A Revista Banzeiro apresenta o conto Luzeiro, de James Frederico Rocha
Coelho. Natural de Carolina – MA, James é formado em Letras e Direito. Em 1989,
publicou o romance Quarto 16. O conto
Luzeiro faz parte do livro Histórias Civilizadas. Goiânia: América,
2015.
LUZEIRO
Passados alguns dias das mortes e
Poliana e Francisca, e estando eu revirando um copo de gim no terraço da casa
de meus pais, purgando minhas dores enquanto a madrugada atravessava o casario
do outro lado da rua, resolvi viajar no dia seguinte para qualquer lugar e ali
esperar de alguma forma que o tempo aliviasse a grande ausência das duas, minha
mulher e minha filha.
No dia seguinte, conversando com
meu pai, ele recomendou o Retiro, fazenda há algum tempo abandonada por força
de uma disputa judicial. Não posso explicar a sugestão do meu pai, justo aquele
lugar, mas talvez se devesse à estreita relação da família com aquele pedaço de
terra. Quando crianças, passávamos ali nossas férias de fim de ano, que iam de
dezembro a fevereiro. Ali a família viu nascer e morrer muita gente, gozou e
amargou os acontecimentos velhos e os acontecimentos novos e grande parte do
que construiu nosso passado e deu cheiro próprio ao nosso presente. No mesmo
dia minha mãe deu sua opinião. Não concordava com a viagem, com o lugar, ou com
qualquer iniciativa que me separasse dela naquele momento. Alegou o abandono do
lugar, a falta de alguém que ajeitasse minha comida, minha roupa, e mais o perigo
de ficar sozinho num lugar sob litígio. Mas seus esforços, e ela não soube
disso, só reforçaram em mim o desejo de me isolar, de me enfurnar naquele lugar
– solidão certa.
Parti no dia seguinte. Segui de
automóvel até o sopé da serra, onde aluguei um cavalo. A trilha mudara
drasticamente e estava irreconhecível, considerando minha memória de infância:
os antigos capões de mato ralearam e as erosões carcomeram as encostas. Os
brejos, antes densos e úmidos, agora eram escaras frágeis e devastadas.
O animal trotava rente à extensão
da cerca, com uma preguiça solene, parecia uma criatura certa de tudo, sequer
cabeceava quando eu em desaviso puxava a rédea de sopetão – primeira grande
lição, pois eu estava vindo do mundo do ruído, do grito e dos gestos cuidadosamente
pensados e premeditados.
Quando a tarde caía, o rubro
violeta do sol poente desceu devagarinho entre as touceiras verdes do pasto
abandonado, pasto de colonião, e aquela cor bonita e aquele momento bonito
amansavam em mim a grande dor da perda, a angústia desenfreada de quem não acha
lugar no mundo, nem quando o sono vem. Os piados nos capões de mato eram as
palavras da jaó, da fogo-pagou, das sangues-de-boi, e pra cá, no descampado, o
gargolejo dos caborés, girando suas cabeças em trezentos e sessenta graus, como se mostrando cientes do desenrolar
completo do mundo, em todas as direções, desde o buraco miúdo no cupim, abaixo,
até o voo alto do gavião, acima, ou no passo rasteiro da cobra sob o capim, vizinha.
Quando avistei a sede da propriedade,
um pouco escondida por detrás dos mangueirais, meus mangueirais, a penumbra já
despencava no tempo e no espaço. Um bando de tetéus anunciou ao lugar ermo a
chegada de visita. Apeei e desencilhei a montaria, tocando-a em direção ao que
no passado fora uma bela pastagem, para além das cercas destruídas. Não entrei
de vez na casa velha, não tive coragem, antes andei pelo terreiro em círculo,
em ziguezague, de todos os modos, de uma ponta a outra, qual um peru
embriagado, olhos nas mangueiras, num antigo limoeiro de que eu lembrava
nitidamente, nas jaqueiras, e mais adiante na extremidade tomada pelo mato do
antigo campo de pouso. A barriga reclamou, lembrei que não almoçara. Catei
gravetos e pedaços de cerca, depois tornei a olhar a casa, indeciso, mas empurrei
a porta de talos de buriti e ela rangeu, mas abriu sem dificuldades. Lá dentro
as paredes esfumaçadas, veios negros aqui e acolá, e ao canto, embaixo do
paiol, as varas de matula. Recostei-me no esteio do centro do salão, onde
fiquei algum tempo quieto, o corpo lasso, revendo imagens, sentindo os cheiros
e até ouvindo uma ou outra voz, o rádio na boca da noite, Voz da América, o
anúncio de temporal lá fora e até o ranger da porta sustentada pelas cordas de
embira, açoitada pela saraivada de chuva forte que chegava.
Reabasteci uma lamparina antiga que
estava pendurada numa escápula. O pavio mesmo ressecado ainda pegou fogo e o
salão recebeu a luz com timidez, pois lá de fora ainda vinha um resto de sol.
Indiferentes à minha presença, tranquilos, os ratos subiam e desciam pelo
tapume lateral do paiol, como que desavisados do fim das colheitas e do
abandono da fazenda. Ajeitei os mantimentos na prateleira empoeirada e fui para
a parte de trás da casa, acender o fogo no fogão antigo de barro e de trempe. Novamente
rebusquei fisionomias, casos, momentos e nomes. Revi calmamente a tia enrolando
bolo frito, que a gente chamava assim mesmo antes de fritar, os filhotinhos de
sapo pulando debaixo das duas fileiras frontais de goteiras do vão aberto que
separava a cozinha do resto da casa – não havia, mas eu ouvia o vento forte nas
árvores lá fora anunciando mais chuva, decerto porque foram momentos que nunca
esqueci, quando no fundo da rede sentia toda a proteção do mundo diante daquele
temporal rugindo lá fora. Enquanto fritava a carne e preparava o arroz,
coloquei no fogo o feijão para cozinhar, que me serviria do dia seguinte em
diante. Esticado na rede, esperei a carne fritar, o arroz cozinhar e o feijão
amolecer, como querendo segurar o tempo, rememorando. Não demorou e o vento de
chuva chegou de verdade, e muitas dores, de todos os naipes, agora saracoteavam
ao redor do lume.
Novo ainda, casei com mulher desta
terra. Casei por amor e não posso assegurar se era correspondido, embora as
circunstâncias e as regras tenham contribuído para acreditar que sim.
Não sei se procede remexer nessa
história que andou por conta tão somente dessas antigas questões: amor e morte.
Mas sendo dessas questões e apenas dessas questões que se fez o pedaço recente de minha vida, resolvi desafiar a
mesmice, mesmo sabendo que Deus talvez não quisesse inovar, tão cedo, quanto ao
amor e quanto à morte.
Pois então, casado e com muito amor
para dar, os primeiros tempos com Poliana pareceram, a mim, sem passado e sem
futuro. O tempo presente, à época, satisfazia-me por si só, bastava que
passasse da maneira como os fatos e as eventualidades passavam – tudo parecia
sob controle.
Acontecia também que a história
daquele amor, com relação a mim, e somente eu sabia disso, era curiosa – um
amor pequeno no início, quase insípido, que aos poucos foi crescendo, pois fui
aprendendo a medir, pelos atos e pelas palavras, os motivos e as intenções
reais de Poliana. A motivação dos atos e das palavras, essa era a métrica que
eu usava para prever e saber de minha mulher, sendo que os motivos dela num
determinado momento podiam ocasionar uma palavra exata, verdadeira, conforme o
acontecimento ou o sentimento, mas podiam ocasionar também uma palavra
exagerada, que inflava o mundo real, uma forma de defesa de Poliana, e também
podiam ocasionar uma palavra mal intencionada, mentirosa, que velava um
passado, um desejo ou uma intenção e, por último, podiam ser a razão de uma
palavra humilde, aquém da verdade real, uma verdade que teria grande chance de
beneficiá-la, e isso dizia vez em quando da eventual grandeza de Poliana. Essa
forma de conhecer reforçou meu amor por ela e meu pequeno amor inicial reforçou
essa forma de conhecer, de maneira que eu a amava cada vez mais, mesmo sabendo
que quase sempre seus atos e suas palavras diziam muito pouco da verdade real e
vinham de uma motivação velada, escondida. Esse amor esquisito, ao fim,
acontecia e era verdadeiro a seu modo, e me trazia alegria. Eu vivia tranquilo
naquele meio dúbio de verdades e mentiras, e ela não sabia que eu sabia que
para continuarmos juntos ela adequara ou calara muitas coisas que eram dela,
que eram de sua natureza mais profunda, de sua pulsão mais íntima.
Francisca, a filha, não demorou a
nascer. Naquele momento tornei a trabalhar com gosto e encarnei o espírito lato
do bom pai, do bom marido. Afastei-me de alguns amigos, como é natural nessas
situações, construí casa, progredi com o pé no chão e engendrei um respeitável
patrimônio. Quando minha filha completou três anos planejei a festa dos quinze.
Eu me alargava no tempo e andava à sua frente, como se tivesse adquirido aquela
boa vida à vista, inteira, no armazém da esquina, que vendia ao gosto do
freguês. Mas logo o credor desconhecido, que eu não fazia questão de saber de
quem se tratava, exigiu-a de volta e em troca me deu outra, torta e dolorida.
Poliana e Francisca perderam as
vidas num acidente de automóvel semana passada. Iam à capital submeter-se a
exames de rotina. Isso podia acontecer, daquele jeito, naquele momento ? Sei lá
! Agora, inerte nesta rede, olho para as borbulhas na panela destampada e
questiono a mesmice da morte, há séculos e séculos manietando essa nossa triste
e eterna condição, igual e feita só de dor – como a dor do paralítico, que tem
gosto de para sempre. Estou ainda submetido a ela por inteiro e espero a hora
marcada, que nem sei de que hora se trata nem se é marcada. Posso continuar
conformado ou posso me rebelar. Mas que tipo de rebelião seria essa, quando, de
que forma ? Aí parece estar o nó da questão, pois é quase certo que não tenho
meios para me rebelar. Caberia no máximo a birra de antecipar a hora, isso eu
posso fazer, só depende de mim, mas mesmo isso, desconfio, poderia ser o
desígnio superior que estivesse me convencendo a antecipar a hora da morte
quando na verdade estivesse me convencendo a suicidar-me porque aquela na
verdade seria a hora marcada. Retardar não posso, pois não posso afirmar: quero
morrer daqui a dois anos, logo após a copa do mundo de futebol. Não sei ao
certo de que serviriam esses pensamentos, pois não tenho o controle dessas
questões, mas atinei, dali a uma hora, depois de um sono conturbado, que podia
reencontrá-las logo, ainda em vida.
Se os mortos podem nos guiar pela
vida, que assim fosse – em sonhos, em palavras faladas, escritas, em sinais, de
qualquer jeito. Reencontrar aquelas duas mulheres, esse o grande desejo de
minha alma, de meu espírito.
O feijão cheirava bem, satisfaço o
estômago, mastigo com lentidão, sinto um prazer longínquo. Poliana e Francisca não desgrudam do meu espírito,
parecem duas retornadas que permanecem encostadas ao meu corpo. Posso sentir o cabelo de minha filha entre as
mãos, vejo minha mulher deitada na cama, nua, cabelos molhados, descansando do
banho.
O vento invade o postigo do paiol,
sacudindo a chama da lamparina. A dança da chama e a dança das sombras
transportam-me cabeça, tronco e membros. Sinto a dor da saudade em sua
plenitude. Cubro-me com as varandas da rede e daí a pouco flutuo entre o sono e
a vigília. Agora são formas diversas, deformadas, algumas enrugadas mesmo,
ocupando meu cérebro, tenho os olhos fechados. Alternando essas formas com as
figuras de minha mulher e de minha filha, às vezes a panela com feijão, sem
sequência, sensações que não tinham limites entre umas e outras, mixórdia. O
vento e a chuva esfriam o lugar e pelas frestas das paredes de pau a pique
entram feixes de luz quando pipocam lá fora os raios. Entram também o frio e o
som rasgado do mangueiral sacudindo, envergando-se sob os efeitos do mau tempo.
Acordo cedo, pelo postigo do paiol
se mostra um pedacinho de céu, está rubro e ainda misturado com um resto de
noite e intempérie. Ouço com clareza os sons da fazenda, sinto o cheiro do
lugar, o cheiro indefectível da terra molhada, que é um cheiro que há de estar
em todo mundo. As dores retornam ao meu peito. Salto da rede e vou para o
terreiro. Choro, mas é um choro estúpido, que não alivia. A convulsão
descontrolada e os soluços me dão raiva. Me mexo, saio, atravesso a porteira e
percorro descalço o campo de pouso. O capim molhado incomoda, mas continuo
andando. O estômago reclama, chega a roncar, mas não vou comer, não sentiria
prazer algum em comer, não me acrescentaria nada. Jejuar, isso sim, talvez
fosse a novidade e talvez fosse mais apropriado naquele momento – conhecer de
fato os limites do meu corpo. Poderia ser que o jejum aliviasse a saudade
monstruosa que me afligia. Continuei andando e quando o sol já ia alto cheguei
ao ribeirão onde antigamente banhávamos e pescávamos. Encostei-me a uma
sambaíba, aproveitando sua sombra, e com um graveto, de cócoras, desenhei na
argila o nome de Poliana, logo adiante o de Francisca, mais adiante o de minha
mulher novamente. Letras de todos os tipos, garrafais, redondas, deitadas,
itálicas e de forma, mas a precariedade daqueles sinais na argila me
incomodavam, com a primeira chuva
sumiriam. Puxei o canivete da cintura e inscrevi os nomes no tronco da árvore.
Daquela forma sim, sobreviveriam aos ataques renitentes das chuvas, do sol, dos
ventos e das cheias do ribeirão. Mas um dia, mesmo que demorasse, sumiriam
também. Com um muxoxo de ódio cuspi sobre as inscrições. A certeza das
finitudes me indignava. Se a morte fosse gente eu usaria a faca, a bala, ou a
transformaria numa massa informe, macilenta e morta, depois de inocular ali um
veneno implacável.
O sol quente não evitou uma
tremedeira inesperada, um suor frio e os dentes batendo como num ataque de
maleita brava. Levantei e caminhei apressado pela trilha antiga de areia branca
ladeada pelo capim alto, abandonado. Mas adiante, na curva que dava para o lado
esquerdo do curral, as modulações sonoras, belíssimas, do chico-preto. Mais
nostalgia, mais dor, mais desespero, tudo brotando e os nomes de Poliana de
Francisca flutuando no dia claro. Talvez a nostalgia fosse o fato de se estar
sentindo dor na alma do presente e na alma do passado, ou talvez fosse quando
retornamos e nos recusamos a prosseguir.
Escancarei a porta e voltei para a
rede. O suor e a tremedeira foram diminuindo. Muito distante, quase na linha do
horizonte, o Moreno, outeiro descampado de árvores retorcidas. Naquele monte
não havia mais nem sinal das palmeiras de buriti, onde catávamos pedras muito
bonitas, depois transformadas em bichos, currais e jogos – algumas eu guardava
para mim com cuidado, de tão bonitas que eram. O dia foi esquentando, minhas
costas esquentavam no contato com a rede. Tornei a levantar, fui para debaixo
das fruteiras chupar manga. Na parte dos fundos da cozinha o jirau despencava,
as urtigas cobrindo e o mato escondendo as varas roliças de angico. Inspecionei
o fogão a lenha que bem se conservara depois de anos de abandono. Uma cobra
ocre passeava sonolenta, beirando a cerca, nos limites de um tirirical. Depois
desses poucos minutos esquecido das duas mulheres, outra imagem retornou,
revolvendo o remanso precário que se dera como um lampejo, iluminado e rápido.
Na cumeeira da cozinha, pendurada pelos pés, balançava uma boneca de plástico
desbotado, qual pele descorada de gente morta. O vestido que a cobria estava
roto e tinha os globos oculares dependurados das órbitas vazias. Pontadas no
peito encurtaram a respiração, apoiei o corpo na mureta de taipa sem desviar os
olhos da boneca, cuja pele agora se movia e vertia sangue pisado, ela ainda
respirava, com muita dificuldade mas respirava, o corpo trucidado exalando
cheiro de éter, que me invadiu, encheu meus pulmões, atingiu a cabeça e nauseou
o estômago. A massa de manga madura subiu esôfago acima, corri para o pátio,
mão direita na boca, vomitei tudo. Com a cabeça recostada à mangueira senti as
lágrimas de ânsia de vômito escorrerem no rosto e as fibras da fruta obstruírem
as narinas. O estômago enroscava-se sob a força dos seguidos espasmos. A custo
fui à cacimba na descida para o brejo mais próximo e icei o balde enferrujado
com água. Ainda ofegante, lavei o rosto, enxaguei a boca, o gosto forte de
ferro, fruta e bílis na boca. Cansado, as pernas trêmulas, voltei para a rede.
Dormi.
Meu sono não fora muito diferente
do estado de vigília. As imagens dos corpos de Poliana e Francisca jogadas no fundo
da camioneta volveram, como volve um pelotão disciplinado. Havia momentos em
que o sonho condescendia e permitia que elas desfilassem vivas à minha frente,
em belos vestidos, segurando dois sorvetes apetitosos e coloridos. Depois
alternava, com cruel impiedade, impondo outra vez as reminiscências do
acidente, uma a uma. Tive naquele sonho, pela primeira vez, a consciência de
que dormia e de que sonhava, o que aumentava o desespero – a vida de carne e
osso dentro do sonho, que nem por isso deixava de ser vida de carne e osso, só
que agora posta dos dois lados, o que confundia e atribulava minhas percepções.
Num certo momento do sonho eu estava na praça, as duas mulheres circulando de
bicicletas, ali. Por minha particular convicção estavam vivas, mas eram, não
sei explicar, tênues e fortes ao mesmo tempo, como um fio numa teia de aranha.
Um grito chamando nossos nomes ecoou do outro lado daquela praça incompleta,
pois eu não podia enxergar exatamente suas dimensões e seus limites. Girei a
cabeça mas não via ninguém, só ouvia. Quis levantar do banco em que estava
sentado, passar entre Poliana e Francisca com a intenção de alcançar o dono
daquela voz, mas não conseguia – continuei grudado ao assento de cimento cru. A
voz soou outra vez: Ô de casa ! Em vão realizei um derradeiro esforço para
levantar daquele banco. Quando pulei da rede, sobressaltado com o sonho, a voz
soou pela quarta vez. Além da porta entreaberta, vi uma anca de cavalo castanho
e a barra de um gibão.
Um homem moreno, velho, barba rala
e pele gretada, provavelmente mais pela ação do sol que pela ação do tempo, me
estendeu a mão. Era magro e me igualava na altura. Possuía essa magreza rija
que é a marca da comida escassa e da labuta interminável na roça.
Cumprimentei-o e convidei para entrar, ele não aceitou, preferia ficar lá fora,
estava de passagem e no terreiro estava claro, agradável, com o vento rasteiro
da temporada de chuvas e o sol casual mais quente do que o normal. Tive a
impressão de que o conhecia de longa data, talvez por isso esquecemos as
apresentações. Sentamos no mourão que separava o terreiro do pátio da fazenda e
conversamos generalidades: as chuvas imensas e diluvianas deste inverno, a
estrada do governo que não chegava, etc. Ele estava passando, ia para as bandas
no rumo da cabeceira da pista de pouso, em direção às terras de Zé Indanha,
depois, ele falava, seguiria sem pressa pelo Vão da Cotia, até o Montana. Na
volta traria boiada para apascentar do outro lado do ribeirão principal que
limitava ao sul a nossa fazenda, até quando o estio chegasse, em maio. Conversa
avançada ele pronunciou meu nome completo, cadenciando a voz, como num ditado
da escola. Interrompi o que estava falando e perplexo perguntei com os olhos
quem era ele. Apresentou-se. Não foi subserviente quando me chamou de patrão e
perguntou se eu recordava dele, do seu nome, eu o conhecera trinta anos atrás,
segundo ele. Aos poucos, olhando fixamente seu semblante, lembrei vagamente de
um homem com boina de camurça verde, dessas de guerrilheiros latinos; recordei
uma família que chegara à fazenda sem nada, a não ser com um bando de cachorros
latindo, alguns perfurados por espinhos de quandú. Aos poucos minha memória foi
recuperando o acontecimento. Findo o esforço, depois de alguns instantes, a
ocasião e o nome me vieram num estalo. Seu Manoel ! disse. Apertei sua mão com
alegria. Na verdade era Seu Manoel Redondo, mas o Redondo ela não admitia, era
um apelido que deixava ele transtornado e foi disso que lembrei em primeira
mão. Depois da efusão e de mais um abraço, seguiram-se uma corrente de outras
lembranças e um rosário de comentários. Depois se seguiu outro estalo, e eu
perguntei: Não foi o senhor que morreu na travessia do João Aires, na cheia de
oitenta ? A resposta demorou, disse que morrera e ao mesmo tempo não morrera e
que aquela era uma história comprida, ia deixar para me contar noutra ocasião.
Não dei importância ao caso, um mal-entendido possivelmente. Convidei-o para
passarmos à cozinha. Mais tarde tiramos lenha e colocamos a comida no fogo - a
fumaça espalhou-se pelos quatro cantos da casa, me embriagando e enganando
minha dor por um momento. Aquela fumaça, o cheiro daquela fumaça era os
espectros inevitáveis de um e de outro conhecido, de um e de outro parente, de
seres humanos que iam reaparecendo aos poucos, agarrando-se às paredes, às
árvores, ao jogo de luzes, pois eles precisavam disso ou de um som, da palha
trançada, do caibro central, da banca de pote, e de muitas outras coisas mais
para emergirem diante de mim.
Quedo num canto, ouvindo Manoel
Redondo contar casos da fazenda, esticamos, atravessamos o lusco fusco
conversando e entramos pela noite escura adentro. Pelo adiantado da hora
ofereci o pernoite, ele esticou-se no chão de terra batida do salão, cabeça
recostada na forquilha do pote. Perguntei se trouxera rede, não trouxera. Em
seguida coloquei os pratos brancos esmaltados na mesa, trouxe a carne frita, o
arroz e a farinha para a mesa, mas ele, surpreendendo, disse que não queria
comer, estava sem fome. Não insisti , parecia-me inoportuno. Enquanto eu comia
ele levantou-se e saiu para o lado de fora, para o terreiro escuro. Farto,
devolvi as panelas à trempe e acendi um cigarro. Olhei pela porta aberta e
adiante e acima, muito distante, a lua semicoberta pelas nuvens de chuva,
lançava milhares de cordões de tímida claridade sobre os campos e a mata do
cerrado. Sentei na rede e balancei. Enquanto baforava, lembrava as náuseas e o
horror dos acontecimentos recentes. A visita daquele homem me ajudara, aliviara
o sofrimento e as tensões, talvez pelo rebuscamento dos casos de outros tempos.
Certo é que conversa puxara conversa, e isso servira de traça de roer solidão.
Pela porta aberta eu observava-o
circulando lá fora, um vulto empertigado que luzia quando atravessava uma
língua de luar derramada ao pé do mourão. Demorou dois ou três cigarros até que
ele retornasse ao salão. Sentou-se a um canto, agora estava mudo. Procurei seus
olhos mas eles também estavam mudos e naturalmente exigiam silêncio. Titubeei
ao tentar falar uma palavra, mas o som saiu espremido, para dentro. Me
aquietei, levantei os olhos para o teto de palha trançada e acendi outro
cigarro. Depois ele saiu outra vez para o terreiro e agora circulava, cabeça
ereta. A sua figura brilhava quando atravessava a língua de luz da lua ao pé do
mourão.
Ajeitei o resto de carvão no canto,
bati a trempe do lado de fora da meia parede e retornei à rede. O vento
arreganhara a porta, e nuvens pesadas intumesciam o céu. O velho continuava a
circular, resignado ou obstinado, não sei ao certo. Aquele movimento dele foi
provocando em mim uma tonteira que ia e voltava, retornei à rede. Agora o vento
arreganhara a porta completamente, foi quando ele deu para olhar para dentro,
ao passar num certo ponto do seu trajeto circular. A distância e a pouca luz não
me deixavam ver sua face claramente, mas senti, sem que ele tivesse falado uma
palavra, que ele queria me dizer qualquer coisa. Fixei os olhos nele e depois
de alguns minutos saltei da rede com o cigarro queimando meus dedos –
aterrorizado, um grito preso na garganta. Não sabia se enlouquecia - confirmei
na volta do trajeto circular o que acreditava ter visto na ida, quando ele
atravessara aquela língua de luz da lua – o velho não tinha, não fazia sombra.
Não sei se também ele sentira minha reação, pois ele desarmou os ombros,
parecendo descansar por um instante. Houvera dito algumas palavras, a seu modo,
que eu não ouvi. O pavor tomara meu estômago, minha espinha e o resto. Ele
retornou e sentou a um canto do salão. Continuei na rede, as pernas tremiam,
não tive nem forças para tirar os olhos de cima dele. O velho sacou o canivete
da algibeira e passou-o de uma mão para a outra, alisando a lâmina com a ponta
do dedo. Eu arregalei os olhos, senti náuseas, o estômago regurgitou o feijão,
amargando a boca, provocando uma salivação descontrolada.
Ainda estava dominado por aquele
medo superior, quando o velho desenhou no chão de terra batida com a ponta do
canivete as primeiras letras de um nome. Tracejava com esmero e elegância numa
caligrafia antiga. Primeiro a letra p, depois o o, e, por fim, completado,
assoletrei com balbucios o nome de minha mulher. Aquilo foi como um soco de cem
quilos no meu estômago. Estrebuchei na rede, o grito não saia, queria sair
dali, correr, atravessar o terreiro, passar pelo pátio, chegar ao campo de
pouso e o que viesse depois, mas não saía do lugar. Minha camisa encharcou e
senti nos lábios o sal do suor que escorria pelo rosto.
Quando tudo parecia não acabar, o
velho, devolvendo o canivete à algibeira, sorriu. Não compreendi o sorriso
despropositado, que podia mesmo ser de sarcasmo, mas não era - ele me olhou nos
olhos e o sorriso era um sorriso qualquer, descompromissado, mas sincero.
Aos poucos recuperei minhas forças,
levantei e fui até a porta, com a mão apoiando-se à mureta de pau a pique. O
vento na camisa molhada esfriava o corpo. Sem virar o rosto, sem encarar o
velho de frente, perguntei por minha mulher e por minha filha. Não respondeu.
Retornei à rede e em seguida repeti a pergunta, dessa vez com a voz alterada.
Ele continuava impassível, me observando.
Depois, com os olhos nos meus ele
falou de morte, o que ia ao encontro de minhas reflexões de dois dias antes.
Envolveu-me com palavras que eu queria ouvir. Disse que a morte era igual há
tanto tempo, para qualquer um, que talvez tivesse chegado a hora de se tornar
um acontecimento improvável, senão impossível. A morte, essa obra de Deus, é
cínica, é mentirosa, pois separa dois tempos de uma só obra, que por justiça
deveriam estar agarrados um ao outro. Talvez fosse uma obra de arte que, por
não ser inteiriça, perdesse a razão de ser. A morte permanece às custas de
nossos limites e de nossa miséria, mas mesmo aí Deus foi grande o bastante para
ser divinamente cínico e autoritário. Não sabe a maioria das gentes que Ele, em
sua superior sabedoria, nos deu o poder de transgredi-la, opção pouco
conhecida, e por isso pouco usufruída. O velho disse que eu não me conformasse,
como queria minha mãe, que não desse a mão à palmatória, que não aceitasse o
jugo dessa vassalagem odiosa.
Enquanto falou tudo isso o velho o
fazia com uma indignação raivosa, e eu balançava a cabeça que sim, que tudo o
que fora dito estava certo, e eu não era um homem afeito a palavras nem
atentava para a vastidão escondida além e sob elas – para ser sincero, até me
aborreciam vez em quando. Mas também sabia da mágica delas, e tanto sabia que
as pragas rogadas pelo velho me ensandeceram, foram fundo, e eu acreditei mesmo
que podia subverter a ordem natural do mundo - mais do que isso, acreditei no
guerreiro da vida sem morte, sem dobras, sem fendas, sem limites. Mas fazer o
quê ? perguntei. Ignore a morte, ele disse. Como ? perguntei outra vez.
Junte-se à sua mulher e à sua filha, desconheça a ordem das coisas.
Ele pediu que eu saísse para o
terreiro, a lua ainda lutava para se
mostrar entre as nuvens pesadas de chuva. Senti um tremor descontrolado, pois à
frente estava a mão da boneca dependurada do teto, mão de gente passada. Chamou
a atenção outra vez a réstia de luz do luar ao pé do mourão ! O velho pediu que
eu fixasse meu olhar ali e disse que daquele lugar, com força de espírito, eu
haveria de resgatar a minha mulher e minha filha. Por diante, ele completou,
por mais alguns dias, não te ocupes de outra coisa a não ser desse pedaço de
luz que haverá de se achar ao pé do mourão todos os dias, quando a noite cair.
O velho girou o corpo, compôs a
dobra do gibão à altura do umbigo,
arrochou a cilha enrugando o bucho do Barroquinha, cavalo antigo, meu
preferido da fazenda, saltou para a montaria e saiu a trote na direção do campo
de pouso, sem que eu sequer tivesse tempo de questionar a existência daquele
cavalo de trinta anos atrás. Muito menos me cumprimentou ao se despedir, nem
olhou para trás. Fiquei ali, confuso, parado, olhos perdidos no descampado à minha
frente. O velho e o Barroquinha desapareceram além do horizonte de sombras do
chapadão noturno.
Só peguei no sono quando a noite já
servia ao cerrado o sol e suas claridades amarelo fogo. Sonhei sonhos bons e
sonhos maus, devo ter me revirado muito na rede. Quando acordei o sol ia alto,
as moscas pontilhando o cobertor. Fiz questão de não rememorar os sonhos, como
de hábito, antes ocupei o pensamento com as palavras do velho. Catei na sacola
o calção de banho e desci para o ribeirão, a cabeça doendo. A umidade do capim refrescou-me os pés e
melhorou meu humor. Senti sede quando ouvi o barulho do ribeirão rolando nas
pedras, apressei os passos. A imersão na água cristalina, os pés afundados na
areia clara, dourada, o silêncio, tudo serviu para curar a dor de cabeça e
restaurar o meu corpo, diminuindo o cansaço.
No meio da tarde daquele dia o meu
pai desceu de um cavalo alugado no pátio da fazenda. Estava sozinho e trazia
sacolas com mantimentos. Quando entramos para o salão eu me apressei em
esclarecer que desejava continuar só, ele não se contrapôs. Inspecionou com
pressa os currais e as cercas da manga lateral, onde ficava o cemitério, e
partiu com um aceno comedido, visivelmente não concordava que eu continuasse na
fazenda. Joguei as sacolas no paiol sem sequer olhar o que tinham dentro.
Mais tarde senti uma agonia
intermitente, o tempo travara, o dia estava quente e tudo agora amortecia meus
ânimos. Esperei a noite e o pedaço de luz que talvez se derramasse outra vez ao
pé do mourão, como um náufrago que esperasse uma mão salvadora. Deitei na rede,
andei pelas veredas que levavam aos grotões e aos limites da propriedade, fumei
muito, observei pássaros e identifiquei árvores, a curicaca de bico majestoso,
os pintassilgos vida inteira de canto, amarelo e preto, um preto que ia muito
além do preto de praxe, o comum, as pipiras, que me pareciam pássaros ansiosos,
inquietas por natureza, pouco canto e muita ação, não se prestavam às gaiolas –
o pé de pequi sozinho, em frente ao curral, circunspecto, esperando a hora de
derramar ao chão os frutos para se servir no almoço ou, de resto, para fazer
sabão - mais longe, à esquerda, os buritizais, signos de água limpa, clara e
fria, com suas palmas de entreventos, verde profundo vazado nos buritis daquele
vermelho quase negro, escamado. Acompanhei o sol enquanto cruzava a cuia do
céu, minuto por minuto.
A noite chegou, sentado no batente
da porta acompanhei a lua, que já nasceu encorpada, para os lados do Santo
Antônio, brilhando um absurdo de brilho que iluminou o horizonte até onde a
vista dava. Segui com os olhos algumas nuvens esparsas e escuras, que talvez
anunciassem chuva noite adentro. Não demorou e a lua se mostrava ora nua, ora
velada. Uma ou duas horas depois a lua, aos poucos, foi projetando sua espada
de luz que eu tanto esperava ao redor do mourão. Fixei meu olhar naquele ponto
e, concentrado, orando com ansiedade, desejei reencontrar minha mulher e minha
filha. Foram horas com os braços cruzados, observando a claridade do luar
naquele ponto. Na madrugada senti medo, mas não arredei pé. Tarde, no meio da
madrugada, vi sombras projetadas no círculo de claridade. Cansado, fui tomado
de uma euforia doce, comedida. Transportado de mim mesmo, e era isso que
parecia ser, vi com nitidez e com uma certa calma inesperada sombras frágeis,
ondulantes e vacilantes de uma cabeça, talvez a forma de um tronco mais
adiante, membros, um ou outro não claramente identificados. Levantei e me
aproximei, mas as sombras dissolveram-se tão ligeiro como haviam aparecido.
Recuei horrorizado, as pernas trêmulas; as sombras no círculo de luz ao pé do
mourão pareciam ter vida própria.
Quando acordei, o sol esquentava
meu rosto. Dormira ao pé do batente, as costas doíam. Olhei para o pé do
mourão, a manhã reverberava na terra branca do terreiro. Uma fome longínqua
beliscou o estômago, mas não acendi o fogo, dispensei o quebra-jejum. Desci
para o ribeirão, a água fria diminuiu a dor nas costas, eu estava leve e oco. A
chuva anunciada caiu perto de meio dia. Dormi. Naquela tarde tive o sonho óbvio,
pleno de sombras, silhuetas e projeções luminosas com formas e traços de minha
mulher e de minha filha. Não apareciam inteiras, claramente expostas, com as
faces de frente, à mostra, mas somente sugeridas e no entanto eu sabia
tratar-se de Poliana e Francisca.
No fim da tarde, garimpando os
sonhos que tivera, me senti fraco, como se as duas jamais pudessem colocar-se
ao meu alcance. Saí para o pátio, acendi um cigarro, e à luz do dia olhei outra
vez para o mourão, que aquela hora era apenas uma peça comum de madeira
cinzenta e carcomida, com gretas profundas cavadas pelo tempo. No chão, ao seu
redor, a terra branca e algumas folhas secas decolando ou pousando conforme o
vento que vinha dos brejos.
A noite chegou com um céu limpo,
céu azul de dia posto na noite, emprestado à noite, Marte cintilando encarnado.
Uma beirada da lua logo apareceu por trás do capão de mato, depois destampou
completa, amarelo vertigem, lua cheia do sertão. Sentei no chão ao pé da
parede, pelo lado de fora. Depois, quando levantei, a calça arriou chegando à
linha abaixo da cintura - emagrecera muito. Para me recompor usei embira em vez
do cinto. Cheguei para perto do círculo de claridade que já se formara. Lembrei
de todos e chorei. Acendi o cigarro e sentei, pernas cruzadas, sem tirar os
olhos do pé do mourão, porque não aguentava em pé. Nada se deu até a lua
alcançar o ponto do céu sobre minha cabeça. Meu corpo agora era um elemento de
carne volátil, pela fome ou talvez pelo desmedido desejo de rever minha mulher
e minha filha, ou talvez pela obcecada concentração naquele círculo de
claridade.
As sombras reapareceram,
bruxuleantes no início, depois mais densas e firmes. Senti uma ponta de medo.
As sombras tinham cheiro e sussurravam algumas
palavras distantes e ininteligíveis, embora num ou noutro momento fossem
distorcidas e remotas. Cheiros e vozes de minha casa, um resto de razão da
minha clarividência pessoal, agora despertada, resgatou outras memórias. As
sombras não ultrapassavam os limites do círculo iluminado. Caminhei em sua
direção, cambaleante e inseguro. Não estava a cinco metros do lugar quando as
sombras altearam-se, humanizaram-se, caminharam para fora do círculo e foram na
direção oposta, me abandonaram; Poliana e Francisca, de costas, afastando-se na
direção do campo de pouso. Gesto
impotente e solitário, levantei o braço para acenar, para pedir que
retornassem, mas não havia nem voz, nem passos, nem mão para acenar. Acredito
que naquele momento desfaleci.
No outro dia acordei cedo. Dali do
chão, onde estivera estendido, olhei para o mourão e suas imediações – àquela
hora era apenas um ícone do meu patético desespero, que no entanto se fazia
ardente quando eu fechava os olhos e revia aquele pedaço insignificante de
madeira suscitando as presenças de minha mulher e de minha filha ou a sombra
das duas, como tivera acontecido. Desejei minhas mortas, desejei a noite. Que a
noite retornasse trazendo as duas, pois elas estavam reclusas além do ocaso do
dia.
Minhas roupas fediam e do calor da
hora brotava suor das dobras do corpo. Desci para o rio, ia para três dias sem
comer, fumava muito, dia e noite. Desci as sacolas de mantimentos do paiol e
procurei por mais cigarros. Descendo pela vereda quase encoberta olhei o céu,
um céu bonito, que seria muito mais prazeroso se eu não estivesse carregando
tanta angústia d’alma – os ventos de maio e junho que talvez eu não pudesse
esperar eram o contraponto, por sua imensa transparência e claridade.
Um só lugar são muitos, o mundo são
muitos, qualquer barulhinho doce ou estertor ou virada de cor da natureza são
muitos. O mesmo céu de maio agora era um céu rajado de listras cinzas e negras,
não tinha o gosto da sembereba de cajá, mas de papa de mastruz, gosto de
consumição e eu desejava viajar sem mim, o amor abalando, somos o amor e a
morte e nem percebemos que a vida não existe.
O sol arremeteu de vez por detrás
de um capão de mato. A noite levantou-se em toda sua majestade e amplidão,
límpida como um cristal vário e lapidado com cuidado. As faiscações, de tantas,
confundiam-se, e o céu era mesmo um infinito descampado, um luzeiro sem fim.
Deitei no terreiro, o corpo molhado mas limpo. Quando a lua despontou virei a
cabeça e olhei o pé do mourão. À medida que ela subia curiosamente eu ficava
menos angustiado. Quando ela alcançou o ponto do céu acima da cabeceira do
campo de pouso eu estava eufórico e surgiram as primeiras nuvens encharcadas e
as primeiras sombras - das mangueiras, das cercas, e uma enorme rente ao oitão
da casa. Logo ela clareou com o máximo de força o espaço ao redor do mourão.
Qual o fascínio do olho da cobra, para quem é passarinho, a língua de fogo da
luz da lua me atraía e decerto faiscava nas profundezas de minhas pupilas.
Levantado, os passos saíam arrastados, o calção dobrando-se ao vento, que agora
chegava com força, anunciando chuva para mais tarde. O peso do corpo descera
terra a dentro, rumei para adiante, leve, depois quase flutuando, não sentia as
duas extremidades agora sobrantes, inapropriadas, que desciam do meu corpo, os
braços. As pernas, como se fossem dois cortes de véus, estavam despedindo-se de
mim. As primeiras sombras apareceram no espaço de claridade ao pé do mourão,
insinuando-se naquele espaço exíguo, serenas e sem pressa. O vento delineou
ombros e ancas, juntas minha mulher e minha filha surgiram daquele pedaço de
terra iluminado, um milagre visível, por certo também palpável. Ouvi o som do
que poderia muito bem ser minha gargalhada, mas não estava certo disso. Depois
dei-me conta que era mesmo a minha gargalhada, sem dúvida ! Eu a reconheceria
em qualquer canto deste mundo, pois era grave e consumava-se com uma espécie de
apito esganiçado. Havia também que aquela gargalhada não era um som natural,
não era audível, como por lei da natureza deveria ser, e chegava-se como um
breve surto de memória, que também, por sua vez, desaparecia aos poucos. Minha
mulher trajava um vestido azul seu que era meu predileto e não sorria como
deveriam sorrir todos os ressuscitados. Francisca descansava a cabeça nos
braços da mãe e a réstia de luz ao pé do
mourão era uma pérola incandescente. As duas me receberam como quem
recebe marido e pai para jantar, com o carinho comedido do cotidiano.
Acariciei-as. Cheiravam aos perfumes de família, os antigos perfumes que eram
pequenas glórias dos nossos dias e de nossas noites. Agora eu tinha a certeza
que estava bem próximo delas e não obstante o cansaço, eu não ofegava ou suava.
Abaixei a cabeça e olhei ao redor, transido, pois eu vi a luz trespassando-me.
Meu corpo não tinha, não fazia sombra.