EDSON GUEDES DE MORAIS

A Revista Banzeiro faz uma homenagem ao Poeta, contista, artista plástico e editor paraibano Edson Guedes de Morais. Nascido em Campina Grande (PB), em 1930, é autor de Vinte Anos Outra Vez e a Virgindade do Mundo, contos, 1987, e outros livros. Estreou em 1956 com Dispersão, poesia. Seguiram-se A História Verdadeira da Morte do Delegado, poesia-cordel, 1963; Um Homem e os Homens Lá Fora, contos,1963; In Oito, 1964, poesia; Artesãos do Nada, 1973, romance; Outras Lembranças, OutraCasa, Outros Mortos, 1976, novela; Monstro, Besta-Fera, Como Saiu nos Jornais, 1975,teatro; As Coisas, Assim Como São, Assim São, 1978, teatro.





Quando da republicação de Dispersão (1956), seu livro de estréia, o Poeta alagoano Lêdo Ivo assim se manifestou:

“... A volta do Dispersão é união reunião - união e reunião de amigos em torno de sua bela poesia, habitada pelo frémito e frescor da vida e da arte mesmo quando escrita em tempos juvenis; e lugar de encontro de seus amigos, admiradores e companheiros de jornada.
Como não poderia deixar de acontecer, estou entre os que respiram este instante de alegria. O poeta, o editor primoroso,o amigo, o companheiro que dedicou a sua vida à arte poética e à arte gráfica (que reunidas como irmãs inseparáveis) está sendo comemorado por todos nós.
Como celebrou Jaci Bezerra: ‘dele se diz, em frente à sua lavra / que é uma ilha cercada de palavras’. E de nuvens. E de pássaros. E de amigos.” 
                                                                  

As fases do Poeta



PAISAGEM

Uma janela
em frente a outra janela.

No alto, o céu
fica imprensado
entre duas paredes.

Em baixo, a rua
a mesma gente desconhecida
de todo dia,
carros, bondes, bicicletas.

Na esquina, há uma loja
que vende pássaros.


artistas


CARTA
DE MALOA

Estendi sobre a mesa
uma toalha branca
e no branco da toalha
o pão no prato a mais,
um copo e água fresca.
Enchi a jarra de flores
e o coração de festa.

Tudo é natural à tua espera:

o pão no prato
para a tua fome,
a água fresca
para a tua sede,
as flores na jarra
para o teu encanto
e eu toda à tua espera
para o teu desejo.

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Juan Gris


FINAL

A mão vazia,
perdido o gesto,
dependurada.

Vazia a boca,
já esquecida
toda palavra.

Alma vazia,
vazia a vida,
água parada:

No fundo, a lama...
e a rosa branca
não desfolhada.


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Juan Gris

ACEITAÇÃO 

Aceitar a hora
que se nos dá
e nada mais que o dado
desejar
no breve instante
em que a hora
passa.

Inútil guardar lembranças.

Melhor,
após o instante,
outro instante procurar,
sem nenhuma carga
prendendo os passos.

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Juan Gris

TRISTEZA

H á nesta tarde
uma tristeza infinda
e resignada
diluída no ar,
na primeira luz
que se acendeu na rua,
nos postes escuros,
nos vultos que passam,
no gato deitado
no alto do muro,
na rosa do vaso,
no meu coração,
no meu coração...

O dia passou
sem que tu chegasses:
o céu descorou
e sobre tudo derramou
este cinzento triste.
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Juan Gris

VERNISSAGE
NO BAR
DO JOAQUIM

Ele chegou por volta das cinco,
já iam fechar, mas ele insistiu,
foi pr’aquela mesa,
pediu guaraná,
bebeu e morreu.

Era pintor e arquiteto de renome nacional
mas, naquela hora,
antes de botar no copo os comprimidos
que se dissolveram na bebida gelada,
o que ele desenhou ali,
com a esferográfica,
na toalha da mesa,
não vai constar de nenhum catálogo.
Era somente uma cópia
do que desenhara, com o canivete,
na tampa da carteira
do Grupo Escolar,
ao lado da sempre indiferente Guiomar,
lá em Minas Gerais:
um coração
com uma seta atravessada.

Contudo, era sua obra-prima,
um auto-retrato,
a exata expressão de sua vida solitária.

Na foto que a polícia bateu,
antes que o rabecão viesse
e levasse o corpo
para as formalidades do IML,
deve ter aparecido o desenho
junto à cabeça caída sobre a mesa;

mas logo disseram ao Joaquim,
o proprietário,
que podia tirar o pano
para mandar lavar.

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Juan Gris

MOMENTO
SOBRE
A PONTE 

As ondas mergulharam,
e a cara do mar
ficou lisinha
parecendo de vidro.
............................

Se uma pedra caísse
ou o meu corpo cansado,
a gente
que escutasse o barulho
nem ia ver,
quando olhasse.

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Juan Gris

GRITO 

Desespero de sentir
a vida se esvaindo,
torneira aberta
sobre um chão de pedra.

Que flor vai nascer?

O gesto não muda
o sentido do vento;
a folha não fica
parada no ar.

A gente se engana
com a falsa esperança
que um dia se mude
o curso do rio,
e nada se faz:

fica-se olhando
o mar nos chamando,
sem nada que nos detenha,
sem coragem para o salto.

Na esquina, há uma loja
que vende pássaros.


                                                              UM MAGO DA POESIA
 




FAXINA

Filósofos, poetas e garís recomendam
uma arrumação periódica
em gavetas e prateleiras:
- Jogar no lixo papeis velhos,
cartas, fotografias,
escritos que um dia pretendemos literários,
inúteis lembranças
de nossos momentos de vaidade
e de ilusão,
por acreditar que alguém ainda se importe
ou mesmo se lembre de nós;
- Verificar o amarelado das fotos desbotadas
e que já não nos dizem nada,
nem mesmo porque as guardamos;
- Aquele livro com dedicatória
e uma flor seca marcando uma das páginas
e não sabemos porque;
- A caixinha- de- música comprada em Viena,
na viagem de lua-de-mel, com música de Mozart,
que quebrou a corda
e não toca mais há tantos anos...
- A carta que ela deixou ao ir embora,
que me paralizou o coração,
me sentindo culpado mas cheio de
                ressentimento...
Certo, companheiros; fiz a faxina,
esvaziei gavetas e armários.
O que faço agora
com este vazio enorme,
que me sufoca?
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Juan Gris

SUELLEN

Suellen ( com dois eles),
que já foi Suelly
(também com dois eles, mais o pissilone ),
que já foi Terezinha
(quando morava na Pavuna).

Mudava de nome para mudar de vida
(não mudava).
Acreditava em tudo,
em todas as promessas;
a última foi a de um cliente
tão bonitinho, tão convincente...
Fez um favor: entregou um pacote...
(e quebrou a cara).

Perseguida por policiais e por traficantes,
foi morta e desovada na Praia do Ponta:
Suellen,
Suelly,
Terezinha.


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Juan Gris




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Fortuna Crítica




Auto-retrato, 1973, Francis Bacon


A POESIA VENCE O SILÊNCIO 
Jaci Bezerra
 Prefácio para a segunda edição de 
     “DISPERSÃO”  

Edson Guedes de Morais escreveu os poemas que compõem este livro há mais de 50 anos. Ele morava no Rio de Janeiro, fazia o vestibular de arquitetura, era funcionário público e ouvinte da Rádio Ministério da Educação, principalmente do programa “Poesia Viva”, que o poeta Geir Campos apresentava naquela emissora, todas as semanas, aberto à participação dos ouvintes com um concurso de poemas. Seus primeiros poemas nasceram desse incentivo e dos prêmios conquistados (livros de poesia, naturalmente). Em 1955, Geir Campos convidou os seus mais constantes ouvintes premiados a remeterem, em vez de um poema para o concurso, um conjunto de poemas, para uma antologia a ser editada pelo Serviço de Documentação do M.E.C.. Os poemas foram enviados, os poetas se conheceram pessoalmente num encontro de participação no “Poesia Viva”. A antologia não foi publicada, mas daquele encontro nasceu a idéia para a criação do “Clube dos XII”. (Alfredo Bevenuto da Silva, Albertus Marques, Edson Guedes de Morais, India Rego, Ivo Barroso, Marly Santos de Oliveira, Myrthes Riberte, Ruth Maria Chaves, Wilson Alvarenga Borges e outros). 

Edson foi escolhido para presidir o “Clube dos XII” mantinha reuniões mensais, quando os poetas apresentavam seus trabalhos mais recentes, espelhados em uma publicação mimeografada - Folhas de Poesia - e recebiam, além da presença constante do Geir, convidados para lhes falar de poesia - entre eles, Manuel Bandeira. Em 1956, o Clube iniciou a publicação da sua “Coleção Clube dos XII”. O primeiro livro foi “O Silêncio e a Rosa”, de Wilson Alvarenga Borges. “Dispersão”, este livro de Edson Guedes Morais foi o segundo. Cada participante do Clube deveria publicar um livro mas, como infelizmente acontece, o grupo foi se desfazendo, por definíveis ou misteriosos motivos, depois de serem divulgados nas páginas dos jornais Tribuna da Imprensa e Jornal do Brasil e de uma campanha para que fosse dado o nome do poeta Jorge de Lima a uma rua do Rio de Janeiro.

“DISPERSÃO” passou em branca nuvem: uma e outra nota em colunas literárias e só. O poeta se convenceu do pouco valor de sua poesia e partiu para outras descobertas literárias - conto, romance, teatro. Deixou o curso de arquitetura pela metade porque o horário das aulas entrava em choque com o do trabalho e ele precisava trabalhar. Fez, depois, os cursos de Desenho, Artes Gráficas e História da Arte, na Escola Nacional de Belas Artes da Universidade do Brasil e foi professor do recém criado Curso de Comunicação na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mudando-se para Brasília, lá fez os cursos de Jornalismo, Relações Públicas e Publicidade, sendo depois, professor dessas disciplinas, no CEUB, Centro de Estudos Universitários de Brasília. Redator e crítico teatral do jornal Correio Braziliense, teve peças montadas com sucesso, livro de contos premiado pelo INL mas, durante cinqüenta anos amargurou a pouca receptividade do seu livro de poesia.(Exceção foi a sua inclusão na Antologia de Walmir Ayala - A Novíssima Poesia Brasileira, de 1962). 

Lendo “DISPERSÃO”, este livro de Edson Guedes de Morais, esquecido durante cinqüenta anos, verificamos que apesar do exílio a que foi relegado, ele permanece atual. Pois o certo é que manteve intacto o seu lirismo e a sua luz; um lirismo contido, mais sussurrado que cantado, de um poeta que parece, como Manuel Bandeira, ter pudor de falar alto. 

É uma poesia por onde sopra um vento triste de desalento e de desencanto, sem nenhuma referência a quem quer que seja, como no poema GILETE, GÁS, TUDO FECHADO... “um lírio branco/ nasce em sua boca,/ o sangue escorre/ de seus pulsos rasos; a nostalgia do tempo que se esvai, a exemplo de SEGUNDOS: “E esta alegria/ fora de tempo/ que vem agora,/ de onde é que vem ?/ Será pedaço/ de uma alegria sentida outrora,/ depois perdida,/ que vem agora?”; ou esse mais do que lírico CARTA DE MALOA, um poema que cintila inteiro e canta como a luz dentro da luz.



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É DE SOM, é de soneto;
pinta a forma, esculpe a cor;
arco-irisa o próprio preto,
poeta-escultor-pintor...

Encantado da Beleza,
traz, no nome, aedo e amor;
a Luz da Poesia, acesa,
contra a Geena da Dor...

Segue a senda da Harmonia,
tendo, por guia, a Bondade,
sendo as musas da Poesia,
seu grande sol, na verdade...

DEUS, creando cor e forma,
no céu, na terra, no mar,
traz a Estética por norma,
para o Sublime alcançar...

Os nomes, só em negrito,
retirei, e ainda tem mais,
complete quem for perito 
de EDSON GUEDES DE MORAIS.

(Paulo Nunes Batista)







COM UM LIVRO NO CORAÇÃO


Confessou um dia a um íntimo amigo:
tem, no lugar do coração, um livro.
Um livro sem rasuras, embora antigo,
que canta, aberto, como um pássaro vivo.
E canta tanto e com tanto amor
que dele fez autor e editor.
Certo é que cedo se entregou ao vício
de criar espantos: é esse o seu ofício.
E também tanto entregou-se à poesia
que em seu ateliê é sempre dia.
Tudo o que imprime canta, ano após ano,
impregnado de sentido humano.
Dele se diz, em frente à sua lavra,
que é uma ilha cercada de palavras.
Mas há quem diga, alheio a sol e vento,
que é um porta-fólio de deslumbramentos.
E digo eu que, sem mancha de ferrugem,
sua arte é pássaro, mas também é nuvem.
Porém só imprimindo o que o encanta
o livro ave do seu peito canta.
(Jaci Bezerra)


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UM MAGO DA POESIA E DA BOA VONTADE


 Edson Guedes de Morais, contista e poeta, exibe também, desde que o conheço, uma outra vocação, outra porém ligada à de escrever e ensinar: o gosto de editar companheiros de ofício. Gosto e vocação servidos por uma formação de amplo leque, diplomado que é “em desenho, pintura, artes gráficas, relações públicas, jornalismo”, e com experiência profissional como “desenhista, técnico de artes gráficas, técnico de relações públicas, jornalista, professor, .... redator, crítico teatral” e (pasme-se!) analista de finanças (conforme o Dicionário de Escritores de Brasília, de Napoleão Valadares).

Aposentado, Edson trocou o cerrado brasiliense pela praia pernambucana e, graças ao computador, pôde dedicar-se àquela generosa vocação, tanto mais generosa porque não visando a lucro – antes, até, tirando de Anderson Braga Horta seu bolso para realizar-se. De então para cá, tem sido pródigo em miniedições computadorizadas de cartões, “sanfonas”, calendários e outros mimos com que homenageia e presenteia os amigos.

Tudo isso, mais pormenorizadamente, disse eu em texto de 2002, Palavras para Edson Guedes de Morais, destinado a um livro coletivo em sua homenagem, livro cuja publicação infelizmente se frustrou. O texto, em feição de poema, fragmentadamente aqui o reproduzo:


Edson Guedes de Morais,
tendo chegado ao ápice de uma vida de ensinador,
professor de coisas cotidianas, insuscetíveis de espanto,
mas acima de tudo
mestre-distribuidor de encantamento
na prosa do conto ou no verso do canto,
retirou-se da claridade central de Brasília
para a luminosidade litorânea do Recife
e, na cidade do sonoro nome
Jaboatão dos Guararapes,
retomando um projeto iniciado e só aparentemente perdido,
decidiu tornar-se mágico.
E, ele que na solidão do Planalto
editara livros, seus e de outros,
de uma brancura tendente ao azul,
fosse no exterior de envernizadas capas,
fosse no interior das páginas embebidas da
                                        [matéria e do espírito dos poemas,
defronte à solidão marinha desse Recife de
                                     [azúleas prestidigitações,
nesse Jaboatão dos Guararapes[...]

Em 1999, de posse de uma cópia virtual da primeira versão de um livro cujo título oscilava entre Soneto Antigo e Sonetos na Corda de Sol, ele e José Jeronymo Rivera, traiçoeiramente, publicaram-lhe uma seleção em belíssima miniedição artesanal, de cerca de três dezenas de exemplares.

Foi ele o responsável pela escolha e apresentação, Rivera pelo prefácio. O título: Dos Sonetos na Corda de Sol. Depois vieram Dos Fragmentos da Paixão: Trinta e Três Sonetos (folheto-sanfona, 2001) e, na série Porta-Fólio, Cinqüenta Sonetos. Sem falar nos cartões, marcadores, etc. Meu Quarteto Arcaico, saído em agosto de 2000, não incluído (assim como Pulso, do mesmo ano) nos Fragmentos, tem também, embora impresso pela Gráfica da Companhia Editora de Pernambuco, a marca de Guedes de Morais, que lhe fez a capa fez a e lhe deu o selo: Editora Guararapes – EGM.

Edson, ilustrando e editando artisticamente o trabalho de amigos, distribui beleza e contribui para um mundo em que reine a boa vontade. E assim, mago de coisas essenciais levemente disfarçadas sob um manto de ilusionismo, EGM nos reconduz a um país de infância, onde tudo é possível, menos o mal, e onde todos nos damos as mãos.

Entregue a esse amoroso trabalho, Edson por pouco não se esquece da própria obra. Afortunadamente, lembrou-se de nos dar uma reedição de fulgurante beleza gráfica de alguns dos contos de Vinte Anos Outra Vez e a Virgindade do Mundo (intitulada Quatro Contos, com a chancela de Editora Guararapes – EGM, prefácio de R. Leontino Filho, e datada de Jaboatão, Pernambuco, 2004).

Agora, comemorando os cinqüenta anos da primeira edição (Col. Clube dos XII, Rio de Janeiro, 1956), volta EGM com os poemas de Dispersão (Guararapes, 2006), em duas novas e maravilhosas roupagens: a mais encorpada em folhas soltas reunidas numa caixa belamente ilustrada, à guisa de capa, aberta à direita; a outra, miniatural, em formato sanfona, ambas com qualificadas apreciações de Francisco Carvalho, Carlos Nejar e Jaci Bezerra. Que dizer desses poemas? No mínimo, que são escritos em linguagem limpa e correta; que não se perdem em formalismos estéreis, mas transportam uma carga de vida; que não se diluem num esbanjamento de palavras, mas, por outro lado, também não se ressecam por excessiva economia delas; enfim, que reverberam ou ressoam em cordas e espelhos de nossa alma, e que por isso mesmo nos é grata a sua leitura. Transmitem-nos a vibração dos momentos cruciais: “fica-se olhando o mar nos chamando, / sem nada que nos detenha, / sem coragem para o salto” (“Grito”). Dão-nos o impacto da imagem inusitada: “senti em minhas mãos canhotas / uma força imensa para suster a luta / contra o desespero” (“Van Gogh”). Impregnam-nos da sabedoria tranqüila de quem não passou pela vida em brancas nuvens: “Nesta hora fugaz / que já vai passando, / há tanta quietude / que se eu não pensar, / sou quase feliz” (“Crepúsculo”). Revelam-nos o que a vida reserva aos que têm muito vivido:

                         “Somente/ na cabeça / pensamentos loucos / e
                              os olhos / abertos de espanto...” (“E Agora...”).

Tanta doação nos comove, a mim e a todos os seus amigos. E assim conclui-se aquela prosa metida a poema

                                                           Por isso, 
                                                           reunidos nesta dimensão de pura                                                                                                                espiritual vibração
                                                           que ele nos desenrola com fraterna perícia,                                                                                              trazemos a EGM o nosso abraço 
                                                           em comunhão. 

O livro de nossa conjunta homenagem não saiu. Mas não importa: ao contrário do que diz a sentença popular, as boas intenções levam ao Paraíso, e essas revoam nos poemas e nos textos em prosa dedicados por seus amigos a EGM. 
Obrigado, Edson, por toda essa vida dedicada ao amor, à amizade e à beleza. 

                                  Brasília, 24 de setembro de 2006



A MEMÓRIA DA INFÂNCIA PERDIDA

 Carlos Nejar



EDSON GUEDES DE MORAIS não é apenas o artista do livro, cuja feição manual é de alto lavor, o ficcionista admirável, é também em DISPERSÃO – comemorando 50 anos da 1ª edição - o poeta de um reino de inocência que o tempo feroz tentou desabitar. Não é o reino vazio, de que fala Virgílio Maro, é uma infância que persiste na memória das palavras. Porque as palavras possuem sua peculiar memória. E não é em vão que Charles Baudelaire considera a poesia como infância reencontrada. E completaria com Valéry: “ O mar sempre recomeçado”. E não é tempo sempre, o que foi para Proust, o da eternidade da palavra? E Edson Guedes de Morais sabe que “nada acontecerá/ mas tudo irá mudando”//. Sim, os elementos nucleares de sua poesia simples, densa, durável , são os das coisas que se diluem ou desagregam como os da evaporação (“fumaça que envolve/ os momentos vividos”//), de espera para o desejo, ventania e cinza, perda, horas mortas, água parada, tristeza, desespero, inutilidade das lembranças;

Nessa espécie de trituração , há uma esperança. Pois “ é preciso inventar uma palavra nova/ ou descobrir o lugar/ aonde os navios voltem”.// Entretanto, tudo é passagem e tudo, paradoxalmente, marca de perma-nência, por ser palavra – instrumento de sonho e realidade, coletivo e eterno. Tem a pureza bandeiriana, o toque do efêmero e do cotidiano. Com uma pungência que dói e nos sofre a cada verso. E uma dor que , todavia, percebe que “ na esquina há uma loja que vende pássaros”. Esta poesia vincula-se às coisas na salvação da infância. Vincula-se à coragem de parar para ver o dia morrer. E o que parte, fica na palavra. A viagem é o tempo. Mas o leitor continuará a leitura deste texto no silêncio. E ele, não, jamais se dispersa. Porque o poeta é o que não deixa sem respirar a alma.

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POESIA DE TODO TEMPO 
Francisco Carvalho

Edson Guedes de Morais, poeta e romancista residente em Jaboatão dos Guararapes, Estado de Pernambuco, é bastante conhecido nos meios literários do país por fazer caprichadas edições artesanais, sem contrapartida financeira, de poetas das mais diversas tendências ideológicas e estéticas. Trata-se de iniciativa inédita no país dos burocratas, por força da qual o poeta pode ser comparado a um autêntico mecenas dos tempos modernos. 

Venho de receber coletânea de poemas de EGM, publicados pela primeira vez em 1956, de acordo com informação do autor. Não me parece importante a data em que esses poemas foram publicados. Importa, isto sim, a perenidade do universo lírico, que não se evapora da trama da linguagem poética nem se exaure com o passar do tempo. Por ser o idioma da subjetividade e porque o sujeito é uma entidade que preserva as matrizes e arquétipos dos timbres primitivos, a lírica será sempre uma espécie de acalanto, a embalar as alegrias, descobertas, esperanças e revelações do ser humano através dos tempos. Como nos ensina Fernando Pessoa, “O mito é o nada que é tudo”. E a poesia é a loba romana que amamenta os nossos mitos e utopias. 

Sabemos que “O tempo rói colunas de mármore, quanto mais corações de cera” (Padre Antonio Vieira). Os avanços da tecnologia no campo das ciências exatas mudaram radicalmente conceitos filosóficos estratificados ao longo dos séculos. Mudaram igualmente tendências filosóficas e concepções científicas consolidadas na cosmovisão das pessoas, obrigadas a fazer opções mediante processos seletivos. Mas os veios da lírica ainda arrulham aos ouvidos do planeta, de homens e mulheres que se entrelaçam nos eternos rituais do amor. 

É justamente aqui onde entram os poemas de Édson Guedes de Morais. Escritos, diga-se de passagem, com invejável simplicidade, sem os ofuscantes paramentos da retórica. Não custa lembrar que em 1885, Whitman já nos alertava para este fato: “Nada é melhor do que a simplicidade. Nada pode compensar o excesso ou a indefinição” (Folhas de Relva. Trad. de Rodrigo Garcia Lopes, 2005)”. 

A poesia é um planeta criado pela fantasia humana. Um exílio provisório, onde o poeta recria as imagens e fantasmagorias da infância perdida. O verdadeiro poema não envelhece nunca. Ou, se envelhece, adquire o fulgor e consistência dos vinhos, aprazíveis ao paladar dos homens e dos deuses. Para encerrar condignamente estas mal traçadas linhas, permito-me invocar a autoridade de Antero de Quental, uma das glórias da poesia em língua portuguesa: “Os sistemas caem, os cultos desfazem-se, só os poemas parecem cada vez mais jovens e mais belos sob os beijos fatais do tempo”.


Louvo o vento, louvo a chuva,
louvo as pombas nos beirais.
Louvo o escritor e poeta
Edson Gudes de Morais;

Louvo o empenho, louvo o engenho
e o saber com que ele faz.
Louvo a estrela que ilumina
Edson Guedes de Morais.

Louvo as pontes, louvo o rio
Capibaribe e os demais.
Louvo os versos que semeia
                                                             Edson Guedes de Morais.      

Louvo o editor incansável
de livros artesanais.
Louvo a chama que incendeia
Edson Guedes de Morais.

Louvo o vento, louvo a chuva
que transborda dos canais.
Louvo a lavra, louvo os livros
de Edson Guedes de Morais.

(Francisco Carvalho)

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DISPERSÃO: UM LIVRO, UM POETA, UM DESTINO. 
R. Leontino Filho 


“O Destino tantas vezes
  tem sido um gato que entrou 
  sem que se visse na caixa
  em que levava o pássaro
  do sonho.” 


A folha branca do destino recobre de mistérios a permanência da poesia que se dispersa nas frinchas do tempo; às vezes, a vida reclama para si a memória das coisas tão presente na lucidez do olhar dobrado na primeira curva do nada; um feixe de palavras traduz as vacilações, os tremores e as dúvidas que permeiam o exumar do passado, um tempo pretérito manietado por elementos de alta periculosidade, o mais afoito deles, a insidiosa solidão com seu jeito de ser que reconcilia o instante do rito à túrgida e rigorosa ascese. A folha branca do tempo é uma cortina de sonhos definitivamente dissolvida na caixa de palavras onde pontificam, com desenvoltura, as vivências do ser; reunidas em torno da mesa de refeições, as pessoas, criteriosas e percucientes, alimentam-se da alvura que emana das palavras e acossadas pelo turbilhão de silêncios rondam a magia dos dizeres. Todo dizer é rabisco cobiçado pela lucidez de uma folha branca à espera da poesia, pois desde longínquas eras,de oníricas texturas profusamente derramadas nas cavernas, sabe-se, em absoluto silêncio: poesia é descoberta que não finda. 

Por ser a soma das coisas, o transe íntegro do prazer, a poesia, em sua sabedoria portentosa, situa-se no território virgem do tempo e percorre os sentimentos humanos como sina, linguagem do estar no mundo expresso em cores, sons, texturas, cheiros e sabores: magia guarnecida pela explosão intransitiva do tempo que rumina sua eterna permanência de criança. A poesia do tempo intercambia silêncios filtrando a essência da necessária infância, descoberta que é, também, jamais finda. Nas divisas do espaço-tempo, a palavra insubstituível faz morada e refreia os excessos agoniantes dos fatos e dos amores acariciados por desencantos esguios. Todo grande livro nada mais é do que miniaturas do universo, amplidão e intensidade transformadas em arte. Em tudo, por tudo, abre-se, depois de meio século, o que não é pouco, tendo em vista, os modismos – necessários, sim, mas, não menos fugazes e desimportantes em sua maioria –, o livro que o destino em rigorosa vigilância deu curso: Dispersão de Edson Guedes de Morais. 

Vário ofício o de um livro guardado anos a fio como semente fértil de um poeta que capturou a temporalidade da beleza na justa integração de poesia e vida. Deste livro e deste poeta o destino inteiriço se ocupou, possibilitando em seus périplos uma viagem vertiginosa ao universo uno de dor e de espanto com pungentes pedacinhos de esperança: Dispersão é, antes de qualquer outra coisa, o véu das circunstâncias que recobre as criaturas em suas divisas de eterno náufrago. A visão valorativa do mundo de Edson Guedes de Morais insere-se em meio ao alvoroço dos homens que buscam ordenar o caos, gesto pertinaz, porém, indispensável à vida. O poeta, hóspede tenso dos excelsos gozos, dá curso as suas palavras na branca folha de um tempo onde o destino é Dispersão, e, portanto, desabrochar de solidões. De outro modo, não se pode pensar o livro de Edson Guedes de Morais: um repercutir de solitárias andanças, trinta e três estações preservam os ambientes de uma comprida viagem na qual a poesia em trânsito relaciona, entre uns e outros, a fabulosa flor do translúcido amor que restou na neblina espessa das esperas – o amor sobrescrito no círculo do cais, só pode ser aceito como fome, sempre.

Dispersão reúne em seu porto de brancas velas, páginas de denso conteúdo; os ambientes despovoados de pretensa genialidade – algo tão caro aos embusteiros plantonistas de versos ruins –, estabelecem relações poéticas com os fatos e as criaturas por meio de palavras onde a música, o ritmo nas frases acompanham temas da vida simples, por isso mesmo, necessária, que passam pela infância, o mundo mágico, o amor, a morte e as dimensões incertas do próprio homem. O circunstancial em Dispersão assinala a definitiva trajetória da mansidão das palavras, palavras ainda não tocadas, tampouco sabidas, por mãos e mentes estreitas, distantes da fábula temporã das lembranças. Lembrança e esquecimento estão presentes na poesia despojada de adereços e ressoam em cada enxuto poema de Edson Guedes de Morais que, com Dispersão, mescla o tempo em branco do destino com uma síntese poéticoexistencial de feitio duradouro: a inquebrantável natureza íntima da memória. 

Compostos em versos livres e livres, também, das amarras dos modismos – cinco décadas, nunca é demais repetir, quantas águas não passaram por debaixo das pontes de vaidades e de bolores fúteis – os poemas de Edson Guedes de Morais, aqui, apresentados em seus trinta e três momentos de pura carnalidade encantatória, desdobram-se em noradas de gestos e rumos, de sentidos que permanecem a despeito do adormecimento das horas e do rigorismo estéril da mera técnica. Dispersão, na quietude da memória, reencontra a simplicidade dos significados diferentes das palavras e incorpora as realidades contrárias do destino à tragicidade da esperança: otimismo, solidão, angústia e silêncio são campos florescentes para o soletrar do mistério poético. 

Abrindo-se o postigo de cada verso do livro, do destino e do poeta Edson Guedes de Morais, apalpa-se o semblante nômade das palavras como forma de alcançar a miragem dos abraços contida na ansiedade, no tempo e casualidade, ou mesmo no momento sobre a ponte, quando o nada, o grito, a paisagem, o cansaço, o final, o retrato, por segundos estalam na hora habitual das coisas, dando margem para que gilete, gás, tudo fechado... como carta de Maloa em determinação e vocabulário da lenda ou da aceitação de Van Gogh conservem o otimismo e a tristeza do crepúsculo e, de pé, nunca mais, das cartas de um jovem poeta o homem possa dizer: e agora... triste? Toda infância é iniciação, fuga e reencontro com as coisas em passante trilha de gesto e palavra espécie de vernissage no Bar do Joaquim. Sim, só mesmo um poeta essencial, desses que o tempo revigora, pode afirmar: “é preciso inventar/ uma palavra nova/ou descobrir o lugar/aonde os navios voltem”. Na hora intacta do destino, o poeta escreve na margem branca da lembrança sua profissão de fé: “Nunca fale de mim aos conhecidos./ Faça mistério, esconda tudo e a sua dor/para que não se riam, mãe/do seu menino/que não soube crescer/e ficar homem.” Bendito o homem que acalenta a poesia das coisas no menino que leva e traz eternamente em sua companhia a Dispersão mágica da existência.

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A RESTAURAÇÃO DA AURA
Gildemar Pontes ·

Poucas vezes pude me defrontar com uma obra de arte original, já consolidada pelo tempo como patrimônio da humanidade ou como valor artístico absoluto de uma concepção única, inaugural. Rodin, van Gogh, da Vinci, Michelangelo, uma partitura manuscrita de Schubert, a primeira edição d’A divina comédia são provas cabais do gênio artístico que habita o gênio humano e nos são ofertadas por um “acidente” de percurso no momento da criação de muitos artistas.

Em outros textos: “Pós-moderno e capitalismo global” e “O olhar contemporâneo”, que passaram a integrar um ensaio sobre as “Tendências da poesia contemporânea: a geração 60”, discuto a refuncionalidade da obra de arte e sua relação com a sociedade de consumo. Essa problematização “teve dois momentos distintos: logo após a Revolução Industrial, quando a produção em série alterou os valores dos objetos produzidos para o consumo da matéria e para o deleite do espírito; e depois, nos pós-guerras do Século 20, entre 1918 e 1939 e a partir de 1945. Estava em xeque não só o conceito de arte, mas, sobretudo o conceito de civilização.”

Portanto, a função mágica da arte cedeu lugar ao consumo, aos poucos massificado pela indústria cultural. Se isso é, para muitos, um problema de perda de valor do objeto artístico e de uma certa banalização estética ou degradação da arte para efeito mercadológico, para outros, que lucram com essa transformação feita pelo mundo globalizado, a arte não passa de um objeto puramente comercial.
A quem caberá pois reinserir ou restaurar à arte o seu estatuto original, a sua aura? Essa pergunta poderá não interessar à grande massa populacional que “não se interessa” por arte, porque o pão precede o deleite.

Mas aos artistas, que têm na arte o pão espiritual e a sobrevivência, como poderão restituir o valor de culto e propagar a arte para além dos museus, das galerias, das bibliotecas, dos teatros, etc.? Essa é uma questão filosófica ou puramente mercadológica? Deixo a resposta para cada um exercitar no seu prejuízo ou no seu lucro artístico. Todo escritor gostaria de ser bestseller sem ser taxado de água com açúcar. Como cada vez mais gente lê menos e cada vez mais poucos autores freqüentam as carteiras escolares ou a lista dos mais vendidos, precisamos alterar essa lógica, embora passemos a ter um problema educacional, que já é um problema de governo, mas esse assunto já tratei em outros artigos
sobre cultura e cidadania e não quero estupidificar este texto falando em (des)governos.

É preciso ver dragões onde há moinhos. Recentemente, conheci algumas publicações bem trabalhadas de dois contos do escritor Leontino Filho, e de outros escritores, em Porta fólios editados pelo engenhoso Edson Guedes de Morais, da Editora Guararapes – EGM, de Pernambuco. Para meu espanto, de êxtase e de admiração, foram feitos apenas cinco exemplares do referido Porta fólio para cada autor. Se a obra não irá transpor fronteiras, pelo menos será lida por poucos, mas fiéis leitores de boa literatura. Novamente o problema do consumo e do deleite se coloca. 

O papel do editor Edson Guedes de Morais, neste caso, é de revelar, através da publicação, a arte que era até então cria e cúmplice solitária do artista e proporcionar ao autor o status de deixar de ser anônimo para ser édito, mesmo que para um reduzidíssimo número de leitores.

Pedro Lyra, em Utiludismo – a socialidade da arte , coloca a relação entre arte-sociedade, discutindo o processo de criação e recepção do objeto artístico num mundo automatizado. As questões referentes à autenticidade, à destruição da aura, ao valor de culto e ao valor de exposição foram pensados numa perspectiva sociológica.

Na análise da arte rupestre, Walter Benjamin observa que, à medida que as obras de arte se emancipam do seu uso ritual,aumentam asa ocasiões para que sejam expostas. Por exemplo: O alce copiado nas cavernas era usado pelos nossos ancestrais como um instrumento de magia.No texto “Experiência e Pobreza”, Benjamin faz uma série de perguntas que, se problematizaram o início do século 20, hoje, com a velocidade medida em gigahertz, são muito mais preocupantes. A experiência, abandonada pelo mundo moderno era comunicada aos jovens De forma concisa, com a autoridade da velhice, em provérbios; de forma prolixa, com a sua loquacidade, em histórias; muitas vezes como narrativas de países longínquos, diante da lareira, contadas a pais e netos. Que foi feito de tudo isso?
Quem encontra ainda pessoas que saibam contar Histórias como elas devem ser contadas? Que moribundos dizem hoje palavras tão duráveis que possam ser transmitidas como um anel, de geração em geração? Quem é ajudado, hoje, por um provérbio oportuno? Quem tentará, sequer, lidar com a juventude invocando sua experiência? (BENJAMIN, 1988: 114).

Se a experiência é um repositório humano da cultura, guardada pela tradição da narrativa oral e escrita popular, que diria Benjamin neste início de milênio, onde a palavra chave é a globalização? Tomando estas questões de Benjamin como ponto de partida para uma reflexão de natureza filosófica, podemos confrontá-las com a visão por dentro do poeta Francisco Carvalho que assume o ponto de vista do produtor de arte. De uma certa forma os dois modos de ver o fenômeno em análise são convergentes. Para o poeta, a modernidade institui um cânone voltado para a tradição, que será esquecida, e outro cânone para o mercado de consumo, tão volúvel quanto a nuvem que desfez o formato do dragão no minuto que passou.

O mercado dita as regras de toda produção artística e da moda. Quem dá as regras é este monstrengo devorador de economias chamado capital especulativo internacional. A produção estética integrou-se à produção de mercadorias. Desta forma, a arte passa a integrar um sistema cultural onde o mercado produz um tipo de leitor-ouvinte-espectador-consumidor (ou será repositório?) que são um só: o que vai definir a cor da lua ao longo do Século 21.

Felizmente, há quem se dedique ao feitio artesanal de uma obra de arte e a entregue ao público para o ritual em casas e apartamentos, depois na escola e no clube, quem sabe, na esquina e na tv. O certo é que as formas usadas por Edson Guedes de Morais para editar escritores pelo Brasil, sem expensas para o editado, são únicas e até podem ser confundidas com o livro, colocadas lado a lado dos livros tradicionais na estante, mas como porta fólio, livro sanfona, caixas de madeira ou papelão, Edson transforma a forma tradicional em objeto de arte em si, envolvendo o texto para produzir uma obra final única, próxima do gênio, que, como querem seus artífices e cultores, resistirá ao tempo, graças ao Edson e à uma teimosia de escrever e tentar superar as barreiras da indigência intelectual a que somos cometidos, tornando-nos elite da escória e escória da elite, porque afinal este país ainda é adolescente e os dirigentes anacrônicos demais para tanto viço.

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LITERATURA SEM FRONTEIRAS -
 Edson Guedes de Morais Calendário poético 2011 
Nilto Maciel 

Recebi do poeta Edson Guedes de Morais, que mora em Jaboatão dos Guararapes, Pernambuco, uma caixinha recheada de poemas: 2001 Calendário – Poetas – Antologia (Editora Guararapes). O bloco de janeiro apresenta poemas de Aluísio de Azevedo, Aníbal Machado, Augusto Meier, B. Lopes, Carlos Nejar, Casemiro de Abreu, Edson Guedes de Morais, Emiliano Perneta, Euclides da Cunha, Henrique do Cerro Azul, Homero Homem, João Cabral de Melo Neto, Luís Delfino, Marcus Accioly, Nilto Maciel, Pascoal Carlos Magno, Rubem Braga, Walmir Ayala e Wenceslau de Queiroz. Não relacionarei todos os nomes, para não ser enfadonho. 

A caixinha é um livro diferente dos outros. Primeiro, por ser feito artesanalmente: a caixinha (será de madeira?), as folhas (papel) de cada bloco (mês) coladas umas às outras, impressas em computador. Segundo, por ser uma caixa. Terceiro, por ter as capas personalizadas: cada autor tem o nome e uma fotografia na capa (exterior da caixa) de um exemplar, sendo o miolo igual para todos. 

Edson constrói artefatos como este há anos. Dedica grande parte da vida a divulgar a poesia (dos outros), sendo ele grande poeta. E também contista da melhor qualidade. Edson Guedes de Morais nasceu em Campina Grande (PB) em 1930. Poeta, contista e crítico. Autor de Vinte Anos Outra Vez e a Virgindade do Mundo, contos, 1987, e outros livros. Estreou em 1956 com Dispersão, poesia. Seguiram-se A História Verdadeira da Morte do Delegado, poesia-cordel, 1963; Um Homem e os Homens Lá Fora, contos, 1963; In Oito, 1964, poesia; Artesãos do Nada, 1973, romance; Outras Lembranças, Outra Casa, Outros Mortos, 1976, novela; Monstro, BestaFera, Como Saiu nos Jornais, 1975, teatro; As Coisas, Assim Como São, Assim São, 1978, teatro. Tem romances e peças de teatro inéditos. O poeta mineiro-brasiliense João Carlos Taveira prestou-lhe homenagem no artigo “Edson Guedes de Morais, um abnegado poeta nacional”, no site do poeta Antonio Miranda. Torno público o meu agradecimento ao poeta (não conheço endereço eletrônico dele) pelos muitos poemas meus publicados em caixinhas e outras coisas feitas por ele. Comentário: CHIICO MIGUEL... Caro Amigo Nilto Maciel, Diante da matéria que você dedicou a Edson Guedes de Morais, eu fico sem palavras. Há muito tempo que quero escrever algo consistente sobre o grande contista, mas me sinto pequeno. Sobre o poeta fiz uma postagem, arremedo de biografia e antologia, num dos meus blogs há algum tempo mas devia ter feito muito mais. Edson Guede de Morais é grande em tudo: literatura, divulgação, amizades. Divulga os amigos contemporâneos como ninguém, por sua própria conta e risco. E, de certa forma, se esconde como escritor. Diz a Biblia que “vaidade das vaidades tudo é vaidade”. Mas, eu quero acrescentar: Bendita a vaidade que opera com as boas obras dos outros, especialmente a arte, sem esperar nenhuma recompensa: a isto se chama generosidade, bondade, grandeza de espírito. Edson é assim: portador de toda essa fortuna e ainda é grande escritor. Não tenho palavras. Quero registrar aqui, porém, uma lembrança: o belo dia em que nos encontramos en Recife, quando ele foi visitar-nos, eu minha mulher, juntamente com o colega poeta Jaci Bezerra. Guardo a foto com carinho, seu nome e sua obra também. Abraços aos amigos, a eles dois e a você, Nilto. Do poeta Chico Miguel (FRANCISCO MIGUEL DE MOURA)




Sharbat Gula

Apresento um poema inédito, feito há pouco, a propósito da notícia de que Sharbat Gula, que se eternizara nas lentes do fotógrafo Steve McCurry, na capa da National Geographic, fora detida, nesta quarta feira, no Paquistão, sob alegação de estar usando documentos falsos. Se condenada, poderá pegar de sete a quatorze anos de prisão.

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Aos 12 anos,
Sharbat Gula
tivera a alma roubada e impressa em papel fotográfico
[na prensa do mundo.
Tornara-se famosa, cultuada,
cultivada nas paredes de ricos escritórios e apartamentos,
enquanto quedava sobrevivente em um campo de refugiados na cidade de Peshawar, no Paquistão.
17 anos depois, já com 30 anos, desta vez no Afeganistão, fora mais uma vez fotografada por Steve McCurry, que lhe falara da fama, do mundo, mas nada lhe dera, e,
mais uma vez, nada lhe prometera, levando consigo a imagem de uma alma dilacerada.
Aos 46 anos,
largada à própria sorte,
autora de três filhos
e refugiada em si mesma,
Gula, agora, está só, como sempre estivera,
fincada nos dias intermináveis de solidão e preconceito,
à procura da identidade
que lhe fora negada.
A menina afegã não existe mais.
Os seus olhos, outrora verdes e selvagens,
São agora tristes e opacos.
Sharbat Gula
Amarga seu destino,
Aguarda sua sentença,
sem que lhe reconheçam a efêmera fama da qual fora vítima.

(Francisco Perna Filho)
Fonte da notícia: El País.
Imagens: Internet

Seleta de Poemas - Cássia Fernandes




Cássia Fernandes - Foto by Admilson Ferreira
Revista Banzeiro traz a Poesia de Cássia Fernandes (Lucivânia de Cássia Fernandes). Nascida em Pontalina - GO, muito cedo mudou-se para Goiânia, onde fez seus estudos: Jornalismo-UFG e Letras - PUC-GO. Foi professora na Rede Pública Municipal de Goiânia. Passado algum tempo, estudou Cinema na Faculdade Cambury - GO, o que a motivou  fundar a produtora audiovisual La Lumière. Bem lá atrás, aos 27 anos, Cássia Fernandes publicou o premiado romance Cartas que não te escrevi, que fez muito sucesso por aqui. Morou em Paris, voltou para Goiás, e, aqui, escreve(u) para o jornal o Popular e para o portal de notícias A Redação. Cassia é editora do blog Almofariz e mãe do Fernando. (Fonte Almofariz do Tempo)

Foto by Juliana Corso
Maçã


Eu mordo essa maçã com raiva.
Eu a trituro nervosamente com meus dentes afiados.
Porque me ensinaram tudo errado.
Ensinaram que ela é fruto de um tal pecado,
que sou eu própria esse fruto,
que o resultado do desejo
pelo fruto da sabedoria
é nossa dor originária.
Depois nos ensinaram que há também castigo
por comê-la por curiosidade
e por causa disso
quedaremos adormecidas
até que pelo hálito de um desconhecido
sejamos despertadas.
Basta de castigos,
venenos, feitiços
e despertares mágicos.
Não aceito ser considerada
o fruto podre do cesto,
nem o paradoxo
de que na escola da vida
só quem leva uma maçã para o professor
é aprovado.
Eu mordo essa maçã com raiva.
E desperto.

In.Almofariz do Tempo. Goiânia: Pantheon, 2016, p.31.


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Inversões do Amor nos tempos de Cópula


O homem, a mulher, adentra
bem à vontade,
mas não entra em sua casa,
pois entrar seria
demasiada
intimamente.

O homem conhece a mulher
em sentido bíblico,
mas não sabe
de sua vida laica.

O homem come a mulher
com garfo e faca
e até dorme de colher,
mas comer juntos um prato de sal,
ah, isso
ele não quer!

Da mulher, o homem desfruta,
mas deles não brotam frutos.
E depois ainda se queixa
do absurdo
de que só há no pomar
mulher desfrutável

Idem. p.39


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Pacote Completo

Quando a gente ama,
compra o pacote completo:
o bilhete de ida sem volta,
a ex-sogra,
o mau hálito quando acorda,
o mau humor
o mau amor.

A gente ama,
a gente compra
o pacote com tudo o que vem dentro:
um trem, uma família, um cachorro,
um papagaio, um sofrimento.
O feijão com caruncho,
a pedra...
A gente quase quebra um dente
quando morde.

A gente não pode
comprar uma meia mãe,
uma meia sola,
só o seio esquerdo
e deixar na loja
uma só alça
do sutiã meia calça.

Comer só o miolo do pão
e do sonho de valsa;
a laranja e a couve;
e fingir que não houve
nem escravidão, nem fome, nem chicotada,
nem o pé de porco
na feijoada.

O amor não se vende avulso
nem picado,
para um pé atrás,
de um só lado.
Se bem que é preciso
começar com o pé direito,
dar ao menos um braço a torcer
e de vez em quando estender
a roupa no arame
e a outra face.

Porque a qualidade e o defeito
são irmãos siameses.
E o cachorro se senta
sobre o próprio rabo.
Bicho de goiaba e goiaba,
exceto para quem está
de barriga lotada.

Quando a gente ama,
não pode escolher
se tem aleijão
ou se é perfeito.
Tem que aceitar a barriga, a remela,
o cabelo negro,
o presente grego,
a mão em que sobra ou falta
um dedo,
e que é a pimenta da vida
e que dá tempero à comida.

Não há amor que se venda a granel,
como fiado.
Só no armazém ao lado.
E se é verdade
que a galinha da vizinha
é sempre mais gostosa e mais gordinha,
é verdade também
que não se faz omelete sem quebrar uns ovos
chocos,
e que todo ofício,
mesmo o de você comer
e de eu comer você,
tem seus ossos.

Idem, p.22-24

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A Doença do Mundo

Os homens antes saíam pra beber e se matar nas
guerras e nas ruas,
enquanto as mulheres,
ficávamos em casa,
matando a si mesmas e entre nós
de tripas, laços e tintas
de silêncio, ciúme, solidão e culpa.
Foram séculos assim.
Foram séculos de fogueiras, conventos,
caldeirões ferventes de santas e bruxas,
de mulheres nas cruzes!
Raiva mastigada, sangrenta e burra.
Vitórias apenas de serpentes
ciciando nas alcovas
e cozinhas -
cheirando colarinhos
e cestos de roupa suja -
temperos e venenos
nas tigelas de sopa
de batatas, asas de morcego,
amor traído e desassossego.

Escondendo absorventes, seios e cios.
A boca aberta,
enfiados na garganta
os dedos para o vômito,
o gardenal e outras pílulas e pauas
calmantes.

Até que dissemos: chega!
Ou disseram para nós as fábricas inglesas.
E colocamos nossa vozes agudas e finas
e desagradáveis nos microfones e nas urnas!
Primeiro queimamos sutiãs.
Contraímos sífilis.
Transamos com cães.
Voltamos pra casa,
de saco cheio,
viola no saco,
a alma e a racha partidos ao meio.
Desertamos.
Tivemos filhos e mais uma vez,
diante do espelho,
madalenas arrependidas
de longos cabelos,
abrimos mão de nossas próprias vidas,
nos subúrbios americanos,
condomínios horizontais brasileiros,
aparando grama
e cultivando nostalgias.

E agora estamos aí de novo,
nos matando de novo
de sida, de histeria,
vaidade plástica e de magreza,
velozes e bêbadas,
porque o mundo e os estilistas ainda nos odeiam.
Porque a gente ainda se culpa pelos males do mundo.
Pobres pandoras!
Pobres mães de cristo e de todos os pecados!
Pobres virgens suicidas!
Mas aqui está o irreversível:
poluímos o planeta com nossa beleza,
com a gula esfaimada
de quem antes não podia sentar à mesa
da Santa Ceia.
Porque agora, além dos vasos de flores,
somos vorazes, perfeitas, descabeladas,
vitaminadas, absolutas.
Ganhamos o Big Brother,
que nem por isso se chama Big Sister a partir de agora.
nadamos, nadamos e morremos na praia.
Consumimos tudo.
Fumamos charuto,
cercadas de quem
nos atira confetes e vestidos
mas no fundo faz fita.
Puderam. Quiseram
amputar nossos clitóris
com a ferrugem das giletes,
cacos de garrafas de cerveja
e sua inveja do útero.
Estamos por cima da carne seca
e queremos ainda ficar por baixo,
receber, dar leite...
Mas a vingança está feita.
E a profecia se cumpre. Apocalipse.
Ou a justiça divina.
O mundo agora sofre dos nervos!
Chora e arranca os cabelos,
porque confusamente deseja
e esqueceu o que seja
em paz estar
com a própria natureza.

Idem, p. 25-28.


Picasso - 1962, Tête de femme (Jacqueline):
Pablo Picasso - 1962 - Tête de femme

























Camisa de Força


Não posso abrir a boca,
que sou louca.
Não posso tirar a roupa,
que sou louca.
Não posso abrir as pernas,
que menina mal comportada.
Não posso fechá-las,
que santinha do pau oco,
víbora dissimulada.
Não posso ficar calada,
que sou sonsa,
nem amável nem romântica.
Não posso ser carinhosa,
que melosa.
Não posso queixar-me,
que faladora e reclamona.
Não posso negar-me,
que sou fria.
Não posso desejar,
que sou vadia.
Não posso ser forte,
que sou homem.
Não posso ser frágil,
que é ser mulherzinha.
Não posso comer
nem morrer de fome.
Não posso vestir essa roupa,
que é camisa de força
que só se veste
em gente louca.

Idem, p.29-30.



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Foto by Pós-Quim














Realidade

Antes eu era bem mais dramática.
Dava grandes festas de melancolia
e convidava todo mundo
a comparecer à minha dor.
Hoje, me limito,
no começo do dia,
a ir-me embora pra Pasárgada,
mas olhe só quanta bobagem:
no final da tarde,
lembro que não tenho grana
nem pra passagem.


Especial Joaquim Cardozo




JOAQUIM CARDOZO


Joaquim Maria Moreira Cardozo nasceu no Recife, no dia 26 de Janeiro de 1897. Poeta, engenheiro, desenhista, topógrafo, dramaturgo, crítico de arte e historiador, só para ficarmos com um pouco da genialidade desse cidadão brasileiro do Recife. Foi responsável  direto pelo mapeamento de parte do litoral nordestino e  pelo cálculo estrutural de inúmeras obras da nossa arquitetura, mais precisamente pelas curvas de Brasília, dando sustentação ao Projeto Arquitetônico de Oscar Niemeyer. Quando jovem fez parte da boêmia recifense, ao lado de grandes personalidades da literatura e das artes em geral.  Em 1939, muda-se para o Rio de Janeiro e lá  convive com  Pedro Nava, Augusto Meyer, Lúcio Costa, Manuel Bandeira e tantos outros. Publicou o seu  primeiro livro Poemas, em 1947, aos 50 anos de Idade. Faleceu no dia 4 de novembro de 1978, em Olinda - PE. 


Poemas (1947)



Poesia da Presença Invisível


Através do quadro invisível iluminado da janela
Olho as grandes nuvens que chegaram do Oriente
E me lembro dos homens que seriam meus amigos
Se eu tivesse nascido em Cingapura.

E aqueles que tiveram comigo nas horas concluídas
Ainda impressionam o ar
- Todos ele perderam-se no mar.

Agora, na praia deserta estou sozinho
- Caminho
Com os pés descalços na areia.

Nesta tarde morta o perfume das almas
Invade as enseadas, estende-se sobre os rios, paira sobre [as colinas
- A Natureza assume a precária presença de um sonho;
Um trem corre sereno na planície dos homens ausentes;
Do fundo de minha memória sobe um canto de guitarras [confusas;
Sinto correr de minha boca um rio de sombra,
A sombra contínua e suave na Noite.



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Velhas Ruas


Velhas Ruas
Velhas ruas!
Cúmplices da treva e dos ladrões,
Escuras e estreitas, humildes pardieiros
Quanta gente esquecida e abandonada!

As varandas se alongam
Num gesto atento e imóvel de quem espreita
Rumor, sombra de passos que passaram,
Tato de mãos ligeiras invisíveis.

Velhas ruas!
Cúmplices da treva e dos ladrões,
Refúgio do valor desviado e da coragem anônima,
Sombra indulgente para os malfeitores,
De quem ocultais os crimes
E a quem dais generosas.

Nos momentos de paz um conselho materno.
Comovida e cristã sabedoria,
Espírito coletivo das gerações passadas,
Estes muros que a ferrugem da noite rói sugerem
O velado esplendor espiritual dos conventos,
O ritmo das coisas imperfeitas,
A volúpia da humildade.

Trêmula, dos lampiões
Desce uma luz de pecado e remorso,
E o cais do Apolo acende os círios
Para velar de noite o cadáver do rio.


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Poema dedicado a Maria Luíza



Eu te quero a ti e somente,
Eu que compreendia a beleza das prostitutas e dos portos,
Que sofri a violência da solidão no meio das multidões das grandes ruas,
Que vi paisagens do céu erguidas sobre a noite do mais alto e puro mar,
Que errei por muito tempo nos jardins deliciosos dos amores incertos e obscuros.

Eu te quero a ti sempre e somente.
Eu te quero a ti pura e tranquila
Preciosa entre todas as mulheres
Que como rosas, como lírios, sobre mim se debruçaram,
Entre aquelas que de mim se aperceberam
Ao doce esmaecer das tardes luminosas.
Eu te quero a ti pura e tranquila.
Nos espelhos da memória refletida
Pelas horas do meu tempo transpareces
E o Sol do meu deserto te ilumina
E a noite do meu sono te adormece.
Eu te pressinto no silêncio das verdades que ignoro,
No silêncio e no delírio dos desejos impossíveis:
através de um céu sem nuvens, do céu que é um prisma azul
Eu te revelarei a cor da tempestade
E a refração serena do meu mais íntimo segredo...


Em horizontes de ouro e de basalto
Indicarei o teu caminho
Entre flores de luar...
Farei uma lenda sobre teus cabelos...

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Afasta de  Mim Este Teu Corpo...

Afasta de mim este teu corpo
Mole, triste , violado;
Este corpo que nasceu como uma flor de esponja
Na região sombria das virtudes imperfeitas.
Passaram sobre ele as glórias do mundo
E a força lunática dos destinos incertos.

Passaram como nuvem sobre a batalha,
Como o vento sobre a paisagem,
Como o vento do mar que envolve a minha casa
Nesta manhã de chuva, suave Maria.


Mulher Nua - Edward Hopper


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Tarde no Recife



Tarde no Recife.
Da ponte Maurício o céu e a cidade.
Fachada verde do Café Maxime,
Cais do Abacaxi. Gameleiras.

Da torre do Telégrafo Ótico
A voz colorida das bandeiras anuncia
Que vapores entraram no horizonte.

Tanta gente apressada, tanta mulher bonita;
A tagarelice dos bondes e dos automóveis.
Um camelô gritando: — alerta!
Algazarra. Seis horas. Os sinos.

Recife romântico dos crepúsculos das pontes.
Dos longos crepúsculos que assistiram à passagem dos fidalgos
                                                                                   [holandeses,
Que assistem agora ao movimento das ruas tumultuosas,
Que assistirão mais tarde à passagem dos aviões para as costas
                                                                                     [do Pacífico;
Recife romântico dos crepúsculos das pontes.
E da beleza católica do rio.
                                                       (1925)

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As Alvarengas


                             
                                              "Tous les chemins vont vers la ville"
                                                                                      (VERHAEREN)




As Alvarengas!
Ei-las que vão e vêm; outras paradas,
Imóveis. O ar silêncio. Azul céu, suavemente.
Na tarde sombra o velho cais do Apolo.
O sol das cinco acende um farol no zimbório
Da Assembeleia.
As Alvarengas!
Madalena. Deus te guie. Flor de zongue.
Negros curvando os dorsos nus
Impelem-nas li geiras.
Vêm de longe, dos campos saqueados
Onde é tenaz a luta entre o Homem e a Terra,
Trazendo, nos bojos negros,
Para a cidade,
A ignota riqueza que o solo vencido abandona.
O latente rumor das florestas despedaçadas.
A cidade voragem
É o Moloch, é o abismo, é a cadeira...
Além, pelo ar distante e sobre as casas,
As chaminés fumegam e o vento alonga
O passo de parafuso
Das hélices de fumo;
E lentas
Vão seguindo, negras, jogando cansadas;
E seguindo-as também em curvas n'água propagandas,
A dor da Terra, o clamor das raízes.

                                                   ( 1925)



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Recife de Outubro


Ó cidade noturna!
Velha, triste fantástica cidade!
Desta humilde trapeira sem flores, sem poesia
Alongo a vista sobre as águas
Sobre os telhados.
Luzes das pontes e dos cais
Refletindo em coluna sobre o rio
Da impressão de uma catedral imensa,
Imensa, deslumbrante e encantada,
Onde, o esplendor das noites velhas,
Quando a noite está dormindo,
Quando as ruas estão desertas,
Quando, lento, um luar transviado envolve o casario.
As almas dos heróis antigos vão rezar.

Sinto no meu sangue a caricia da morte.

No silêncio as horas morreram,
E ao saimento
Das horas mortas
Um sino toca

Caminho a passo lento,
Creio que alguém me espia do alto, das cornijas,
Vai passando na sombra a ronda dos meus sonhos.

Toda cidade, eu vejo, está transfigurada;
É um campo desolado, negro, enorme
Onde rasteja ainda,
O último rumor de uma batalha;
E a massa negra dos edifícios,
As torres agudas recortando o azul sombrio,
Cadáveres revoltos, remexidos,
Com braços mutilados
Erguidos para o céu.
Ó minha triste e matéria e noturna cidade
Reflete na minha alma rude e amargurada
Te teu fervor católico, o teu destino, o teu heroísmo.




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Olinda



Olinda,
Das perspectivas estranhas,
Dos imprevistos horizontes,
Das ladeiras, dos conventos e do mar.

Olho as palmeiras do velho seminário,
O horto dos jesuítas;
E neste mar distante e verde, neste mar
Numeroso e longo
Ainda vejo caravelas...

Sábio silêncio do Observatório
Quando à noite as estrelas passam sobre Olinda.

Muros que brincam de esconder nas moitas,
Calçadas que descem cascateando nas ladeiras.

Olinda,
Quandoi o luxo, o esplendor, o incêndio
E os Capitães-mores e os jesuítas
E os Bispos e os Doutores em Cânones e Leis.

E ainda
Com as velhas bicas, os velhos pátios das igrejas:
Amparo, Misericórdia, S. João, S. Pedro,
Nossa Senhora de Guadalupe;
E os Beneditinos e as irmãs Dorotéias
E os padres de S. Francisco.

Neste silêncio, neste grande silêncio,
No terraço da Sé,
Sentindo a tarde vir do mar, tão doce e religiosa,
Como a alma celestial de S. Francisco de Assis.
                                                               
                                          (1925)




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Signo Estrelado (1960)



A Aparição da Rosa e Outros Sonetos



Legenda:

O primeiro destes sonetos d’A Aparição da Rosa procura representar o símbolo da continuação e da beleza da vida, o segundo tenta revelar o momento da criação humana não só material como também espiritual, e o terceiro, da morte irremediável e irredutível, pretende exprimir o mistério.

Apesar de vazados na velha forma do soneto, estes versos contêm rimas à esquerda, rimas interiores, assonâncias e quase-rimas, assim como certos efeitos de halo e de filtro poéticos que, ao meu ver, ainda são rimas, embora já livres do formalismo dos fonemas.


                         I

Não sei se ainda dormia e se sonhava...
Mas era uma visão, uma doçura
Que vinha de nascer da noite escura
E de ouro de carmim se revelava.

Não sei... Mas era um canto, uma voz pura
Que ao crescer toda em cores se banhava
E, às vezes, ascendia ou resvalava
Num vermelho de sangue e de loucura.

Era um nascer assim bem temerário,
Era um cantar solene e solitário,
Fervor, aspirações comuns e raras;

Sombrio de paixões, matriz sagrado;
De alvos seios luar desencantado;
Sobre sangue de amor sol de searas.



                          II

O silêncio da tarde, os bois pastando
E a luz dourando os arcos do aqueduto...
Tão livre a paz do céu se derramando!
Oh flor de ausente e perfumado fruto!

Alguém que ao longe os braços agitando
Configurasse a angústia de um minuto;
Também modulação se transformando
Na eterna voz de um canto irresoluto.

Embora a luz destile, de entre as palmas,
Um aroma, um veneno sobre as almas,
Evoluindo em surdas agonias;
Neste teu fruto esplêndido e vazio
Há um timbre, uma cor, um calafrio
De descobertas e de profecias.


                      III

Nas treliças de ferro de uma ponte,
Das águas sobre o plano movediço,
Há um vôo de sucesso e de horizonte...
- Flor e flor de mistério e compromisso.

O tempo em febre e sede extingue a fonte
Do teu refúgio e do teu claro viço;
Passando vão, vão sós baixando a fronte
Os peregrinos de um sonhar remisso.

 E quando dos espaços espontâneos,
Em rapidez de sopros litorâneos,
De novo a noite vem se aproximando.

O Frio, o Tenebroso, o Corrompido
Vão reduzindo o cálice ferido
E para sempre as pálpebras fechando.



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CONGRESSO DOS VENTOS



Na várzea extensa do Capibaribe, em pleno mês de agosto
Reuniram-se em congresso todos os ventos do mundo;
Àquela planície clara, feita de luz aberta na luz e de amplidão
                                                       [cingida,
Onde o grande céu se encurva sobre verdes e verdes, sobre
                                                       [lentos telhados,
Chegaram os mais famosos, os mais ilustres ventos da Terra:
– Mistral, com seus cabelos de agulha, e os seus frios de dedos
                                                         [finos,
– Simum, com arrepiadas, severas e longas barbas de areia
                                                       [quente,
– Harmatã, em fúrias gloriosas e torvelinhos, trazidos da Costa
                                                       [da Guiné,
Representante das margens do Nilo credenciou-se Cansim,
E Garbino, enviado das praias catalãs.

Vieram as Monções das margens do Oceano Índico,
Os ventos da Tundra siberiana vieram. . .
E os Alísios desceram do Equador, clandestinos,
Num grande transatlântico.

Chegaram ainda os ventos da América:
– Barinez, respirando doçuras de rios azuis, afluentes do
                                                [Orenoco,
– Pampeiro, eremita e solidão de horizontes sub-andinos,
– Minuano, assobiando longamente a tristeza ritmada das
                                                [coxilhas..

Também os ventos nordestinos se acharam presentes:
O Nordeste e o Sudeste; os ventos Banzeiros,
O Aracati das praias cearenses,
O vento Terral, velho boêmio das madrugadas.
Ventos, muitos e todos, ventos de todos os desertos,
De tempestades selvagens, de escuramente outonos. . .
Nesse congresso em tantas veemências se afirmaram
Quanto em glória e rebeldia se exprimiram. . .

Com açoites e eloqüentes rajadas falou Harmatã;
Com citações de Esopo e de La Fontaine
Comparou as vantagens da energia do sol e a do vento,
Descreveu com minúcia os modernos fornos solares
E admitiu o emprego futuro de ventos magnéticos.

Depois que Cansim relembrou o seu feito guerreiro
Envolvendo em altas nuvens de areia as legiões do rei Cambises
– Isto, há mais de dois mil anos –
Garbino repetiu com sopros noturnos e vagarosos
A velha história do abandono e desprezo dos ventos
Agora, solitários, vagando por todos os quadrantes.

A assembléia inteira levantou-se amotinada;
Um vendaval sem freio, um furacão,
Percorreu aquelas instâncias de planície tranqüila;
Uma onda de revolta se ergueu contra os motores,
Contra os ventiladores e os túneis de vento.

Mas apesar daquele tumultuoso debater de línguas meteóricas
Podia-se ouvir muito bem a voz lamentosa do Nordeste:
– Eu que, há trezentos anos, desembarquei das velas do almirante Loncq

Na praia de Pau Amarelo,
Que tremulei nas flâmulas e nas bandeiras das naus de D. Antônio de Oquendo

Aqui estou, nesta várzea, reduzido a professor de meninos:
Hoje vivo ensinando a empinar papagaios. . .

Voltando a calma, em alentos de aragens murmuradas,
Terral contou como ajudava as plantas nos amores:
– Levando nas dobras do seu manto o pólen das anteras,
Velivolvendo e suspirando entre ramagens.

Por fim, sucederam-se festas, danças de roda. . .
Músicas e cantos de longes mares tempestuosos,
Rodopios, volteios, caprichos, remoinhos, piões e parafusos. . .
– Com sestros de capoeira exibiram-se o vento Banzeiro e o Sulão.

Barinez leu uma mensagem de Romulo Gallegos,
Minuano disse um poema de Augusto Meyer.

E já pelos dias finais daquele mês todos partiram. . .
Erguendo o seu vôo sobre as nuvens varzinas
Regressaram, um após outro,
Para as noites e as tormentas das suas terras natais.

O último que se pôs a caminho foi o vento Aracati:
– Cortou uns talos de chuva
Com eles fez uma flauta
E se foi, tocando e dançando,
E se foi pela estrada de Goiana.





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 Elegia Para Maria Alves


Trago-te aqui estas flores
— Filhas que são, modestas, de um sol de outubro —
São flores das velhas cercas, flores de espinheiros,
São verbenas e perpétuas, bogaris e resedás;
Têm as cores do céu nos crepúsculos longínquos
E a transparência e a limpidez das tardes em que sonharam
                                                   [moças

Nos mirantes dos antigos jardins de arrabaldes.

As frutas que deposito no chão, no teu chão, dentro desta folha
                                                 [de aninga ...
— Filhas, também, de um sol que tu não viste —
São araçás silvestres, cajás de cercas nativas,
Pitangas, macarandubas, corações de rainha;
São vermelhas, são cheirosas e amarelas
Como se fossem . . . como se flores ainda . . .

As terras que espalho sobre o terreno do teu corpo vazio
— De muito distante vieram —
São areias do Rio Doce e da Piedade
Barros vermelhos das ribanceiras do Mar
Argilas das "Ruinas de Palmira" com as suas cores
De arco-íris naufragado entre os morros de Olinda.

Assim, Maria, trago-te flores, frutos e terras . . .
E para que se conservem sempre frescas e puras
Sobre elas derramo estas águas
Que são doces e claras, que são mansas e amigas:
Água da Levada de Apipucos
Água da Bica do Rosário
— Relíquias de chuvas antigas —
Águas por mim, por ti, por todos nós choradas.


In: CARDOZO, Joaquim. Poesias completas. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.









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