A vastidão da experiência humana: de
Quixote a Bacamarte.
A Revista Banzeiro republica esta excelente entrevista com Paulo Duarte de Carvalho Amarante, atualmente presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme). Paulo Amarante é Professor e Pesquisador Titular e Coordenador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (LAPS) da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/FIOCRUZ). Considerado um dos
mais notáveis cientistas do país, Paulo Amarante é capixaba, natural de Colatina. No Rio de Janeiro especializou-se em psiquiatria e se tornou um dos pioneiros do movimento brasileiro de reforma psiquiátrica. É Mestre em Medicina Social, Doutor em Saúde Pública, com Pós-doutorado em Imola (Italia). É Doutor Honoris causa da Universidade Popular das Madres da Plaza de Mayo; autor e organizador de vários livros. Nesta entrevista, concedida a Rosana
Carneiro Tavares e Francisco Perna Filho, com participação de Carlos Willian Leite e Ionara Vieira Moura Rabelo, ele fala sobre música, cultura,
literatura e reforma psiquiátrica. A entrevista foi feita em 2006, no Papillon Hotel, em Goiânia,(Francisco Perna Filho).
Em 2005, o senhor foi curador
da Mostra Cultura e Loucura, na Fundação do Banco do Brasil no Rio de Janeiro. Qual
é a importância de mostras como aquela?
Paulo Amarante – A minha perspectiva
é que a cultura, e dentro dela, as artes, representa dimensão importante do humano,
do subjetivo, da forma como o homem dá sentido à vida. A ciência tem – visão
equivocada de ciência – perspectiva de que a única possibilidade de
conhecimento da realidade é pelo saber positivo científico. Acho que não. Acho
que todas as formas de sentir o mundo contribuem para o entendimento do mundo. Não
há forma definitiva, única de pensar. Então, a cultura é dimensão fundamental
dessa possibilidade complexa, polimorfa de pensar, humana. E acredito que é por
meio da cultura, no caso do nosso trabalho com a leitura, que você pode
sensibilizar muito mais as pessoas. Faço uma conferência, escrevo um livro; tem
efeito muitas vezes restrito, voltado para profissionais, certo tipo de pessoas
que têm a verve intelectual para ler e refletir. Você faz uma peça, coloca um
quadro falando da loucura; aquilo tem significado muito forte, que vai
diretamente ao mais profundo que há no pensamento humano, subjetividade. Penso
que hoje uma das estratégias mais importantes que temos de levar é essa ideia
que o trabalho da reforma psiquiátrica, dos quatro campos, das dimensões da
reforma, a dimensão sociocultural, que é para a gente conseguir falar com a
sociedade sobre loucura de maneira distinta do discurso científico, mostrando
que são sujeitos que têm outro lugar, que têm lugar consigo na sociedade, como
é que se constrói esse lugar. É preciso promover o debate com todas as pessoas
que trabalham na área de cultura, no campo da loucura. Pessoas que estão
articulando teatro, filme, como a Laís Bodansky, que fez o “Bicho de Sete Cabeças”;
Marcos Prado, que fez a “Estamira”; Leopoldo Nunes, presidente da Ancine, que lançou
o “Profeta das Águas”, documentário sobre o famoso Caso Galdino, que liderou
rebelião contra a barragem no sul do Mato Grosso do Sul, nos anos 70, tentaram
enquadrá-lo como subversivo na Lei de Segurança Nacional. Depois, não
encontraram uma forma, porque não tinha relação com movimento social ou político.
Ele era um líder messiânico. Acabou sendo internado no manicômio judiciário e
teve todo um movimento de libertação. É interessante o uso da psiquiatria
inclusive como forma de repressão na questão política.
Cenas do filme Bicho de Sete Cabeças |
Muitos artistas notáveis
foram considerados loucos. Muitos trabalham o tema em sua obra. O que há de
próximo entre arte e loucura?
Amarante – Há certo obstáculo para
se definir se há proximidade. Acho assim: a loucura está muito próxima do
humano e a arte também, a cultura também. Então, há pessoas absolutamente
loucas que não são nada artísticas e há pessoas absolutamente artísticas que
não são loucas. Logo, penso que a questão da genialidade em termo da arte e da criação
não pode ser explicada nem pela razão nem pela desrazão. Creio que é uma
capacidade que algumas pessoas têm, algumas mais do que as outras. Todos os
homens têm a capacidade de olhar, sonhar, delirar, abstrair, ter pensamentos
absurdos. Isso tudo pode ser forma de surgimento da arte. Agora, nem todos têm
o dom. Por exemplo, conheci pessoalmente o Bispo do Rosário e Fernando Diniz. Este
é pessoa genial, a pintura dele! Foi pessoa que morou a vida toda no hospício e
ia todos os dias para a biblioteca, mais que estudante. Pegava os tratados de
medicina e ficava estudando anatomia. Então, ele estudava a musculatura, a
constituição do corpo humano, a ossatura. Via-se que ele estava aprendendo,
conseguia reproduzir, pintar. Então, é um dom isso. E eu não acho que seja por
causa da loucura. O Bispo, anteontem, faria 98 anos (Arthur
Bispo do Rosário nasceu em Japaratuba, Sergipe, em 16 de março de 1911. Ao
menos é essa a data que consta nos registros da Light do Rio de Janeiro, onde
trabalhou de 1933 a 1937).
E o Bispo era pessoa assim, insistia que não fazia arte. Ele cumpria apenas o
desejo da voz que o mandava recolher e organizar as coisas. Agora, a gente que
vê que essa forma de ordenar o mundo que ele tem, a estética com que ele faz, a
sua lógica, é coisa fantástica. Então, a impressão que eu tenho é que são temas
muito próximos, quanto à questão da relação loucura e cultura. São muito
próximos e dizem respeito a uma possibilidade de pensar e ver o mundo
diferente. Mas não são necessariamente interligados, não são interdependentes.
Quer dizer, não precisa ser louco para ser criativo e nem a criatividade
implica em loucura. Esse é meu entendimento.
Arthur Bispo do Rosário |
O senhor defende a reforma psiquiátrica.
Percebe se nas academias, cursos de graduação, a reforma está sendo discutida?
Amarante – Muito pouco. Isso é uma
das funções que a gente tem feito de como que o processo ainda é muito restrito
a grupo pequeno de profissionais, de familiares e de próprios usuários, ou
seja, os próprios loucos. A expressão “usuários” é introduzida pelo SUS, que
começou a considerar que toda pessoa que utiliza o sistema público é usuário,
em oposição à ideia de consumidor, que é de relação privada. Mas acho que é uma
falta e coisa em que precisamos investir. Eu, particularmente, há alguns anos
venho observando e falando isso. Inclusive, me desloquei um pouco mais da
assistência para a formação e depois da formação de especialistas em saúde
mental na linha da reforma psiquiátrica, comecei a me dedicar mais a formar
professores. A grande quantidade de orientandos que tenho em mestrado e
doutorado, acho que se não conseguirmos formar quadros docentes capacitados com
essa nova orientação teórica, ideológica e ética para enfrentar a academia,
contaminando-a um pouco, para formar de maneira diferente, vamos ficar
desgastados com o tempo. A reforma psiquiátrica que a gente tem de fazer é a
reforma dos profissionais. Eles saem da faculdade com visão neoliberal
privatista na cabeça, por um lado, e com o modelo biomédico de compreensão da
doença e de tratamento pelo outro lado. Então, eles pensam a doença como aquela
coisa bem positivista do modelo biomédico, a doença causada por algum agente
físico ou biológico. As relações humanas não têm muito valor, a relação profissional
não tem muito valor; o médico tem que ser um cara que faz o diagnóstico,
identifica. Então, cada vez mais está superando a ideia da relação
médico-paciente, que era a grande ideia da medicina hipocrática, que era o
médico enquanto certa arte de curar, de relacionar-se. Por isso, hoje, entra-se
no consultório, o cara não pergunta nem o nome. E já vai fazendo pedido de
exame. Isso é tudo o modelo, o que pensa a doença, não o sujeito que está
doente. O SUS certamente está longe do ideal, mas está iniciando uma mudança do
modelo no Brasil. Grande mercado de trabalho no Brasil hoje para os
profissionais de saúde é o SUS. Já foi um pouco o setor privado. Hoje, os
consultórios particulares estão em decréscimo. As pessoas não pagam mais um
psicanalista, por exemplo, um médico profissional. Elas vão ao seguro-saúde,
quer relação pior, que é intermediada por uma empresa que verifica se o médico
pode ou não fazer aquele pedido de exame, quantos pode ou não atender, tudo ela
controla. Por outro lado, a relação técnica é com a doença, não com o sujeito. Se
a gente não conseguir entrar na universidade para mudar esse processo, a gente
vai ficar sempre desconstruindo a forma com que as pessoas têm para, aí sim,
mostrar o que é a reforma psiquiátrica, tanto no aspecto conceitual quanto no
aspecto da prática política assistencial, que é a prática de uma ética muito
mais com o sujeito do que com prática privada do cliente e tudo mais. É ponto
que merece estratégia um pouco mais definida para que a gente não fique sempre
reformando as pessoas.´
Capra, no livro “Ponto de
Mutação”, fala que um dos problemas com os movimentos sociais das décadas de 70
e 80 é que operaram isoladamente. O movimento antimanicomial se desenvolveu de forma
isolada, a exemplo de outros movimentos importantes no Brasil?
Amarante – Não li o Capra. Gosto
muito dele, aliás, o filme “Ponto de Mutação”, muitas pessoas não sabem que
existe. Seu irmão, Bernt Capra, adaptou para o cinema e ele fez uma supervisão.
Mas concordo. Vi algo parecido dito pelo Boaventura de Sousa Santos. Ele também
fala desse afastamento dos movimentos sociais. Estamos, no momento, retomando a
idéia do movimento sanitário. O movimento sanitário já teve amplitude maior,
menos restrito a apenas os sanitaristas. Chegou a ser tão forte que era chamado
de Partido Sanitário, na década de 70, e conseguimos, afinal de contas, o SUS. Conseguimos
colocar na Constituição de 1988 os princípios do SUS, foi obra do movimento
sanitário. Foi a única emenda que não foi apresentada por deputados, foi emenda
popular. Rodamos o País pedindo assinatura. Conseguiu-se convencer os
parlamentares, outros atores sociais que também atuavam no convencimento para
que o SUS fosse aprovado. Agora, estamos em processo refundação do Cebes,
Centro Brasileiro de Estudo de Saúde. O Cebes foi a entidade pioneira do
movimento sanitário, criado por Davi Capistrano da Costa Filho, cujo pai foi
fundador do Partido Comunista Brasileiro. Foi preso na ditadura militar e
desaparecido. Foi uma das poucas pessoas de quem nunca mais se teve notícia. O
Davi o criou (Cebes), junto com outros sanitaristas, depois somaram Sérgio
Arouca e muitos outros sanitaristas famosos hoje. Eu tive a honra de entrar
nesses primeiros momentos, junto com o atual ministro da Saúde, José Gomes
Temporão, meu amigo da época. Depois, ele foi presidente do Cebes e eu fui vice
dele. Depois eu virei presidente do Cebes e o Temporão foi da minha diretoria
também. Então, é uma entidade que tem uma tradição dos sanitaristas, mas que
também perdeu aquela força de movimento social, depois se institucionalizou,
perdeu esse vigor de movimento reflexivo, crítico, de mobilização social. O
ministro é ex-participante desse movimento, pode-se dizer que é participante.
Mas estamos tentando retomar o caráter de movimento social, uma refundação,
retomando reuniões mensais de conjuntura, estimulando em todos os Estados
núcleos do Cebes, como tínhamos anteriormente, voltando a nos aproximar de
outros movimentos sociais, culturais, grupos que lidam com populações de rua, sem-terra.
Juntando essas pessoas que têm visão crítica em relação ao Estado e à sociedade
e têm atuação política transformadora, voltando a aproximá-las em torno da
questão da saúde. Então, os atores sociais que estão na militância, no Fórum
Social Mundial e tudo o mais, esses atores estão entendendo o que é o SUS?
Conseguimos passar realmente? Por que o sindicato dos trabalhadores está
reivindicando planos de saúde? Não deviam estar reivindicando que o SUS fosse melhor?
Por que os vários movimentos sociais, em vez de estar lutando pelo SUS, se
acham mais seguros tendo plano de saúde? A gente não está conseguindo convencer
essas pessoas. Por quê? Os planos de saúde hoje estão mais ou menos igual ao
SUS.
Para o senhor, a reforma
psiquiátrica deve encampar outros saberes além da psiquiatria. Como pode ser
possível abordagem interdisciplinar horizontalizada na ação com o portador do
sofrimento psíquico num mundo capitalista?
Amarante – Quando falo das várias
dimensões é porque, de fato, o problema não é só de um modelo mais adequado ou
mais moderno. Há uma fundamentação da ética, essa relação com o sujeito, essa
relação com o sofrimento humano, com a sociedade. De fato, como eu falava da
formação, o modelo tanto biomédico quanto o liberal capitalista ensina as
pessoas a lidarem com a doença, porque saúde não dá dinheiro, a doença dá. Então,
o nosso trabalho é também da concepção ética, da saúde do coletivo, da relação
de solidariedade, de reciprocidade do sofrimento humano. Por isso, a reforma
não pode estar restrita a repensar psicopatologia, psiquiatria, psicologia etc.
A gente tem que introduzir outras dimensões do estudo humano. É interessante
que a maior dos psiquiatras não tem formação em filosofia, em arte, cultura. Vi
um psiquiatra falar, respondendo a algo que escrevi, não dei muita bola no
momento, achava que era tão limitado o que ele dizia... Que Machado de Assis
escreveu “O Alienista” porque tinha raiva de uma pessoa que morava em Itaguaí. A
pessoa que não consegue perceber a imensidão de reflexões, de críticas que há
em “O Alienista”, aos costumes, à sociedade, ao papel da ciência, aos limites
de identificar o que é normal, como é que a gente convive. Quando ele interna
todo mundo, que vê que a cidade morreu, ficou sem graça sem os exóticos etc. Depois
achei uma crônica do Machado, publicada no jornal “A Semana”, o mesmo que
publicou “O Alienista”. Ele já tinha publicado o conto de Itaguaí. No Hospício
de Pedro II, na Praia Vermelha, teve uma época em que fugiu um louco famoso,
chamado Custódio Cerrão. Hoje ele teria o diagnóstico de personalidade
psicopática. Era um cara que tinha atitude muito controversa, brigava com todo
mundo. Ele abriu as portas do hospício e com ele fugiu um monte de loucos. Saiu
no jornal estampado assim: “Doudos fogem do hospício”. O Machado tinha essa
coisa como o Scliar (Moacyr), que faz hoje na “Folha de S. Paulo”: lê as
manchetes da semana, escolhe uma e cria em cima dela. Então, ele escreveu assim:
estava assustado, sabendo que os “doudos” tinham fugido do hospício. E por que
estava assustado? Porque antes, tudo que via de exótico em alguém na rua,
comportamento esquisito, ele falava que era da pessoa, cada um tem seu jeito e
tal. Aquele cara ali, esquisito, fazendo tal coisa, aquela mulher. Porque se
fosse doido estava no hospício. Por que isso? Porque os psiquiatras
cuidadosamente separavam os loucos dos normais. Agora, com a fuga dos doidos,
ele voltou a ter problema, porque na sabia quem era e quem não era doido na
cidade. É a mesma questão do “Alienista”. Então, ele começa a falar: fulano, eu
não sei se ele estava no hospício ou não, aquele ali, aquele outro. No fim ele
fala, “eu mesmo não sei se sou um desses fugitivos, porque para estar me
colocando essa questão, eu devo ser um desses fugitivos.” Acho que a reforma
psiquiatra não é um projeto de reformulação administrativa do modelo psiquiátrico,
mas saindo de um modelo violento de segregação para um modelo humano, aberto,
democratizado. Isso é conseqüência de ruptura na relação de objetivação dos
sujeitos, de mercantilização do sofrimento humano para uma relação de
subjetividade e de reciprocidade com as pessoas. Esse deslocamento que acho que
é difícil fazer. E realmente você luta contra muitos interesses instituídos de
hospitais privados, da indústria farmacêutica, de todo um mercado que se
constituiu aí de formação, de livro, de publicações. Estou lembrado
especificamente da Associação Médica Norte-Americana. Um dos maiores lucros da
associação é a venda dos próprios manuais de classificação de transtornos
mentais.
Machado de Assis |
O senhor já foi casado com a
cantora e compositora Fátima Guedes. Já tocou com grandes nomes da MPB. É
multiinstrumentista. Há espaço para a música na profissão do professor?
Amarante – Com João Bosco, a gente
fez uns saraus. Tocar mesmo, toquei com Fátima Guedes, toquei com Jandira
Fegali, que é médica e música; com Perna Feud, que foi maestro do Caetano; com
o Tunay e mais algumas pessoas. Sempre fiquei muito mais dividido do que
pensava entre a música e arte e a militância. Há lugar sempre. Estou agora
procurando recuperar um pouco o meu lado da arte. Tanto que quando estou
promovendo eventos sobre cultura também estou mexendo com esse lado meu. Também
toco de vez em quando. Na formação clássica, do militante, do professor, do
artista a gente tinha que se dividir. Ou uma coisa ou outra. Acho que caí nesse
equívoco. Talvez pelo momento histórico eu tivesse que me dar mais à
militância. Rodei esse país algumas dezenas de vezes e abandonei esse lado da arte
que eu deveria estar praticando mais. Acho que a gente deve romper com essa
visão tradicional do doutor, do professor. É um pouco a ideia do “Nome da
Rosa”, Jesus Cristo não pode rir. “O que é isso, companheiro”, do Gabeira
também: você é militante, não pode amar, curtir música, dançar. Acho dentro do
processo da reforma psiquiátrica a gente mexe também com essas coisas. A gente
vai vendo que terapeuta também é um sujeito, então ele gosta de música, também
quer cantar. Se a gente conseguir unir esses vários ângulos, essas várias
facetas no nosso trabalho, a gente consegue trabalhar melhor e viver melhor.
Qual o valor da literatura na sua
profissão de psiquiatra? E o que o senhor tem a dizer sobre o “Dom Quixote”? No
mundo ainda há espaço para a fantasia e para a ilusão?
Amarante – Deus me livre se não
houvesse. “Dom Quixote” é fundamental, é fundamental que existam os “Dom
quixotes” e os “Sancho Panças”, o que segue o louco. Se não existisse, a gente
estava entregue, dominado. A gente canta que está tudo dominado, mas não.
Estamos quase, mas não estamos. A gente está resistindo, com a literatura, com
os sonhos, com a rádio pirata, com os discos pirata, com a pirataria da mídia. A
gente resiste de várias formas. Sempre oriento meus alunos a reler Foucault. A
gente chama de último Foucault e última fase de Foucault. Ele é muito acusado
de ter falado que o poder era tudo, então tinha de fazer. Era tudo, tudo é o
poder. A partir do “Vigiar e Punir”, ele mostra como as instituições
disciplinárias formaram, adestraram o humano subjetivo, o sujeito, que vem
disso, alguém que é sujeitado à instituição, aos princípios, às regras. Numa
linguagem, ou numa tradição, pelo menos, rigorosamente foucaultiana, a gente
poderia dizer que é contra a transdisciplinaridade. Por quê? Porque a
disciplina nasce da conjunção híbrida do exercício de adestramento sobre o
sujeito, sobre os corpos que sujeitam os homens das instituições e nascem de um
saber que fundamenta esse exercício de poder. Por isso que a gente fala da
disciplina militar, da disciplina da escola, da disciplina da penitenciária, da
disciplina da escola normal, da disciplina do reformatório, da disciplina da
casa de correção. Da disciplina enquanto adestramento moral e físico do corpo e
da disciplina da matemática, da psicologia da disciplina, que é um saber também
adestrado que fundamenta as práticas de adestramento dos sujeitos. Então,
teríamos de questionar a disciplina e as transdisciplinas. Poderíamos começar,
como Foucault sugeriu, a falar em saberes. E aí para ele a pintura, a arte de
Van Gogh, a poesia de Arthur e o teatro, o livro de Erasmo de Rotterdam, o “Dom
Quixote de la Mancha”, tudo isso é saber para ele. Essa foi a grande revolução
do Foucault na área das ciências, foi que ele começou a fazer uma história da
psicologia e da psiquiatria, e acabou fazendo história da loucura, porque não
caiu no engodo de ver a história da psiquiatra a partir da própria. Conseguiu
fazer uma história da loucura em que a psiquiatria é um dos saberes. Mostra que
há um saber sobre a loucura na arte: na poesia, na literatura, no senso comum,
no direito, em vários outros campos. Então, ele vai chamar isso de saber, sem
fazer distinção se é ciência ou não ciência. São saberes que constituem o
humano, o real, a nossa relação com o real. Por isso, fez uma arqueologia dos
saberes. Então, numa terminologia foucaultiana não podemos concordar com a
transdisciplinaridade, mesmo que saibamos o que está querendo dizer. Estou
falando de transversalidade dos saberes. Como é que posso navegar por vários
saberes e falar da loucura, pensar sobre a loucura mais numa idéia de
transversalidade, mas não como idéia de disciplina. Relacionando à literatura
um pouco mais, acho fundamental... Hoje, é o sonho não só do psiquiatra, como do cientista. O (Ilya Prigogine ), Prêmio
Nobel de Química em 1977 e (Isabelle Stengers ) escreveram o livro “A nova aliança”. Aliás, o (Prigogine)
é um dos caras mais fantásticos que eu conheço. A Universidade do Pará com a do
Rio Grande do Norte publicou um livro dele que chama “Razão e Emoção”. Ele fala
o tempo todo que não há cientista com capacidade de transformação do saber e da
visão que a sociedade tem de mundo se não conseguir entender o que diz a
literatura sobre o humano, o teatro. Fala inclusive que para entender certos
movimentos que ele vê na bioquímica em microscópio, ele precisou do teatro,
para entender certas articulações do corpo... Então, a literatura não é só
entretenimento, é constituinte da nossa forma de entendimento da vida, dos
sujeitos e do humano.
Dom Quixote - Gustave Doré |
Até que ponto a arte nos
salva de nós mesmos e do espaço em que vivemos?
Amarante
– É fundamental que a gente tenha a visão de que a arte é constituinte. Há a visão
de que arte é aquele lazer que você faz no domingo, não que ela ajuda na
construção permanente de como eu lido com a vida. Essa é a dimensão que a gente
deveria ter, e não fazer esse deslocamento, de que a ciência está num lugar, o
da profissão, a arte está em outro local, meio ligado a lazer. A arte é
constituinte de toda nossa compreensão de mundo. Há muitos autores que dizem
que arte inova na possibilidade de criar coisas. O Atlan
(Henri) é prêmio internacional também,
fisicoquímico importante. Está no último livro dele, “Útero Artificial” ( Rio
de Janeiro:Editora Fiocruz; 2006. 128 pp.)
Ele fala da possibilidade muito próxima que a humanidade está de gerir seres
humanos totalmente artificiais. Já tivemos bebê proveta. Mas a ovulação tem que
ser no corpo da mulher. Ele diz que falta muito pouco para se chegar ao útero
artificial. Já há as condições previstas. Falta chegar à técnica. Mas como ele
faz análise dos mitos das ciências e da possibilidade de transformar em
prática, está muito próximo. E nisso ele faz uma visão de futuro absolutamente
preocupante. Quando se começar a controlar a gênese, pode-se transformá-la em
questão de Estado. Então, para se ter filho tem que ter autorização do Estado. Começa
a falar da questão de controle raça, de evitação de doenças e de uma série de
questões sociais e políticas que vão acontecer. E da própria sexualidade. Será
que a sexualidade é para sempre na humanidade? No momento em que se dispensá-la
para haver procriação, ela vai ter papel completamente diferente. Você está
lendo isso, parece que está lendo um livro de ficção científica. É um cientista.
Aí, ele fala, no começo: “Não se assuste.” O trabalho de Aldous Huxley, “Admirável
Mundo Novo”, foi inspirado num cientista a que ele assistiu, leu e cita. Foi Haldane (John B.) que fez conferência famosa em 1922, falando dessas
mudanças no mundo, do big brother, da possibilidade de controle social, das
populações, das castas e tudo da ciência. Então, a aproximação entre literatura
e ciência tem muito mais do que mera visão de lazer. “O Alienista”, por
exemplo, é uma crítica à psiquiatria que antecipou em 100 anos a reforma
psiquiátrica. Tudo o que a gente fala está lá: de perto ninguém é normal, o
poder institucional da psiquiatria. Pergunta de Foucault: como uma ciência com tão
pouco teor científico, comprobalidade e verificabilidade tem tanto poder? Poder
de encarcerar pessoas para o resto da vida etc. Tudo isso está em “O
Alienista”.
O Alienista - Machado de Assis ILUSTRAÇÕES DE PORTINARI, 1948 |