Álvares de Azevedo - Poema



Canção da sesta (LXI)


Se teus cílios de sereia
Te dão um ar peregrino,
Que longe é de ser divino,
Fada do olhar que me enleia.

Eu te adoro, ternamente,
Minha terrível paixão!
Sempre com a devoção
Que tem pelo ídolo um crente.

As florestas e o deserto
Perfumam-te as tranças rudes;
Tens na fronte as atitudes,
Do que é enigmático e incerto.

Como em torno do incensário,
Em teu corpo o perfume arde;
E fascinas como a tarde,
Ninfa do ar mais funerário.

Ah, o filtro, mesmo se forte,
Não vale tua delícia,
E conheces a carícia
Que faz reviver a morte!

Tens ancas muito amorosas
De teus seios e teus rins,
E arrebatas os coxins,
Com flexões tão langorosas.

Vezes, para ser vencida
Tua raiva de mistério
Prodigalizas, de ar sério,
O beijo como a mordida;

Tu me laceras, morena,
Com riso de algum despeito,
E pões depois no meu peito
Teu olho, lua serena.

Sob teu sapato rendado,
Sob os teus pés que são seda,
Ponho de alma sempre leda
O meu gênio com meu fado.

Minha alma por ti se cura,
Por ti que és o lume a e cor!
És a explosão do calor
Em minha Sibéria escura.


Imagem retirada da Internet: musa

Álvares de Azevedo - Poema



CANTO III
FLORES DO LUAR

PRELÚDIOS

Eu sonhei tanto amor e tanta glória!
A minha fronte de lauréis cingida
E uma auréola de luz, sublimes versos
Amores e ventura aqui na vida!


E ela, o anjo do céu que eu sonhei tanto,
Ela junto de mim sorrindo amores!
Aérea música a soar - balsâmicos
Os ares de mil flores!


E ela, o anjo do céu que sonhei tanto,
A contar-me seus sonhos de outra vida - 
Nós dois sozinhos em viver deserto
Com alma a tudo mais ensurdecida!


E ela perto de mim, longe do mundo,
Em campinas de flores junto a um lago;
E ela perto de mim, no céu, nos sonhos,
Na vida - em beijo mago!


Que belos sonhos! que de amores santos
Que êxtases mágicos em que eu vivi!
E esse amor de visões, de reza e lágrimas
Minha vida de sonhos, - só por ti!

                      (...)

Fernando Pessoa (Ricardo Reis) - Poema


A palidez do dia é levemente dourada.
O sol de inverno faz luzir como orvalho as curvas
        Dos troncos de ramos secos.
        O frio leve treme.

Desterrado da pátria antiquíssima da minha
Crença, consolado só por pensar nos deuses,
        Aqueço-me trêmulo
        A outro sol do que este.

O sol que havia sobre o Parténon e a Acrópole
O que alumiava os passos lentos e graves
         De Aristóteles falando.
         Mas Epicuro melhor

Me fala, com a sua cariosa voz terrestre
Tendo para os deuses uma atitude também de deus,
          Sereno e vendo a vida
          À distância a que está.
        

Carlos Drummond de Andrade - Poema


Pablo Picasso - Figuras na Praia
Sonetilho do falso Fernando Pessoa


Onde nasci, morri.
Onde morri, existo.
E das peles que visto
Muitas há que não vi.

Sem mim como sem ti
Posso durar. Desisto
De tudo quanto é misto
E que odiei ou senti.

Nem fausto nem Mefisto,
À deusa que se ri
Deste nosso oaristo,

Ei-me a dizer: assisto
Além, nenhum, aqui,
Mas não sou eu, nem isto.

Imagem retirada da Internet: Figuras na Praia

Francisco Perna Filho - Poema


Os rios
frequentam a minha sala,
sempre estou vazio,
leio
o curso
das águas,
não me afogo
nem grito,
principio.

Imagem retirada da Internet: água



Cafarnaum



velhos armários, 
guardando nas suas gavetas
o cheiro aveludado de tantos invernos,
esculpidos em retratos sonâmbulos,
carpidos no ranger de redes
e no murmúrio oblongo de potes de barro.
Nada há de velho que não enterneça.
nem o mofo,
nem o lodo,
nem os anos embotados no imaginário humano.
Nada passa que não nos faça avançar para antes,
para uma anterioridade lírica,
sob a luz das lamparinas
talhadas em ausências e muita solidão.
Nada há de novo que não nos mostre o velho,
o passado,
o que fomos nós,
nos passos tênues dos nossos avós,
                               no lastimoso grito memorial
                               dos nossos corpos na dança secular;
dos nossos corações empedernidos
pelas inúmeras cicatrizes
que clamam refeição.
O que há em nós
é um imenso desejo de reconstituição
de refazimento.
Um desejo
de saciar a nossa fome ancestral,
agora, no presente futuro.


In. Refeiçao. Goiânia: Kelps, 2001.

Francisco Perna Filho - Poema


Foto by Dulla
Anotações

Fundada em lonjura,
a saudade é áspera.
Farpado arame,
pintura descascada.

Turvo canto,
lânguido e impessoal
como a ausência,
sem defesa na hora que ataca,
como a fera que espreita e devora.

In. Refeição. Goiânia: Kelps, 2001, p.43.

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