João Novaes - Acervo do autor |
Eros e Thanatos: a sublimação do Poeta
A Revista Banzeiro, ao longo de sua trajetória, tem se dedicado ao que há de melhor no campo das Artes e da Literatura. Nesta edição, não se desvencilha desse propósito e brinda os seus leitores com a poesia de João Henrique da Costa Novaes (João Novaes), que, em 2017, lançou o livro Sublimações: a imortal tragédia do amor mortal, pela Lei de Incentivo à Cultura, da Prefeitura de Goiânia, cujos poemas, sonetos, vêm ilustrados com primorosas fotografias do autor. O livro é dedicado ao pai, jornalista Washington Novaes.
Ao optar pelo soneto, João Novaes, além da luta com as palavras, empreende com maestria e esmero uma verdadeira tessitura: métrica, ritmo e rima, distribuindo, nos catorze versos a que dispõe (dois quartetos e dois tercetos), inventividade e beleza, quando empreende viagem aos meandros do amor, sob invocação do deus Dionísio (Baco), ao contrário da invocação épica, cujo apelo o poeta faz à musa, como proteção ao canto. Em João Novaes, a invocação é outra, o poeta busca a orgia, o prazer, a magia, o vinho,
Dionísio, ó deus louco, meu deus trágico,
Vem a mim com seu tírso belo e mágico,
Ungir de mania e orgia todo meu ser,
Traga as bacantes, o prazer
a força de Eros em oposição a Thanatos , como exercício de prazer, gozo, e morte, daquilo que nos fala Georges Bataille: "O ápice do prazer é a morte". O texto Poético como objeto de prazer, que se realiza desde a idealização até a materialização, e se completa no momento da leitura, do embate, do debate: o ápice do prazer: poeta e leitor. Escrever também é uma forma de sublimação, de mostrar-se vivo, de legado existencial, como no último poema do seu livro:
SUBLIMAÇÃO
Estranhamente, se assim vai terminando este alfarrábio
Mas sublimação final só mesmo com a morte,
A reencarnação, outros poemas, uma nova sorte
De palavra enviadas por aquele sábio astrolábio!
Se existe um remédio, este milagre chama-se tempo
Entre músicas diversas, absolutamente aleatórias, dispersas
Buscando luz nos interstícios, seguem as vidas desconexas
De todos nós, do cosmos, de um mundo sem templo!
Difícil atingir este estado de espírito, a felicidade,
Construída no silêncio, no vazio, na perene santidade
Repleta de significante e significados da Asseidade!
Este livro é para aquele menino tímido e sombrio
Que só pensava no fim, pobre, cego e frio
Mas a quem a vida ensinou um novo brio!
João Henrique da Costa Novaes é natural do Rio de Janeiro, mas ainda bem jovem veio para Goiânia, onde formou-se em Filosofia, pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás, e pós-graduou-se em cinema. Apaixonado pelas artes, com verdadeira devoção à Literatura, escreve desde os 14 anos, quando começou a ler Cruz e Sousa, Alvares de Azevedo, Rimbaud e outros grandes poetas. Segundo ele, sua fixação por sonetos vem daí. João Novaes também é diretor e produtor executivo de cinema, televisão e sites.
Tenham todo(a)s uma excelente leitura!
Francisco Perna Filho*
by João Novaes |
DIONÍSIO
Dionísio, ó deus louco, meu deus trágico
Vem a mim com seu tírso belo e mágico,
Ungir de mania e orgia todo meu ser,
Traga as bacantes, o prazer
Iremos juntos às vinhas festejar
A vida, folia, sangrento manjar,
Entre os deuses só tu és morte e vida,
Loucura e a alegria perseguida
Sátiros, selenos nos guiarão
Ao paraíso terreno e astral
Num orgasmo sem fim, descomunal
Iremos às ninfas em sofreguidão
Longe dos Titãs gozar do teu vinho,
Ébrios, doidos e depois sozinho!
SONETO DO AMOR MORTO
Som amordaçado, frio e afiado,
Primavera apodrecida no azul,
Desnorteia, deixando sem oeste ou sul
O estúpido poeta encouraçado
Clave de sol límpida, encaixotada,
Pomba-gira sanguinária escarlate,
Não mate este amor sem limite,
Partitura de Bach na chuva, borrada.
Lilith em Lesbos, torpe, degredada
Mata o amor na luxúria degradada
Insano modelo da decadência
Medeia, marafona da indecência
Narcisa não reconhece o respeito,
Não pense que é rancor ou despeito!
ORFELINS EREMITAS
A vida parece uma grande espera,
Banquete profano roubado de Osíris,
Que Afrodite cuida, lambe, esmera,
Dádiva e samsara, bulbo de Amarílis;
Ferida, sangue, muitas cicatrizes.
A vida é medo profundo da solidão,
Cor universal de todos os matizes,
Estrela cadente da grande paixão!
Se me perguntas onde nascem os ventos,
São flores de cactos de corações sem lamentos,
Vêm de pulsares galácticos, intactos
Rompem sempre a barreira temporal
Cavalos selvagens do ar magistral
Orfelins eremitas do amor carnal .
BODHI
Ainda não atingi a sabedoria sagrada
Superconsciência alada dos Ríshis, nos sutras,
Todo dia nos cinemas, vagando às escuras
Continuo corpo inerte, mente castrada;
Li o Mahabharata, os Upanishads, a Bíblia e o Alcorão
E sei que não se produz santos às fornadas
Até não haver mais almas deformadas
Por sua estranha filha, Maya, Karma da ilusão...
No Dharma, Buda Maitreya, conceda-me o samádhi
Cristal do templo, mente diamante de Bodhi
Finalmente o caminho por sua óctupla senda:
Rache minha cabeça com uma enorme fenda
Cravada no lótus de mil pétalas de luz,
Cegue os olhos e amplie a visão que reluz!
O PASSADO II
Eros afoga-se na tinta escura do papel
Transforma a luz num borrão impresso
E comete um só erro, réu confesso
Da alma disparada num tropel,
Mas o passado não é somente sombra,
Antes e sempre será luz divina
Não traduzível em palavra viperina,
Manchas de tinta, sentimento que assombra,
Escurece o céu e os olhos encobre,
Deus do amor em busca de sua Psiché,
Feriu a si mesmo com a flecha de cobre
E agora não tem ou deseja mais cura,
Somente a transformação do real em arché
Mármore eternamente trincado pela fissura!
ABOIO
Por onde andará você na madrugada
Agora que me tornou uma besta humana
Só saciável de carne, podridão mundana
E a luz barata dos desejos, alugada
Onde estará finalmente a última revoada
De garças brancas voltando pro entardecer
O casulo de uma nova alma, envelhecer;
Leveza do tempo que jamais será aboiada,
Onde estará você , ó bruma açoitada ?
Pros confins de outra vida, recriada
Para o eterno retorno do que sentimos
Como o gado em busca d´água sombreada
Fresca, pura, nova, límpida, adocicada
E assim, sem rumo nem destino, partimos ...
by João Noves |
ASSOMBROS SONOROS
Os assombros sonoros consonantais dos sonetos
São aliterações do espírito em matéria,
Logos transformado em verbo rasga a artéria
E nunca termina com simples tercetos!
Verso tísico transmutado em velhos abetos
Olhar físico e quântico eternamente cantado
Em rima e prosa, Van Gogh sublime pintado!
Eu vos amo, meus pequenos e solitários sonetos
Mesmo assim, sem métrica ou metáfora alada
O que vale sempre é a poesia trovejada
Raios e lampejos em transe da consciência,
Êxtase da palavra perdida no vento, onisciência,
Vozes ventríloquas vividamente vociferadas,
Ao pé do ouvido, por seres de luz sopradas!
SONETO SARRACENO
Na roleta russa desse louco amor
Não sei o que é antidoto ou veneno
Que possa destilar a minha dor
Sem ar ou sublimação, peito sarraceno.
Só não quero ser mais uma flor do mal
Mas sim aquele que conduz o fogo, Prometeu,
Pois vejo em todos os cantos o sinal,
Era de Aquárius, luz que ainda não ardeu!
Saudades de ti neste tempo iluminista,
Aconchegada, serena em meu peito,
Mas também lembro do horror, vida fetichista,
Então fica este soneto, sem pré-conceito
Do beduíno das palavras, um anarquista,
Seu amante delirante, um suspeito!
RIMA
Quando as retinas derretem-se em poesia
A ficção do cinema vira a rotina do dia a dia
Fulgura na mente a luz passada da alegria
Queimando as sinapses daquela outra maresia
Momentos que tostam a estúpida solidão
Ao entender no crepúsculo do divino perdão,
A insignificância de toda e qualquer paixão
Perdida na seca, no ar árido desse sertão!
Vá pensamento doido, cavalo sem bridão
Beber da água doce do pequeno ribeirão
Escondido entre os buritis e capins dourados
Reavivando momentos sutis e refinados,
Longe da estagnação e do horror passados,
Rima cabocla, obscura, riscada no coração!
SONETO ÁSPERO
Estes dias eternos, de angústia e espera
Em que a morte passa a cada caminhão
Cruzando a estrada, a palmos da carcaça áspera
Neste pedaço sujo, imundo, de estrada de chão.
Concerto de harmonia estranha, dissonante
O vazio da solidão cala fundo na alma:
Só sei que não quero mais um amor exasperante
Que me tire o sono, os sonhos, a calma .
Se a realidade não é mais sensível ao toque
E os dias perderam o brio, a mágica sutileza,
Mas você ainda não encontrou sua outra natureza
Reveja os hábitos, dê na vida um retoque,
Pra que ela também te empurre pra frente
Pro futuro, ali no sol vermelho ardente!
SERENDIPITY
Ela chegou assim, de repente, sem nada dizer
Mansa calmaria do amanhecer, felicidade serena
Evapora toda e qualquer lascívia obscena,
Sem nenhum gesto é o gosto do prazer
Sua pura presença, encarnação sutil da paz
Encontrada ao acaso, coincidência, serendipidade
Rebuscada alegria amena, divina santidade,
Mais nada questiona, no orvalho Tudo traz:
O sorriso e a calma, de volta a tua alma,
O perfume amarelo e delicado do Ipê,
Tela a óleo de Turner, difusa, em degradê
Colore as avenidas com flores e conclama
O curvo escriba, antes cinza, empoeirado
A rever a magia da luz de um céu estrelado!
PÁSSARO SEM ASAS
O nome veio num instante fecundo
Num dia de chuva, cinza, nauseabundo
Pássaro que voa sem asas, louco, incerto
Segue a corrente do ar o soneto liberto!
O nome veio assim, num dia profundo,
Kerouac na estrada, iluminado vagabundo:
O tesão pela palavra, em mim mesmo um incesto
Sem pecado ou culpa, não mais um manifesto!
Pássaro estranho, de plumagem cor de chumbo
Em cujas artérias corre a tinta que não pinta
Nem colore, mas escorre a cada bicada no peito
Que ele mesmo se dá, arrancando lá do fundo
Novas linhas que são veias!- não, não sinta,
É seu fado, ser pássaro sem asas, é seu jeito!
VOLTA
O meu corpo sem o teu se esqueceu
De todas as sutilezas do amor carnal
Que nunca nada de bom prometeu,
Foi brilho do dia inesquecível, sensual!
Hoje vivo nos escombros escuros sentidos
Sussurrando em teus ouvidos só em sonhos
Estranhos pesadelos tortos, tão medonhos
Que todos os sentimentos foram perdidos!
Não sou capaz de pedir para que volte
Pois já não há vida por onde passou
Rastro de gente é o pouco que restou!
Não quero pensar que foi tudo um grande erro
Perda, despreparo, estúpido desespero,
Volte, por favor amor, um dia volte!
SONETO DO AMOR MADURO
Para Sandra
O amor quando maduro não mais apodrece
Deixa de ser fruta estranha, árvore em que se pendura
Um corpo negro degolado, violência sem mesura!
É outra coisa, leve, algo de inefável textura.
O amor quando matura, não mais arrefece
Ao sabor do vento ou qualquer estranha conjectura,
É conjurado na brisa, na eletricidade do trovão,
Ateando um fogo brando na escuridão do carvão,
Sentimento que perverte a rima com a suavidade,
Liberta paranoias e ridiculariza pequenas neuroses,
Limpa os neurônios e cura estranhas escleroses!
O amor maduro implode de vez o ego e a maldade
Traz consigo o arejamento e o brilho do novo,
Apaga o spleen, repinta o blues, afasta o corvo!
* Francisco Perna Filho é Doutor em Letras e Linguística: Estudos Literário (UFG), Poeta e Contista.