Ode à Tipografia
verticais,
feitas
de linha pura,
erguidas
como o mastro
do navio
no meio
da página
cheia
de confusão e turbulência,
Bodonis
algébricos,
letras
cabais,
finas
como lebréis,
submetidas
ao retângulo branco
da geometria,
vogais
elzevires
cunhadas
no miúdo aço
da oficina junto à água,
em Flandres, no norte
traçado por canais,
cifras
da âncora
caracteres de Aldus,
firmes como
a estatura
marinha
de Veneza
em cujas águas-mães
como vela
inclinada,
navega a cursiva
curvando o alfabeto:
o ar
dos descobridores
oceânicos
agachou
para sempre o perfil da escritura.
Desde
as mãos medievais
avançou até teus olhos
este
N
este 8
duplo
este
J
este
R
de rei e de rocio.
Ali
se lavraram
como se fossem
dentes, unhas,
metálicos martelos
do idioma.
Golpearam cada letra,
erigiram-na
pequena estátua negra
na alvura,
pétala
do pensamento que tomava forma
do caudaloso rio
e que ao mar dos povos navegava
com todo
o alfabeto
iluminando
a desembocadura.
O coração, os olhos
dos homens
se encheram de letras,
de mensagens,
de palavras,
e o vento passageiro
ou permanente
levantou livros
loucos
ou sagrados.
Debaixo
das novas pirâmides escritas
a letra
estava viva,
o alfabeto ardendo,
as vogais,
as consoantes como
flores curvas.
Os olhos
do papel, os que miraram
nos homens
buscando
seus presentes,
sua história, seus amores,
estendendo
o tesouro
acumulado,
espargindo prontamente
a lentidão da sabedoria
sobre a mesa
como um baralho,
todo
o húmus
secreto
dos séculos
o canto, a memória,
a revolta,
a parábola cega,
pronto
foram
fecundidade,
celeiro,
letras,
letras
que caminharam
e se acenderam
letras
que navegaram
e venceram,
letras
que despertaram
e subiram,
letras
que libertaram,
letras
em forma de pomba
que voaram,
letras
vermelhas sobre a neve,
pontuações,
caminhos,
edifícios
de letras
e Villon e Bercéo,
trovadores
da memória
apenas
escrita sobre o couro
e também sobre o tambor
da batalha,
chegaram
à espaçosa nave
dos livros,
à tipografia
navegante.
Mas
a letra
não foi só beleza,
e sim, vida,
foi paz para o soldado,
baixou às soledades
da mina
e o mineiro
leu
o panfleto duro
e clandestino,
ocultou-o nos recônditos
do segredo
coração
e acima
sobre a terra,
foi outro
e outra
foi sua palavra.
A letra
foi a mãe
das novas bandeiras,
as letras
procriaram,
as estrelas
terrestres
e o canto, o hino ardente
que reúne
aos povos
de
uma
letra
agregada
a outra
letra
e a outra
de povo em povo foi sobrelevando
sua autoridade sonora
e cresceu na garganta dos homens
até impor a claridade do canto.
Mas
tipografia,
deixe-me
celebrar-te
na pureza
de teus
puros perfis,
na redoma
da letra
O,
no viçoso
alguidar
do
Y,
no
Q
de Quevedo
(como poderia passar
minha poesia
em frente dessa letra
sem sentir o antigo arrepio
do sábio moribundo?),
à açucena
multi
multiplicada
do
V
de vitória,
no
E
escalonado
para subir ao céu,
no
Z
com seu rosto de raio,
no P
alaranjado.
Amor,
amo
as letras
de teu cabelo,
o
U
de teu olhar,
os
S
de tuas curvas.
Nas folhas
da jovem primavera
refulge o alfabeto
diamantino,
as esmeraldas
escrevem teu nome
com iniciais frescas do rocio.
Meu amor,
tua cabeleira profunda
como selva ou dicionário
me cobre
com sua totalidade
de idioma
vermelho.
Em tudo,
no estalão
do verme
se lê,
na rosa se lê,
as raízes
estão cheias de letras
retorcidas
pela umidade do bosque
e no céu
de Isla Negra, à noite,
leio,
leio
no firmamento frio
da costa,
intenso,
diáfano de formosura,
despregado,
com estrelas capitais
e minúsculas
e exclamações
de diamante gelado,
leio, leio
na noite do Chile
austral, perdido
nas celestes solitudes
do firmamento,
como em um livro
leio
todas
as aventuras
e na erva
leio,
leio
a verde, a arenosa
tipografia
da terra agreste,
leio
os navios, os rostos
e as mãos,
leio
em teu coração
onde
vivem
entrelaçados
a inicial
provinciana
de teu nome
e
o arrecife
de meus sobrenomes.
Leio
tua fronte,
leio
teu cabelo
e no jasmim
as letras
escondidas
elevam
a incessante
primavera
até que eu decifro
a enterrada
pontuação
da papoula
e a letra
escarlate
do estio:
são as exatas flores do meu canto.
Contudo
quando
desfralda
seus rosais
a escritura,
a letra
sua essencial
jardinaria,
quando lês
as velhas e as novas
palavras, as verdades
e as explorações,
te peço
um pensamento
para quem as ordena
e as levanta,
para o que separa
o tipo,
para o linotipista
com sua lâmpada
como um piloto
sobre
as ondas da linguagem
ordenando
os ventos na espuma,
a sombra e as estrelas
no livro:
o homem
e o aço
uma vez mais reunidos
contra as asas noturnas
do mistério,
navegando,
hora dando,
compondo.
Tipografia,
sou
apenas um poeta
e és
o florido
jogo da razão,
o movimento
do cerzir
da inteligência.
Não descansas
de noite
nem no inverno
circulas
nas veias
de nossa anatomia
e se dormes
voando
durante
alguma noite ou greve
ou fadiga ou ruptura
de linotipia
baixas de novo ao livro
ou ao jornal
como nuvem
de pássaros ao ninho.
Regressas
ao sistema
à ordem
inapelável
da inteligência.
Letras
continuai caindo
como precisa chuva
em meu caminho.
Letras de tudo
o que vive
e morre,
letras de luz, de lua,
de silêncio,
de água,
amo-vos,
e em vós
recolho
não apenas pensamento
e o combate,
mas também vossos vestidos,
sentidos
e sonoridades:
A
de gloriosa aveia,
T
de trigo y de torre
e
M
como teu nome
de maçã.