Cremação anunciada
A noite trabalha seus silêncios no ofício do breu necessário para acordar cada amanhecer. A noite sabe a essência de cada luzinha, lua, lampião e candeia, vela e tudo que é pavio. A noite ora fia um orvalho, ora descança o gado e os vaqueiros. É assim aqui nesse sertão onde a noite ainda tece um vento que desde a Serra do Carmo até os buritizais das veredas que bordam a beira do rio. Ainda que a noite vele para o novo dia, ainda que nova aurora venha, o vento tecido vem deixar na porta de cada um de nós as cinzas de um tempo também irmão dos crimes, como a crônica anual de uma cremação anunciada. Creia, existe gente preparada para queimar a noite, mesmo a noite sendo somente para queimar-se. Insistem muitos medíocres (bem ou mal informados) em queimar a terra no intuíto das safras, ou quase sempre. Dizem que existem inclusive queimadas que são controladas. Controlar fogo tem mais proximidade com arte do encardido. Anos "a fio de pavio" e vamos assistimos as linhas vermelhas serpenteando montes e campinas nas noites do serrado com a valsa densa da fumaça de mato ardido. Encontrei Zé de Tonha, morador quase secular da beira do Córrego Prata numa dessas noites de mato ardido, ele disse-me: - Seu, tocar fogo no corpo do mato de nada tem serventia, mata planta e bicho... botei sentido que na cidade qualquer foguin a turma já faz reclame... aqui no mato o bicho grita, mas ninguém escuta! Zé de Tonha mostra na pele o brilho daquele suor espesso e procura um horizonte na noite pra ficar calado (...) Nos agostos e setembros acontecem mais, mais arder num longe bem perto da gente. - Sabe aquela cinza que você encontra na porta de casa nessas manhãs? - É o corpo jaz do Ipê, do Cega-machado, do Buriti, da Manga, da Mangaba... corpo jaz da Esperança, da Lesma, da casa do Tatu Peba! Em nossa porta jaz essa gente em cinzas. Essa cinza fica procurando que o possa enterrar.
Imagem retirada da Internet: lamparina