Itaney Campos - Fonte: ASMEGO |
Geografia Lírica: A Poética do Espaço
A Revista Banzeiro apresenta a Seleta de Poemas do Escritor Goiano Itaney Francisco Campos. Com apurada percepção estética, o Poeta goiano, que também é Desembargador, traça sua arquitetura poética ao empreender viagem pela geografia lírica de toda uma vida. Ao refazer os caminhos da infância, na cidade natal, Uruaçu, revisita a casa paterna, reencontra-se com o menino que foi e faz o seu inventário poético. São muitos os lugares, os olhares, o imaginário de um cosmopolita que flana pelas ruas de New York, Madrid, Lisboa, Angola, compondo uma poética do espaço. O Poeta não se rende ao efêmero, é um sobrevivente legendário a planger sua Cantiga de Viagem. Os poemas aqui reunidos, com exceção de New York, que faz parte da Antologia Goyaz (2015), Organizada pelo poeta Adalberto de Queiroz, compõem a obra Inventário do Abstrato. Goiânia: Kelps/UCG, 2009.
Infância
Frederick Dielman, The Mora Players
Etching, 1883
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Onde morávamos
duas janelas
altas e paralelas
abriam-se para o medo.
Entulhos e detritos
pelas frestas da porta
diziam da morta
que não conhecemos.
Nos fundos, um quintal
perdia-se em cavernas
profundas e eternas
e em culpa venial.
Monótono e plangente
o pranto da chuva
na calha; uma viúva
vagava soturnamente.
Pendurados na janela
colhíamos sonhos na mão,
um papudo com seu papo
vivia em nossa canção.
Onde morávamos,
escadas sem corrimão
precipitavam-se em campos
férteis de assombração.
In. Inventário do Abstrato. Goiânia: UCG/KELPS, 2009, p17.
A Uruaçu
Não és um nome apenas,
no dicionário incrustado,
és muito de minhas penas
nas viagens merencórias
em que às vezes me percorro;
Não és pra mim aquele outro
município, demarcação,
produtor de amianto,
és pausa do meu pranto,
a duras penas contido;
nem mera reminiscência
de indígena língua morta,
és a duradoura porta
de perene adolescência,
ou a navalha que corta
o tenuíssimo cordão
que me aprisiona ao concreto.
és o lusco, lusco-fusco
deste moço introvertido,
ressentido de si mesmo,
sem porque, ressabiado;
frutificas o futuro
do germe do meu passado
e te limitas no meu
coração ilimitado.
In. Inventário do Abstrato. Goiânia: UCG/KELPS, 2009, p.15.
Em Lisboa
Lisboa - Fonte: Foto Fetiche |
Como que retorna à casa da infância
não frequentada, mas vista em sonhos,
confiro as marcas humanas nos postigos cerrados
da cidade de Lisboa.
Circulo por suas ruas estreitas,
vagando por livrarias, empórios, cafeterias
entre sobrados sonolentos e a opulência dos reis.
No entanto, brilha o sol
por sobre o Tejo sereno.
Os grandes navegadores dormem seu sono eterno
nas praças onde bando de pombas arrulham e
saltitam de espanto.
Negros orgulhosos e belos
desfilam (que gritam no seu silêncio
ao passado de surrupio
e de sangue que marca a sua história?)
O Marquês de Pombal sossega os seus leões
e contempla o seu pedestal
a Avenida da Liberdade, descendo célere rumo ao mar.
A melancolia do fado
escapa de um beco perdido,
e das dores do sal e do azar
mas resta a fragrância suave
de cravos
despejando-se das floreiras.
O ruído irritante das buzinas impacientes
dos motoristas de táxis
pelas ruas torturantes
não retiram da antiga Lisboa
o ar melancólico e tranquilo
de quem descansa em sossego à beira do Tejo formoso...
Onde D. Sebastião? Onde a gentil Inês de Castro?
Onde a luz dos olhos cegos da angústia de Castilho?
O silêncio gesta os versos do rei poeta D. Diniz.
De repente o vulto esquivo do Poeta Fernando Pessoa
em seu sobretudo etéreo
cruza a praça do Comércio
evolando-se no Tejo, em busca do seu eu perdido.
In. Inventário do Abstrato. Goiânia: UCG/KELPS, 2009, p30.
Viagem Para Angola
Face - Fonte:Black Faces |
Primeiro,
tu me fizeste te amar com o desespero
dos
náufragos,
abissalmente,
como
o sol ao amanhecer do dia,
e
então sem mais aquela
disseste,
subitamente,
que
te irias
para
Angola,
e
quem sabe se retornarias?
E
me disseste das crianças
da
África
nos
lixos, comendo a morte,
dos
velhos sem braços, sem membros,
os
olhos secos de prantos,
das
cidades e sua aura de miséria,
crescendo
como um cancro, ou um câncer,
e
eu senti doendo
a
inutilidade dos versos, que são como
ganidos
dispersos
neste
mundo unido pelo sofrimento.
E
lembrei-me da canção
da
garota de Angola
e
seu chocalho dependurado,
e
do movimento para libertação de Angola
e
do poeta Agostinho neto
que
fez do seu verso uma cantiga e um archote
para
libertação.
E
de Leopold Sengnor, o terno poeta
das
hóstias negras, semeador de nações livres, e dos
sonhos
do socialismo,
e
do branco Fernando de Castro Soromenho
que
cantou como ninguém a beleza
da
negritude
e
dos homens sem caminhos.
E
lembrei-me que o sal desse mar de Portugal
é
um pouco também do sal
das
lágrima de Luanda.
E
tudo fluiu por minha mente
como
um filme oito milímetros
um
documentário delirante,
com
sua sucessão vertiginosa de imagens:
os
negros, negros, negros,
com
seus dentes brancos, brancos,
e seus
olhares entristecidos
e
suas crianças magérrimas.
Oh
o Zaire, oh, Biafra, oh, Senegal, e suas aldeias de fogo
e
sangue
oh
nossos avós renegados, com seus ombros
chicoteados,
suas algemas
perenes,
suas
guerra intermináveis como um legado
maldito
dos impérios coloniais.
Seus
deuses mal conhecidos, suas tribos tão
Semelhante.
E
tu disseste, como num sonho,
estou
indo para Angola,
como
se dissesse estou indo ali na esquina e já volto.
E
todos os sonhos pairaram por um instante no ar, para
depois
se
esborracharem
no
piso árido do real, Ah, os sonhos, que ridículos, de
pueris,
com tanto
sangue esguichando
das
veias da velha mãe.
Das
suas faces tão retalhadas
entre
França e Portugal, entre Itália
e
Alemanha, entre Inglaterra e Bélgica,
entre
Espanha e Portugal...
Ah,
os tristes trópicos desertos
com
suas negras sensuais
sua
flora luxuriante
e
as savanas com sua fauna
de
trepidante vitalidade.
Tu
irás por Congo Belga, passarás em Madagascar, ou
ficarás
em
Marrocos,
e só mais tarde em Moçambique?
Tu
lembrarás deste pobre
quando
vires Bujumbura
ou
talvez Addis Abeba ou a formosa Luanda
da
janela do avião?
Se
ao longe vires Casablanca
lembra-te
do nosso sonho, desde o começo impossível,
como
o do
romance
tão célebre,
desce
então em Kampala
a
capital de Uganda, ou em Dar es Salaam, a cidade da Tanzânia
e
saúda Olorum, com uma máscara dos Balunda,
ao
ritmo do atabaque,
bem
como o espírito das águas da sociedade secreta
e
dos altares do Sekuapu.
Saúda
Desmond Tutu.
e diz
que aqui exilado
meu
sangue clama saudades
e
dá vivas a Amílcar Cabral.
E
tu disseste vou pra Angola
como
se dissesse “vou ali comprar cigarros”
e um
grito de angústia rebentou
atávico
em minha memória...
Lembranças
a Nelson Mandela!...
In. Inventário do Abstrato. Goiânia: UCG/KELPS, 2009, p.55-58.
Elegia a Nova York
New
York City, New York City
não
me seduzirás, ainda que me ofereças
a polpa
suculenta de tuas entranhas umedecidas
onde
flui, no azul, a música de jazz
sobrepondo-se
à confusão hipnotizante de tuas retas avenidas.
Não
me cegarás com tuas fachadas envidraçadas
onde
pássaros perdidos se suicidam.
Nem
me farás perder o juízo
com
alarido das vozes e o babel de língual
que
se erguem em meio aos gritos, anúncios
luminosos,
estátuas vivas
e o
irritante ruído das buzinas dos teus automóveis em procissão.
E
ainda que te faças cálida
na
intimidade do teu crepúsculo
encarnado
nas águas serenas do Hudson,
não
irei além do Soho, nem do sonho,
porque
as sombras e as cicatrizes
permanecem
como pesadelos
nas
ruas desertas do Bronx.
Já
não me apetecem, big NYC,
o
esplendor démodé das loiras
platinadas
nem
a voluptuosa exuberância da negritude
que
se exibe no multicolorido do teu espetáculo cotidiano.
Nos
braços evanescentes de tua aurora de néon,
jazem
mortos os lúcidos poetas
que
vagavam outrora pelos pubs e praças do Village.
Eles
que vagavam, como profetas ordenadores,
em
meio à neblina do dia precoce
vagando
pelas ruas boêmias e sonolentas
Indiferentes
ao ruído tonitroante e caótico
da
multidão sôfrega, se entregando ao trabalho inútil,
Aos
labores do nada.
Aqueles
mesmos que denunciavam
As
falácias das vitrines, a ilusão obsedante do consumo.
Suas
escadarias de ferro, que sobrepairam as ruas,
Suas
estátuas deslocadas,
suas
lembranças de Paris, Dublin e Amsterdã
levitam
sob a garoa sobrepairando as alturas da ponte do Brooklin.
colunas
da inimaginável ponte do Brooklin.
Não,
New York, não te percas em tua sede de vingança
Porque
feriram seus prédios de vidro, suas muralhas de concreto
Que
despontavam orgulhosas e arrogantes no horizonte do
teu
perfil citadino.
Ainda
que me entreabras, sorridente,
a polpa
caudalosa da tua maçã,
não
me prostrarei, não me entregarei a essa volúpia, New York,
porque
à minha fome não se aniquilam as lembranças do Éden perdido,
nem
se aproximam a minha boca do cálice
transbordante
de sal e de sangue
última
lembrança das promessas da terra do pão e do mel.
God
save my soul!
Vade
retro, com suas ostentações de neon, de laser, de raio gama,
porque
o seu fruto já se massificou, de transgenia,
tornou-se
carente de doçura mas não perdeu
o aroma
do desejo e o malefício do veneno.
Desse
quintilhão de objetos iluminados,
anodizados,
vitrificados
que
me expões, NY, só me interessam, efetivamente,
a sonoridade
do sax soprano de Coltrane,
a melancolia
vocal de Lady Blue
e a
utopia permeada de resistência
Na voz
libertária do poeta Walt Whitman.
In.
Literatura Goyaz, Antologia 2015. Org. Adalberto de Queiroz. Goiânia: Livres
Pensadores, 2015, p.68-70.
bola de gude - Fonte:Blog Melhores Brincadeiras da Infância |
Cantiga de Viagem
Volvo em silêncio a terra
em que dormem os ancestrais
com suas longas, infinitas barbas brancas
(pai Gaspar, tio Neco, tio Zeco, tio Chico)
ao lado de suas mansas mulheres.
Vago pelo vilarejo trespassado de luz,
As raízes da infância espalham-se pelas ruas
de ontem.
Tudo é calma e sossego
de mistério sem mistério
e pressinto o menino que fui
emergindo descalço das sombras dos becos
preso à sua timidez
e às estrelinhas de gude
que carrega nas algibeiras.
O velho do saco já não vaga pelas ruas
carregando meninos teimosos,
Mira Doida é uma tênue lembrança
encoberta pelo limo do tempo.
Em silêncio, as casas da velha família
Espiam lenta demolição da capelinha.
a noite é úmida de tanta ternura
e a confusão que me habita
se esvai
enquanto me entrego sem medo
à memória desvelada e simples
que escorre desses telhados.
A magia é palpável como a aspereza
dos troncos das árvores centenária
às fraldas da Serra Dourada.
Observo esses campos
(em breve estarão submersos),
respiram os seus últimos dias
ao cálido abraço solar.
Revolvo a melancolia dos caminhos solitários
a roça
e a angústia indefinida
do planger de sinos na distância.
Tudo é quietude:
a bondade da vida escorre pelas calçadas
farta como o calor da tarde.
A humilde cidadezinha se dilui
na névoa imperscrutável do tempo.
E ouço o silêncio eterno
do sono dos ancestrais.
In. Inventário do Abstrato. Goiânia: UCG/KELPS, 2009, p.64.
Em Madrid
Federico Garcia Lorca |
Que
sonham as meninas madrilenas
nas
calçadas noturnas de Fuencarral?
Saudades
de Nova Iorque
Nunca
dantes mas sonhada?
Que
buscam essas brujas álacres
no
seu andar altaneiro
esmagando
seringas, cigarros
por
bucólicas alamedas?
Já
não bailam ao som do flamenco
quem
vem da Andaluzia,
que
querem a doces gitanas
além
de que não venha o dia?
Leves,
por certo não levam
a dor
de saber que um dia
fuzilaram
Garcia Lorca
só
por ódio à poesia.
In. Inventário do Abstrato. Goiânia: UCG/KELPS, 2009, p71.
O Homem de Setenta Anos
Insolite - Fonte: Le Tribunal du Net |
Olho
para este homem e seus sapatos envelhecidos,
de
setenta anos de estrada,
e
imagino em quantas pedras tropeçou nos descampados
que
percorreu.
Olho
para este homem que o tempo amadurece,
em
calma, como o tempo faz saboroso o bom vinho.
E penso
que a vida é um breve instante,
mas
não se perdeu.
que
o homem de setenta anos beba no poço da tranquilidade;
e não
lhe falte o abraço amigo do filho
refrigério
como
a sombra das árvores que semeou pelo caminho,
e a
ternura dos amigos que se saciaram na fartura de sua mesa.
Que
os ouvidos se abram às suas palavras
porque
os seus olhos viram muitas dores e os seus ouvidos
ouviram
os gemidos e os risos de um mundo enlouquecido em guerras.
O
homem de setenta anos é um sobrevivente legendário.
Que
possa em sossego formar pastagens
onde
apascente lentamente seu rebanho
isento
das pragas e da fome das onças.
Que
durma tranquilo o homem de setenta anos
embalado
pelo sussurro da aragem do outono
sem
que as ventanias ameacem as frinchas de sua casa.
Que
trabalhem sem sobressaltos o homem de setenta anos,
como
o seu cavalo permanece sem pesadelos nos pastos,
e suas
vacas amamentam absortas, nos currais.
Vejo
ainda as borboletas pousando em sua camisa de menino,
e
o vejo correndo descalço pelas ruas tristes dessa aldeia pobre,
onde
portas se abriram ou se fecharam à sua passagem
as
alegrias mortas, a cada dia,
e
a cada noite reconquistadas,
as
tristezas curtidas a cada tarde
e
a cada manhã subitamente renovadas.
Vejo
este homem, carregando os seus setenta anos,
e
me pergunto em que fotografias revelou seu espírito
e
em quantos risos pode banhar sua alma.
Não
sei contar às rugas que a amargura cravou em suas lembranças
mas
escorrem dos seus olhos a magia da primeira leitura,
a
graça do primeiro encontro,
como
a sombra fugidia do gato, que certamente perseguiu,
pelos
becos da infância.
Vejo
a indecifrável solidão desse homem
com
suas queixas, suas raivas e seus
remorsos
e
posso apenas ouvi-lo, sem penetrar jamais os seus segredos.
Mas
sei que a sua sabedoria é lúcida e límpida
e se
ilumina nos causos mais simples da conversa domingueira
qual
um bando de garças alçando o voo.
Vejo
esse homem e seus gestos firmes,
Seu
bando de filhos,
Sua
fiel companheira,
E vejo
um carvalho, de ampla folhagem, seus galhos robustos,
Sua
sombra sem fronteiras.
Ao
homem de setenta anos,
liberto
das hipocrisias e das ilusões passageiras,
não
lhe falte a mansa alegria
das
aves, pelas mangueiras,
e
nem fúria incontida, das tempestades rugindo
rasgando
o ventre da noite,
de
onde surgiria, talvez,
uma
manhã alvissareira.
In. Inventário do Abstrato. Goiânia: UCG/KELPS, 2009, p.95-97.
Käthe Kollwitz, Selbstbildnis, mit der Hand an der Stirn
Etching, 1910
Sobre o Autor
Natural da cidade de Uruaçu/Go, fundada por seus ancestrais, a família Francisco/Fernandes de Carvalho, nasceu em 31 de dezembro de 1951. Filho do promotor de Justiça e professor Cristovam Francisco de Ávila e de Selenita Campos de Ávila. Realizou os estudos fundamentais em sua cidade natal, o ensino médio nos Seminários Santa Cruz, em Goiânia, e Nossa Senhora de Fátima, em Brasília – DF. Graduou-se em Direito pela Universidade Católica de Goiás, no ano de 1974, havendo cursado dois anos de Letras Vernáculas, pela Universidade Federal de Goiás. Exerceu a advocacia nos anos de 1975, 1976 e 1977, na região de Uruaçu, onde também exerceu o magistério, como professor de Redação e Expressão e Inglês.
Ingressou na Magistratura estadual no ano de 1982, exercendo a judicatura nas Comarca de Formoso (1982/1985) Mara Rosa (1986/1987), Santa Helena de Goiás (1987/1992), onde exerceu a jurisdição nas áreas cível, criminal e eleitoral, e ainda na Capital deste Esta do, para onde foi promovido, pelo critério de merecimento, no ano 1992. Passou a atuar como substituto de Desembargador, no Tribunal de Justiça do Estado, desde o ano de 1999. Pós graduou-se como especialista, em Direito Processual Civil, e como mestre, em Direito Agrário, pela Universidade Federal de Goiás, com uma disciplina – Cooperativismo – realizada na Universidade de Ávila, na Espanha. Nessa Faculdade exerceu, nos anos de 2000/2001, as funções de professor substituto, de Direito Civil e Processual Civil.
Atualmente exerce o cargo de Desembargador, integrando a 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça, já tendo exercido a Presidência dessa Câmara e da Seção Criminal do mesmo Tribunal.
Fonte: UBE-GO.
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