí a necessidade de se encarar poesia como ato de invenção, como ato para além das rotinas de uma literatura. Eu diria que inesgotável é a mediocridade da poesia brasileira no momento, fechada em si mesma, com tendência forte à repetição e, sempre, ao passado.

• Carlos Willian Leite — Qual o grande poema brasileiro?

Canção do exílio, de Gonçalves Dias.

• Carlos Willian Leite — Quem é o maior poeta brasileiro vivo?

Nenhum. Aliás, esse conceito é vazio, falando criticamente. É no máximo mercadológico. Pensando melhor: o maior poeta é sempre, necessariamente, “vários”.

• Carlos Willian Leite — Quais são os novos?

O que mais há, atualmente, são novos poetas. A poesia brasileira se tornou um fenômeno quantitativo, previsível. Nunca se publicou tanto e ao mesmo tempo nunca se pereceu tanto, fazendo uma brincadeira com o dístico “publish or perish”, que vigorou até os anos 1960, digamos. Posso afirmar que gosto de alguns trabalhos como o de Josely Vianna Baptista, que, todavia, não é mais uma “jovem poeta”. Gosto de Wilson Bueno, que é um prosador-poeta, na casa dos 55 anos. Creio que as opiniões de poetas sobre outros poetas são sempre suspeitas e equivocadas. Certamente, há novos poetas que são bons, interessantes. Pensando bem, eu poderia dizer a você que eu não gosto de poesia mas exclusivamente de certas manifestações, mais duras, mais viscerais, mais lancinantes.

• Carlos Willian Leite — Por que o senhor gosta tanto da poesia norte-americana?

Não leio toda a poesia norte-americana. Gosto daquela mais vinculada às tradições de inovação ou daquelas vinculadas às várias tradições de inovação, que, ao cabo, foram lidas e discutidas no mundo todo e inclusive na Europa. William Carlos William, Ezra Pound, Gertrude Stein, George Oppen e depois Robert Creeley, os Black Mountains, os Language Poets. Vou dar um exemplo: acho Elisabeth Bishop horrorosa, acho Mark Strand horroroso, etc. A poesia norte-americana do século 20 foi a única poesia americana, das Américas, que inverteu as relações entre metrópole (Europa) e colônia (América). Ela é mais inovadora do que a brasileira, por exemplo, em muitos aspectos. Mas eu gosto muito de poetas latino-americanos também, de europeus. Tenho muitos defeitos e lacunas, mas não compartilho do fechamento nacionalista abraçado — consciente ou inconscientemente — pelos brasileiros...

• Francisco Perna — Qual é a importância de Robert Creeley para a sua formação literária, sobretudo como poeta?

Creeley não foi importante para minha formação, mas sim para o alento do meu percurso já nos anos de 1990. Ele morreu no dia 21 de março último. Este sim era um grande poeta. Minha formação: Drummond, Oswald de Andrade, Álvares de Azevedo, a poesia concreta, Jimi Hendrix...

• Francisco Perna — Em As One, de Creeley, o senhor abre o livro dizendo: “Reúno, neste volume, os primeiros resultados de três anos de convivência e reflexão a respeito da vida, das idéias e da poesia de Robert Creeley...” Até que ponto essa relação de amizade entre tradutor e autor flui sem interferir na tradução?

Fui mais tradutor do que amigo de Creeley. Quando se fala em amizade, fala-se em afeto. E sem afeto não se faz nada.

• Carlos Willian Leite — Qual a distância entre a adaptação e a fidelidade literária? Traduzir é trair?

A rigor, só existe adaptação, uma adaptação mais fiel ou menos fiel. A rigor, não existe fidelidade possível entre línguas diferentes. É por isso que a tradução é sempre um desafio, um problema, um fracasso. Os conceitos de fidelidade e de traição são um pouco moralistas no que se refere à tradução. Penso que traduzir é dialogar com modelos. E isso é muito importante para uma literatura, embora sujeito ao fracasso, como eu disse.

• Carlos Willian Leite — Na tradução de A pupila do zero (En la masmédula) de Oliverio Girondo, considerado o maior poeta argentino ao lado de Jorge Luis Borges, o senhor afirma: “En la masmédula pode ser considerado um poema único, longo, composto por 36 fragmentos e/ou textos, autônomos, porém relacionados entre si em nível formal, semântico, temático”. Assim como a prosa de Joyce, a poesia de Girondo é extremamente complexa. Como foi a experiência de traduzir essa obra da escola vanguardista? Quanto tempo levou nesse trabalho?

Demorei uns cinco anos, com ajuda de amigos como Raul Antelo e o Jorge Schwartz. Foi uma ótima experiência. Aprendi muito como poeta. Discordo só da locução “escola vanguardista” porque En la masmédula refoge de classificações. É sem gênero.

• Carlos Willian Leite — Qual autor o senhor gostaria de traduzir?
O poeta norte-americano (já morto) contemporâneo do modernismo brasileiro George Oppen. Tender Buttons, de Gertrude Stein. Mas, penso mesmo é em escrever meus poemas.

• Francisco Perna — Na sua poesia, a contenção da linguagem e a feição fotográfica (aproximação do pictórico) são bem marcantes, como em Manoel de Barros. O que o senhor tem a dizer sobre a poesia dele?

Acho que a contenção de linguagem e a feição fotográfica são características encontráveis em muitos poetas. E em muitas poéticas. Sobre a poesia de Manoel de Barros: quase nada tenho a dizer... Ela me parece fácil demais.

• Francisco Perna — Quando falo de contenção da linguagem e feição fotográfica, de forma alguma busquei uma semelhança entre vocês, até mesmo porque a sua poesia, embora criação, reflete apenas o percebido (a gestalt), enquanto que em Manoel de Barros podemos ver o desregramento total dos sentidos. Ao justapor imagens, cria blocos semânticos surreais, de feição cubista, alógicos. Amalgama imagens e linguagem. Quando o senhor diz “Ele me parece fácil demais”, dá a impressão de que o senhor nunca leu Manoel de Barros. Estou certo?

Li, sim. Acho sua poesia leve, sem muita conseqüência, sem compromisso. Ela dissolve certo léxico do Rosa em situações amenas e as técnicas de composição nele me parecem aleatórias, diluídas. Prefiro poetas heavy metal, como João Cabral de Mello Neto e Murilo Mendes, pares geracionais de Manoel de Barros. Mas respeito opiniões em contrário.

• Carlos Willian Leite — Qual sua opinião sobre Finnegans wake, de James Joyce?

Um monumento de todos os tempos da humanidade.

• Carlos Willian Leite — Mas alguns críticos dizem que Finnegans Wake é um engodo.

Seguramente, os críticos que dizem isso é que são um engodo.

• Carlos Willian Leite — Um dos promissores nomes da crítica brasileira, Rodrigo Petrônio, disse, em entrevista, que o romance Catatau, do escritor paranaense Paulo Leminski, é uma arapuca para otários. Na condição de amigo, mas deixando de lado a camaradagem prestimosa, o que você pensa sobre a obra dele, mais especificamente sobre o experimentalismo à moda de Joyce, que norteou toda sua trajetória literária?

O jovem crítico precisa reler o Catatau. Leminski não foi experimental à moda de Joyce. Foi experimental. E deixou aí uma vasta obra, com altos (prosa e alguns poemas) e baixos (a poesia, de um modo geral), embora os seus baixos sejam mais altos do que a maioria dos “altos” dos outros contemporâneos.

• Carlos Willian Leite — Qual a diferença entre inovação e experimentação?

Você pode experimentar e não chegar a lugar nenhum mais novo, não? Inovadora foi, por exemplo, a poesia de João Cabral, no momento e no tempo em que foi feita, embora pouco experimental. Os romances dos anos 1920 de Oswald de Andrade — João Miramar e Serafim Ponte Grande — são experimentais e inovadores. São bons exemplos que me ocorrem.

• Carlos Willian Leite — Qual sua opinião sobre a “transcriação” dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos?

Bem, eles são os dois mais importantes tradutores contemporâneos brasileiros, goste-se ou não do resultado do trabalho deles. Acho muito bacana a teoria da “transcriação”. Ela é inovadora e bastante interessante. Acho que ela é mais do Haroldo que do Augusto. Eles precisavam introduzir uma série de poéticas por aqui, traduzindo de uma maneira diferente. E daí, creio, surgiu a idéia de teorizar a respeito da “transcriação”.

• Francisco Perna — Falando sobre tradução, como é lidar com a palavra do outro sem deixar se dominar por ela?

Olha, nunca me vi seriamente como tradutor... Mas vejo o jogo da tradução como um jogo criativo e não de dominado/dominador. Tradução é diálogo, diálogos que se travam e que se soltam.

• Francisco Perna — Com quem o senhor ficaria: Ferreira Gullar ou Paulo Leminski?

Com os dois. E com restrições aos dois, embora sejam ambos autores que produziram coisas relevantes. O Gullar começou de um modo muito original e depois se entregou a certos dialetos do modernismo brasileiro...

• Carlos Willian Leite — Onde estão os modismos na poesia de Ferreira Gullar?

Não falei em modismos mas em recaídas modernistas. Mas, sim, ele foi um autor de modismos, sim, no sentido de buscar mais, como toda a sua geração, uma geração experimentalista: do surrealismo do começo ao poema concreto e, depois, neoconcreto; do CPC ao tom modernista, que adotou posteriormente; de Poema sujo a Muitas vozes. Mas reitero que acho Gullar importante, tão importante quanto muitos outros poetas de sua geração como Affonso Ávila e Laís Correa de Araújo, como Décio Pignatari e os irmãos Haroldo e Augusto de Campos. Gullar é importante até contra si mesmo, à revelia daquelas croniquinhas de velho que ele publica aos domingos, na Folha de S. Paulo.

• Francisco Perna — Hoje, pode-se falar numa vanguarda poética no Brasil? Quem são os eleitos?

Não, não se pode mais falar em vanguarda, em lugar nenhum, tecnicamente dizendo. Mas, aqui, no Brasil, detesta-se a vanguarda, não?, embora ela tenha criado a própria cultura brasileira em si mesma. Lúcio Costa, por exemplo, era um vanguardista. O espírito crítico das vanguardas foi o que iluminou a poesia brasileira no século 20. E o que a fez andar. Eleitos? São membros das muitas academias, que estão por aí. São aqueles muitos que estão no poder, nos jornais, nos prêmios, etc. O pessoalzinho da Geração 90, não?

• Carlos Willian Leite — O que restou do concretismo?

Acho que você deveria fazer essa pergunta a Augusto de Campos e a epígonos altissonantes como o Frederico Barbosa, não? Mas, falando sério, do concretismo restou o espírito crítico, que pode ser muito útil. O impulso antinacionalista do começo. As traduções de Ezra Pound, Mallarmé, da poesia russa, etc. A poesia de Décio Pignatari, a do próprio Augusto. As galáxias, do Haroldo. Os diálogos com a Tropicália, com o cinema marginal de Rogério Sganzerla e Júlio Bressane. O anticoncretismo que gerou muitos “empregos”. Restou muita coisa, que ainda precisa ser apurada.

• Carlos Willian Leite — Quem é o grande tradutor brasileiro em todos os tempos?

Não li tudo e não saberia dizer. A tradução é mais perecível do que a criação. Posso falar mais estrita e estreitamente: na minha geração, gosto do trabalho do Paulo Henriques Britto, pelo acabamento e não pelas escolhas. Posso citar Manuel Bandeira, Guilherme de Almeida, Augusto de Campos, Haroldo de Campos, Paulo Rónai, Gonçalves Dias...

• Carlos Willian Leite — Qual o seu melhor livro?

Sugiro que pergunte ao Alcir Pécora.

• Carlos Willian Leite — Como foi o intercambio poético com o norte-americano Michael Palmer, que resultou no livro Cadenciando-um Ning, um Samba, Para o Outro (Ateliê Editorial). Não acha que as parcerias são algo perigoso?

As parcerias são ótimas. Dessa parceria nasceu o livro Nothing the sun could not explain — 20 brazilian contemporary poets (Sun & Moon, Los Angeles, 1997), que instaurou a idéia de contemporâneo na poesia brasileira e desencadeou muitas outras coletâneas locais. Michael Palmer é um excelente poeta, diga-se.

• Carlos Willian Leite — “A continuidade da cultura mostra que só pode haver originalidade contra um pano de fundo de elementos herdados, assimilados, traduzidos.” Essa frase de Lemisnki sobre sua poesia não se choca justamente com o que o senhor faz, ou seja, a idéia de inovar fugindo do risco de fossilização da linguagem?

De modo algum. Concordo com a frase do Leminski. A invenção aparece em confrontos com a tradição — com a tradição que você escolhe.

• Carlos Willian Leite — A crítica é necessária?

A crítica cria condições políticas para que se possa fazer poesia, exatamente ao contrário do que ocorre hoje. Eu diria que a crítica hoje, no Brasil, é muito mais necessária do que a poesia e que o estado de coisas atual, degradado, está aí justamente por falta de crítica. A crítica hoje é mero marketing, mera glosa. Falta crítica com espírito crítico e analítico.

• Carlos Willian Leite — O senhor acha que existe uma crise criativa na poesia atual?

Claro! Ela está estagnada, patinando em torno de estéticas esgotadas e sem rigor intelectual, existencial, etc. Patinando em quantidades e repetições. Mas, ela existe, ao contrário do que diz a crítica uspiana, marxista, etc.

• Carlos Willian Leite — Qual sua opinião sobre a política cultural implementada pelo governo Lula, tendo à frente o ministro da Cultura, Gilberto Gil?

Populista pop, um desastre. Gil é um desastre. O Governo Lula é uma decepção. Uma esquerda da Disneylândia... Não esperava que Lula fosse um Mao Tsé Tung, mas, também, não imaginei que ele beirasse a Menem...

• Flávio Paranhos — Você acha possível fazer filosofia pela literatura?

Acho que a poesia e a prosa se enriquecem ao abrir espaços para outros discursos, como o filosófico. Mas, poesia é poesia, prosa é prosa, filosofia é filosofia. Literatura é aquilo que se quer como literatura. Veja o caso do Tratactus de Wittgenstein: é um belo poema, em sua linguagem filosófica, de base lógica. Geralmente, o tom filosófico, na poesia brasileira, se perde num tom elevado e em versos sentenciosos. O exemplo mais bem-sucedido que conheço mesmo é o de Wittgenstein, um filósofo-poeta.

• Então, qual seria mais “eficaz”? A filosofia tradicional, acadêmica, ou a filosofia na ficção, em suas diversas formas? Por “eficaz”, entenda-se uma filosofia com potencial de transformar as pessoas.

Nada transforma as pessoas hoje. As estruturas capitalistas solapam tudo, infelizmente...

• Flávio Paranhos — Quando se fala em filosofia e literatura, geralmente tem-se em mente a prosa. A poesia é tão boa quanto a prosa para se filosofar?

A poesia é boa para poetar. Boa poesia é aquela que, dialogando com outros discursos, atinge sua especificidade poética, sua irredutibilidade, sua condição evidente de poesia. Acho que o ensaio analítico é o melhor lugar para se filosofar.

• Flávio Paranhos — Você conhece alguma análise filosófica interessante da obra de um poeta que valesse comentar?

Penso imediata e genericamente em Roland Barthes.


*Esta entrevista foi originalmente publicado no Jornal Opção, de Goiânia, e na Revista Eletrônica Bula.


Imagem retirada da Internet: Régis Bonvicino

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