Francisco Perna Filho - Crônica

 
PONTOS DE FUGA*



Algumas leituras nos são fundamentais, por nos situarem no tempo e no espaço e contribuírem para a nossa formação, não permitindo que se faça na realidade o imaginário perverso, e nem o bestial na sensatez. Quantas já nos aliviaram a dor alma e nos livraram do sono letal da ignorância, quando em imensas noites alimentaram as manhãs vindouras e os seguros passos de novas caminhadas.

Sobre elas, como bem o fez Hélio Pólvora no seu livro de ensaio ‘O Espaço Interior‘ (Editora da Universidade do Mar e da Mata, 1999), depois de ensaiar sobre a literatura universal, dedicou um capítulo às suas leituras e as de sua geração: ‘O que a minha geração leu’ – permitindo-nos um passeio saboroso pelo que há de mais diverso e importante na literatura universal: “A minha geração leu muito. Claro, a tevê só chegou quando éramos adultos. Para matar o tempo, que sempre resiste e acaba nos matando, segundo a lição de Machado de Assis, tínhamos apenas a Rádio Nacional, com os seus programas de auditório e dramatização de romances e contos, à base de uma parafernália de efeitos especiais. Sobrava tempo para leituras, devaneios. O livro foi companheiro diário, amigo sem rosto e sobretudo amigo fiel”.

Tal exposição, ao mesmo tempo em que nos fala de um espaço não muito longínquo, também nos dá a dimensão da formação de um dos nossos maiores contistas do Brasil, quando revela as “Leituras ao acaso, sem a ordem cronológica das escolas e dos movimentos literários”, nos mostrando a capacidade que cada indivíduo, pelas suas eleições, tem de autoformar-se, bastando apenas um despertar, para que o mundo se faça inteiro e, irrepreensivelmente, nos dê as respostas que tanto buscamos nesses dias tão atribulados.
A literatura universal está cheia de relatos das mais diversas “ex108
periências iniciáticas” como foi o caso de Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, François Mauriac, todos eles, de alguma maneira, trazem lembranças agradáveis das primeiras leituras, quase sempre adquiridas na infância, ao passo que avaliam o quanto elas foram fundamentais para que eles chegassem onde chegaram.
Todos têm uma história para contar, apoiados que estão nas suas experiência vividas e lidas, como é o caso do Escritor e Jornalista Inglês Graham Greene (Pontos de Fuga, Record, 1980), ao relatar magistralmente as suas leituras de mundo: Haiti, Vietnam, Praga, Paraguai, Quênia, África, numa demonstração de que a precisão da vida está em enfrentá-la.

Todos nós temos os nossos pontos de fuga, como no título de Greene, quando incisivamente fixamos os nossos olhos para além do horizonte empobrecido que nos maltrata. Talvez aí esteja a saída para os nossos dramas, sem que precisemos de mártires, como as crianças libanesas, os chorosos massacres da violência urbana, e tantos outros que se perderam pelos Parques do mundo.

Por tudo isso é que eu me pergunto: o que a minha geração leu ou está lendo, nesse exato momento? E os outros? De que motivação precisamos para começar a ler, para ensaiar o primeiro capítulos das nossa experiências? Pode ser que, como muitos dizem, livro no Brasil seja coisa para elite, para ricos. Mas eu me pergunto, e as bibliotecas públicas? E o esforço individual? E a experiência dos nossos grandes escritores que, muitas vezes, por situações várias, tiveram de criar alternativas, lendo o que lhes chegava às mãos, tomando emprestado, fazendo cooperativas, criando salas de leitura.

Para quem quer começar, existem inúmeras maneiras e, talvez, este texto seja um começo. Que tal conhecer Hélio Pólvora, Graham Greene, Sartre, Hugo de Carvalho. Que tal fazer um passeio pela Grande Goiânia e conhecer as suas bibliotecas. Que tal escrever a sua própria história.

* Título tomado de empréstimo a Graham Greene
Esta crônica faz parte do livro "O Rio Tocantins engoliu meu Avô", que poderá ser baixado aqui

O RIO TOCANTINS ENGOLIU MEU AVÔ FOI INDICADO PARA O VESTIBULAR DA CATÓLICA DO TOCANTINS


O Rio Tocantins engoliu meu Avô



Os rios, naturalmente, correm. É da natureza deles o livre curso. Não tem nada que os impeça, rompem qualquer obstáculo que se lhes apresente. Não fazem distinção de tempo e leito, não consideram castas nem poder, retumbam os gritos ancestrais; não param nunca, mesmo quando lhes desviam o curso, mesmo quando desembocam no mar.

Pelos rios, os homens descobriram outras terras, alimentaram descobertas e distâncias. Neles, depositaram esperanças, viram-se refletidos e morreram inúmeras vezes, como o meu avô, Manoel de Sales Perna, um exímio nadador, a quem o rio não deu guarida, engolido pelo Tocantins ao salvar a minha prima, Maria Úrsula, bem próximo à cidade de Carolina, no Maranhão.

As pessoas morrem, os rios são perenes. A qualquer tempo, estão em movimento. Nunca se repetem, sempre impressionam, seduzem e devoram. Água não tem cabelo, professam os antigos, e se tivesse, sem hesitar, diria que o meu avô teria vivido um pouco mais, a tempo de me conhecer e poder falar um pouco sobre a sua vida, suas origens, e da afeição pelos índios Krahô.

Dele sei pouco, mas sempre pude imaginá-lo, quando não pelas histórias contadas pelo meu pai, Francisco Nolêto Perna, pela fotografia ampliada que o meu tio, Tito Perna, traz emoldurada na sala de sua casa e, mais recente, sendo redescoberto, por obra da ficção, pelo escritor Bernardo Carvalho, no premiado “Nove Noites”, Companhia das Letras (2003), quando o engenheiro Manoel Perna, que na vida real era barbeiro, pôde contar a história d o antropólogo americano Buell Quain, discípulo de Ruth Benedict da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, que se suicidou em 1939, aos 27 anos, poucos dias após deixar a aldeia Krahô, a caminho de Carolina, no Maranhão, para se encontrar com o meu Avô. Fato que, embora sirva à ficção de Carvalho, aconteceu na vida real, como atestam os documentos e o testemunho do meu pai.

Apesar de não ter podido conhecê-lo em vida, vejo-o sempre em meu pai, em mim, nos meus filhos e irmãos. Vejo-o no rio que o engoliu, pois passou a fazer parte dele, uma vez que o seu corpo nunca foi encontrado. Eternizou-se nas suas corredeiras, imortalizou-se no seu remanso, como na mitologia: os rios da eternidade.

Vejo-o sempre quando vou a Miracema do Tocantins, quando miro o rio do Porto do Padre, da Praia de Areia, do Flutuante do “Seu” Manoel, da Praia do Urubu, da Usina do Lajeado. Muitos desses lugares, que agora citei, já não existem mais, mas vivem na minha memória, como o meu avô, que, pela obra da ficção, virou personagem e “zombou” do rio que o engoliu. 

Imagem retirada da Internet: Kraô

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