Fiódor Dostoiévski - Conto


A árvore de Natal na casa de Cristo




Havia num porão uma criança, um garotinho de seis anos de idade, ou menos ainda. Esse garotinho despertou certa manhã no porão úmido e frio. Tiritava, envolto nos seus pobres andrajos. Seu hálito formava, ao se exalar, uma espécie de vapor branco, e ele, sentado num canto em cima de um baú, por desfastio, ocupava-se em soprar esse vapor da boca, pelo prazer de vê-lo se esvolar. Mas bem que gostaria de comer alguma coisa. Diversas vezes, durante a manhã, tinha se aproximado do catre, onde num colchão de palha, chato como um pastelão, com um saco sob a cabeça à guisa de almofada, jazia a mãe enferma. Como se encontrava ela nesse lugar? Provavelmente tinha vindo de outra cidade e subitamente caíra doente. A patroa que alugava o porão tinha sido presa na antevéspera pela polícia; os locatários tinham se dispersado para se aproveitarem também da festa, e o único tapeceiro que tinha ficado cozinhava a bebedeira há dois dias: esse nem mesmo tinha esperado pela festa. No outro canto do quarto gemia uma velha octogenária, reumática, que outrora tinha sido babá e que morria agora sozinha, soltando suspiros, queixas e imprecações contra o garoto, de maneira que ele tinha medo de se aproximar da velha. No corredor ele tinha encontrado alguma coisa para beber, mas nem a menor migalha para comer, e mais de dez vezes tinha ido para junto da mãe para despertá-la. Por fim, a obscuridade lhe causou uma espécie de angústia: há muito tempo tinha caído a noite e ninguém acendia o fogo. Tendo apalpado o rosto de sua mãe, admirou-se muito: ela não se mexia mais e estava tão fria como as paredes. "Faz muito frio aqui", refletia ele, com a mão pousada inconscientemente no ombro da morta; depois, ao cabo de um instante, soprou os dedos para esquentá-los, pegou o seu gorrinho abandonado no leito e, sem fazer ruído, saiu do cômodo, tateando. Por sua vontade, teria saído mais cedo, se não tivesse medo de encontrar, no alto da escada, um canzarrão que latira o dia todo, nas soleiras das casas vizinhas. Mas o cão não se encontrava alí, e o menino já ganhava a rua.

Senhor! que grande cidade! Nunca tinha visto nada parecido, De lá, de onde vinha, era tão negra a noite! Uma única lanterna para iluminar toda a rua. As casinhas de madeira são baixas e fechadas por trás dos postigos; desde o cair da noite, não se encontra mais ninguém fora, toda gente permanece bem enfunada em casa, e só os cães,às centenas e aos milhares,uivam, latem, durante a noite. Mas, em compensação, lá era tão quente; davam-lhe de comer... ao passo que ali... Meu Deus! se ele ao menos tivesse alguma coisa para comer! E que desordem, que grande algazarra ali, que claridade, quanta gente, cavalos, carruagens... e o frio, ah! este frio! O nevoeiro gela em filamentos nas ventas dos cavalos que galopam; através da neve friável o ferro dos cascos tine contra a calçada;toda gente se apressa e se acotovela, e, meu Deus! como gostaria de comer qualquer coisa, e como de repente seus dedinhos lhe doem! Um agente de policia passa ao lado da criança e se volta, para fingir que não vê.

Eis uma rua ainda: como é larga! Esmaga-lo-ão ali, seguramente; como todo mundo grita, vai, vem e corre, e como está claro, como é claro! Que é aquilo ali? Ah! uma grande vidraça, e atrás dessa vidraça um quarto, com uma árvore que sobe até o teto; é um pinheiro, uma árvore de Natal onde há muitas luzes, muitos objetos pequenos, frutas douradas, e em torno bonecas e cavalinhos. No quarto há crianças que correm; estão bem vestidas e muito limpas, riem e brincam, comem e bebem alguma coisa. Eis ali uma menina que se pôs a dançar com um rapazinho. Que bonita menina! Ouve-se música através da vidraça. A criança olha, surpresa; logo sorri, enquanto os dedos dos seus pobres pezinhos doem e os das mãos se tornaram tão roxos, que não podem se dobrar nem mesmo se mover. De repente o menino se lembrou de que seus dedos doem muito; põe-se a chorar, corre para mais longe, e eis que, através de uma vidraça, avista ainda um quarto, e neste outra árvore, mas sobre as mesas há bolos de todas as qualidades, bolos de amêndoa, vermelhos, amarelos, e eis sentadas quatro formosas damas que distribuem bolos a todos os que se apresentem. A cada instante, a porta se abre para um senhor que entra. Na ponta dos pés, o menino se aproximou, abriu a porta e bruscamente entrou. Hu! com que gritos e gestos o repeliram! Uma senhora se aproximou logo, meteu-lhe furtivamente uma moeda na mão, abrindo-lhe ela mesma a porta da rua. Como ele teve medo! Mas a moeda rolou pelos degraus com um tilintar sonoro: ele não tinha podido fechar os dedinhos para segurá-la. O menino apertou o passo para ir mais longe - nem ele mesmo sabe aonde. Tem vontade de chorar; mas dessa vez tem medo e corre. Corre soprando os dedos. Uma angústia o domina, por se sentir tão só e abandonado, quando, de repente: Senhor! Que poderá ser ainda? Uma multidão que se detém, que olha com curiosidade. Em uma janela, através da vidraça, há três grandes bonecos vestidos com roupas vermelhas e verdes e que parecem vivos! Um velho sentado parece tocar violino, dois outros estão em pé junto de e tocam violinos menores, e todos maneiam em cadência as delicadas cabeças, olham uns para os outros, enquanto seus lábios se mexem; falam, devem falar - de verdade - e, se não se ouve nada, é por causa da vidraça. O menino julgou, a princípio, que eram pessoas vivas, e, quando finalmente compreendeu que eram bonecos, pôs-se de súbito a rir. Nunca tinha visto bonecos assim, nem mesmo suspeitava que existissem! Certamente, desejaria chorar, mas era tão cômico, tão engraçado ver esses bonecos! De repente pareceu-lhe que alguém o puxava por trás. Um moleque grande, malvado, que estava ao lado dele, deu-lhe de repente um tapa na cabeça, derrubou o seu gorrinho e passou-lhe uma rasteira. O menino rolou pelo chão, algumas pessoas se puseram a gritar: aterrorizado, ele se levantou para fugir depressa e correu com quantas pernas tinha, sem saber para onde. Atravessou o portão de uma cocheira, penetrou num pátio e sentou-se atrás de um monte de lenha. "Aqui, pelo menos", refletiu ele, "não me acharão: está muito escuro."

Sentou-se e encolheu-se, sem poder retomar fôlego, de tanto medo, e bruscamente, pois foi muito rápido, sentiu um grande bem-estar, as mãos e os pés tinham deixado de doer, e sentia calor, muito calor, como ao pé de uma estufa. Subitamente se mexeu: um pouco mais e ia dormir! Como seria bom dormir nesse lugar! "mais um instante e irei ver outra vez os bonecos", pensou o menino, que sorriu à sua lembrança: "Podia jurar que eram vivos!"... E de repente pareceu-lhe que sua mãe lhe cantava uma canção. "Mamãe, vou dormir; ah! como é bom dormir aqui!"

- Venha comigo, vamos ver a árvore de Natal, meu menino - murmurou repentinamente uma voz cheia de doçura.

Ele ainda pensava que era a mãe, mas não, não era ela. Quem então acabava de chamá-lo? Não vê quem, mas alguém está inclinado sobre ele e o abraça no escuro, estende-lhe os braços e... logo... Que claridade! A maravilhosa árvore de Natal! E agora não é um pinheiro, nunca tinha visto árvores semelhantes! Onde se encontra então nesse momento? Tudo brilha, tudo resplandece, e em torno, por toda parte, bonecos - mas não, são meninos e meninas, só que muito luminosos! Todos o cercam, como nas brincadeiras de roda, abraçam-no em seu vôo, tomam-no, levam-no com eles, e ele mesmo voa e vê: distingue sua mãe e lhe sorrir com ar feliz.

- Mamãe! mamãe! Como é bom aqui, mamãe! - exclama a criança. De novo abraça seus companheiros, e gostaria de lhes contar bem depressa a história dos bonecos da vidraça... - Quem são vocês então, meninos? E vocês, meninas, quem são? - pergunta ele, sorrindo-lhes e mandando-lhes beijos.

- Isto... é a árvore de Natal de Cristo - respondem-lhe. - Todos os anos, neste dia, há, na casa de Cristo, uma árvore de Natal, para os meninos que não tiveram sua árvore na terra...

E soube assim que todos aqueles meninos e meninas tinham sido outrora crianças como ele, mas alguns tinham morrido, gelados nos cestos, onde tinham sido abandonados nos degraus das escadas dos palácios de Petersburgo; outros tinham morrido junto às amas, em algum dispensário finlandês; uns sobre o seio exaurido de suas mães, no tempo em que grassava, cruel, a fome de Samara; outros, ainda, sufocados pelo ar mefítico de um vagão de terceira classe. Mas todos estão ali nesse momento, todos são agora como anjos, todos juntos a Cristo, e Ele, no meio das crianças, estende as mãos para abençoá-las e às pobres mães... E as mães dessas crianças estão ali, todas, num lugar separado, e choram; cada uma reconhece seu filhinho ou filhinha que acorrem voando para elas, abraçam-nas, e com suas mãozinhas enxugam-lhes as lágrimas, recomendando-lhes que não chorem mais, que eles estão muito bem ali...

E nesse lugar, pela manhã, os porteiros descobriram o cadaverzinho de uma criança gelada junto de um monte de lenha. Procurou-se a mãe... Estava morta um pouco adiante; os dois se encontraram no céu, junto ao bom Deus.


Imagem retirada da Internet: Criança faminta.

Pablo Neruda - Poema



Foto by Walter Rosa
A canção desesperada


Emerge a tua lembrança da noite em que estou.
O rio junta ao mar o seu lamento obstinado.

Abandonado como o cais de madrugada.
É a hora de partir, oh abandonado!

Sobre meu o coração chovem frias corolas.
Oh porão de escombros, feroz caverna de náufragos!

Em ti se acumularam as guerras e os voos.
De ti alcançaram as asas dos pássaros do canto.

Tudo engoliste, como a distância.
Como o mar, como o tempo. Tudo em ti foi naufrágio!

Era a alegre hora do assalto e do beijo.
A hora do espanto que ardia como um farol.

Ansiedade de piloto, fúria de um megulhador cego
turva embriaguez de amor, Tudo em ti foi naufrágio!

Na infância de nevoa minha alma alada e ferida.
Descobridor perdido, Tudo em ti foi naufrágio!

Tu senti-se a dor e te agarraste ao desejo.
Caiu-te uma tristeza, Tudo em ti foi naufrágio!

Fiz retroceder a muralha de sombra.
andei mais para l do desejo e do ato.

Oh carne, carne minha, mulher que amei e perdi,
e em ti nesta hora úmida, evoco e canto.

Como um copo albergaste a infinita ternura,
e o infinito esquecimento te espedaçou como a um copo.

Era a negra, negra solidão das ilhas,
e ali, mulher de amor, me acolheram os teus braços.

Era a sede e a fome, e tu foste a fruta.
Era a dor e as ruínas, e tu foste o milagre.

Ah mulher, não sei como me pudeste conter
na terra de tua alma, e na cruz dos teus braços!

Meu desejo de ti foi o mais terrível e curto,
o mais revolto e ébrio, o mais tenso e ávido.

Cemitério de beijos,ainda há fogo nas tuas tumbas,
ainda os cachos ardem bicados de pássaros.

Oh a boca mordida, oh os beijados membros,
oh os famintos dentes, oh os corpos trançados.

Oh a cópula louca da esperança e esforço
em que nos unimos e nos desesperamos.

E a ternura, leve como a água e a farinha.
E a palavra mal começada nos lábios.

Esse foi o meu destino e nele viajou a minha vontade,
e nele caiu a minha vontade, Tudo em ti foi naufrágio!


De tombo em tombo ainda chamejastes e cantaste.
De pé como um marinheiro na proa de um navio.

Ainda floreceste em cantos, ainda rompestes em correntezas.
Oh porão de escombros, poço aberto e amargo.

Pálido mergulhador cego, desventurado fundeiro,
descobridor perdido, Tudo em ti foi naufrágio!

É a hora de partir, a dura e fria hora
que a noite prende a todo horário.

O cinturão ruidoso do mar cinge a costa.
Surgem frias estrelas, emigram negros pássaros.

Abandonado como o cais na madrugada.
Só a sombra trêmula se retorce em minhas mãos.

Ah mais para lá de tudo. Ah mais para lá de tudo.
É a hora de partir. Oh abandonado.


Tradução de Eliane Zagury


In.Neruda: Antologia Poética. Rio de Janeiro: José Olympio, 1999, p.48-51.

Francisco Perna Filho - Poema


VIDENTE



O olho
que vê o não visto
precipita-se
na visão do que não há.

A luz
que trespassa a ausência
converte-se
em ponto cego.

A palavra
que transcende o real
magnifica-se
em metáforas silentes.


Imagem retirada da Internet: Olho 

Jules Morot - Poesia Francesa Contemporânea


MOZART



Leem-se os gregos
suecos, alemães
ou a doce língua
de não sei quantos
de não sei que imóvel pedaço de página
claves de sol
talvez o latim o alano o islandês
e é sempre a mesma música
sempre como um veio numa flor grossa obscena
Diz um   um alfinete   diz outro
um parafuso
pois sim
uma fina difusa coisinha semimorta
semi-deitada
semi-cerrada
uma inteligente coisa muda
maior que um tiro na orelha
pois não
uma espécie de porta
de dor discreta.

Meu bom senhor
olhai
nos prados nas tabernas
nos ermitérios
nos armários
um rasto de cão

Nos óculos do primeiro violino
tudo desaparece.

Tendes vós sono, desejo
de novas estações? Tendes florins?
Tendes, acaso, em dias
já passados
mãos musicais, sinais
de outras mortes?



in “Le mardi-gras” (Honfleur – 2003/8)
Trad. Nicolau Saião


Imagem retirada da Internet:Mozart


Rosa María Teixidor - Poema



Orfeo en el inframundo



te miro a los ojos del abismo
donde ya
no hay salvación para los dos.

***
La mujer gigante
mueve la cola de serpiente
y mira por la ventana la naturaleza muerta.

***
Soledad
que paseas en el palacio de arena
y bailas  con los zapatos de cristal
una triste canción.

***
Eres la mujer invisible
y remas entre las baldosas,
buscando las estrellas que dejaste escritas cuando te marchaste.
***

Fonte: LaOtra
Imagem retirada da Internet: Orfeu

Rosa María Teixidor - Poesia



El ruido de los pájaros en la máquina 
de escribir



Estoy muerta y vivo en el infierno.
Soy yo, la que habla con los muertos.
En el nuevo mundo
el diablo escucha la Novena sinfonía de Beethoven.
Destruyes las cadenas que el consejero
te advirtió siempre no traspasar.
Y has cambiado de piel
sabiendo que al cruzar la puerta
el eco de tus palabras te seguirá a donde vayas.

***
Tú,
ya no eres tú
eres alguien
que ha roto las ramas del árbol
y se mece en los brazos de Hermes.

***
Con unas tijeras
recorto lo que queda de mí.

***
El tejado está ardiendo
y millones de estrellas te observan.

***
Gritas porque te salen hormigas de los ojos
y tus dedos son serpientes
que trepan por los muros de las casas vecinas.
No puedes dormir
te escondes detrás de las cortinas
y tienes la mirada de un vagabundo
pidiendo limosna en la boca del metro.

***
En la tela de una araña parpadean tus ojos de mortal.

***
Los puntos, las rayas, las comas
son sólo susurros disfrazados.
Y eres, tú,
un recorte de mi pensamiento.

***
Te quiero,
aunque tú ya no me ames,
en tu traje de domingo
con tu silencio
y las no palabras.

***
Soy lágrima en reposo
cuerpo que se diluye
junto a la mirada
de tu púlpito sangriento.
***


Rosa Teixidor (Gerona, 1978) é atriz com formacão na Escola El Galliner, de Gerona, e La Riereta Teatre, de Barcelona. Também é  diplomada no Magistério e Licenciada em Comunicacão  Audiovisual pela Universidade Aberta da Catalunha. Em 2010, publicou seu primeiro livro de poemas: A cidade de Âmbar (Editorial El Llop Ferotge).


Fonte: LAOTRA
Imagem retirada da Internet: máquina de escrever

Amandio Sobral - Conto



A podridão viva

Quem pode saber ao certo, as feras horrendas, fantásticas, os monstros de outras idades que a tenebrosa África esconde no âmago das suas imensas florestas negras e no fundo de suas grandes lagoas escuras? 





NOTA:
Isto não é conto, nem um produto da imaginação do novelista.
É apenas a reprodução fiel, autêntica, da narrativa encontrada no testamento do grande sábio paleontólogo inglês Lord Arthur Brent, que declara tê-Ia ouvido de Sir Ronald Tealer, presidente da poderosa Ivory TealerManufacruring C. Ltd. de Londres, Cape Town e Bombay, que durante muitos anos viveu nas selvas inexploradas daimensa África Austral.
Esses dois cavalheiros, um, glória da ciência mundial, outro, de palavra acatadíssima no alto mundo financeirodos dois continentes, eram incapazes de uma narrativa menos verídica.

¤

No alto comércio de Londres chamavam-no por um apelido original: "O homem que tem medo d' África". 

Espadaúdo, alto, muito queimado do sol, olhos de um verde sombrio, cabelos inteiramente brancos, andar firme e ar resoluto, era um cavalheiro extremamente simpático, que impunha respeito à primeira vista.

Uns davam-lhe trinta e poucos anos, outros garantiam ter, já há muito tempo, dobrado o cabo tormentoso dos cinqüenta. Eu à primeira vez que o vi, no confortável escritório da sua casa matriz de Regent Street, calculei não ter SirRonald Tealer celebrado ainda o quadragésimo sexto aniversário.

Contavam desse verdadeiro rei do marfim as histórias mais absurdas, porém, o certo é que passara a mocidade nos inóspitos sertões do Continente Negro, onde adquirira-à força de sofrimentos e perigos, essa resolução pronta e a vontade de ferro que o faziam temido e respeitado no alto mundo financeiro da City.

Entretanto  – coisa original!  – não podia ouvir, de súbito, a palavra África. Tornava-se pálido, os seus olhos abriam-se desmesuradamente, e todo ele tremia como se um acesso repentino de frio lhe gelasse o corpo de atleta.

Felizmente essas terríveis manifestações passavam logo. Sem dúvida, alguma horrenda recordação do continente dos hipopótamos e dos leões abalava aquele grande dominador. Daí as histórias mais ou menos fantásticas que circulavam a respeito de suas aventuras africanas.

Um dia fui procurado no meu modesto laboratório do Museum pelo riquíssimo rei do marfim.

Disse, ferindo-me a modéstia, que há muito tempo pretendia visitar-me e "travar relações com um dos maiores paleontólogos do Reino Unido". Desejava também ver a minha livraria técnica que, modéstia à parte, pude afirmar ser a mais completa biblioteca nesse ramo das ciências naturais. Queria conhecer todos os monstros que povoaram aterra, nas eras antidiluvianas.

E, quando comecei a mostrar-lhe as gravuras quase inconcebíveis de alguns dos grandes sáurios do Jurássico, o rei do marfim foi aos poucos se aquecendo, o olhar tornou-se febril, a respiração forçada e abanando a cabeça a cada estampa, dizia surdamente:
 –
Não é esse!... Também não é isso!... Bem me parecia que ainda ninguém o viu. Sou eu o único...

Seriamente intrigado com as palavras e estranhos modos desse homem habitualmente tão frio, calmo, reservado, com habilidade e a custo consegui, naquele momento de intensa agitação nervosa, arrancar do "homem que tem medo d'África" esta narrativa que reproduzo ipsis verbis:

 – Há trinta anos atrás morava eu no Cabo. Começara a ser um dos mais fortes negociantes de marfim de toda a África do Sul.

Farto de ser enganado, roubado escandalosamente pelos negros e meus caçadores brancos, resolvi ir buscar o valioso produto em que comerciava, à própria fonte  – à boca dos elefantes.

Já nessa época esses pacíficos gigantes tornavam-se cada vez mais raros, devido às hecatombes selvagens promovidas pelos régulos indígenas.

Eu e meu sócio  – um bôer leal, duma coragem louca e pontaria infalível (como o provou, mais tarde, em Ladysmith, durante a guerra do Transvaal, dizimando quase sozinho um regimento inteiro da Royal Irish) companhados dum distinto naturalista alemão Dr. Von Spree, que estudava os hábitos dessas montanhas de carne, abalamos, com uma formidável tropa de caçadores nativos, guias, carregadores, quase todos betchuanas e zulus, pelo sertão inexplorado, em direção ao grande rio Zambeze, a elefantolândia daquele tempo.

A nossa viagem foi, como é de supor, penosíssima. Fomes, sedes, febres, chuvas torrenciais, alimentação obrigatória dessa nojenta carne de elefante em que mal penetra o machado, convivência íntima com escorpiões alentados, carrapatos enormes e venenosíssimas moscas tsé-tsé, humor arquievangélico para aturar as mais atrevidas impertinências, descaradíssimas extorsões e até roubos violentos, por parte dos bestiais reisêtes das terras que atravessamos.

A todos os momentos os negros perdiam-se, extraviavam-se, sucumbiam de repente, sem sintomas aparentes de moléstia, ou numa inconsciência absoluta, desertavam com as cargas, em plena selva impenetrável, para irem servir de pasto às feras de dois e quatro pés.

O negro africano semi-selvagem é o supra-sumo da covardia; não possui a menor resistência nervosa,imprescindível à vida ingrata e árdua do explorador, do homem que enfrenta uma natureza desconhecida e hostil.

Formidáveis florestas verde-negras, atapetadas dum húmus balofo e podre, onde se criam os vermes mais nojentos, sucediam-se aos brejos intransponíveis, aos matagais espinhosos, aos alagadiços que exalavam um nauseabundo vapor, abafadiço e mortal.

As noites eram medonhas. O desabar estrondeante das árvores gigantescas carcomidas pelos séculos, os silvos, guinchos e berros ribombavam dentro daquelas brenhas milenárias, confundindo-se com os rugidos dos leopardos, os gritos estrídulos dos elefantes e o ronco do grande leão de juba negra.

A audácia das hienas e lobos era tal que, apesar das fogueiras, vinham ao acampamento roubar as peles de elefante que secavam nos giraus.

O Sr. Conde Von Spree, apavorado ou mordido pela tsé-tsé, enlouqueceu e fugiu de noite pelas brenhas, aos berros e urros.

Dele só encontramos, dias depois, uma perna a decompor-se dentro da bota de couro grosso.

Desaparecido o último guia nativo, uma tarde, perdemo-nos de todo no seio de uns pântanos cobertos degramíneas cortantes, que encobriam, traiçoeiras, as espessas águas lodosas, onde alguns dos nossos foram imediatamente engolidos.

Esqueléticos, semimortos de cansaço, febrentos, cobertos de chagas e parasitos, invadidos dessa apatia peculiar ao negro em perigo, dominados por completo desse fatalismo que os torna indiferentes à sorte mais cruel, caídos por terra, olhos fundos, cavados, delirantes, e um ríctus angustiado nas faces animais, os carregadores não podiam ir mais além. Era o fim!

Pela noite, mal se escondeu o maldito sol de brasas, começou no solo argiloso a brilhar uma estranha fosforescência que, aos poucos, ganhou toda a floresta. Decomposição da matéria orgânica das camadas de folhas caídas? Nunca o soube.

Os negros batiam os queixos de pavor, tapavam infantilmente os rostos com as mãos, aos berros de:  –  Feitiçaria!... Feitiçaria!... Oh-ô-ô-ô-ah!... Uh-u-u-u-ah!...Julguei-me vítima de uma forte alucinação  – delirara de febre o dia inteiro!

 – e, imprudentemente, ingeri uma caixa toda de quinino.

Apoderou-se de mim uma irrefreável vontade de correr, de pular, de subir às árvores. Meio louco, levando na cinta apenas a faca de mato, embrenhei-me na floresta infinda.

Aí, eu vi o monstro! Sim, o terrificante monstro! O ser mais hediondo que se pode imaginar! A podridão viva!...

No âmago de uma floresta, ao pé de uma serrania vulcânica, no meio de uma natureza convulsa, revolta,proveniente de um desses cataclismas de remotas eras, entre penedos gigantes, em que um vento gelado assobiava,ele ergueu-se... Baqueei desfalecente por terra! Jesus, que horror!... Um cheiro podre, a carne decomposta, empestou o ar tonteando os animais a centenas de metros de distância.

Ele não possuía cabeça distinta do corpo. No meio de um colossal ovóide, completamente glabro, gelatinoso,dum roxo desmaiado de chaga rebelde, cheio de pústulas como um morfético, quatro grandes olhos amarelos  –  quatro ou seis?  – duma fixidez e frieza de gelar o sangue, abriam-se desmesurados, perscrutando a mata.

No meio do lodo, encolhido entre as sarças de espinheiros, encharcado dágua fétida das lagoas que transpusera,pregado ao chão, incapaz de mover-me, eu vi  – sim, vi com os olhos!  – essa verdadeira podridão viva, esse horror dos horrores, mexer-se, firmar-se em oito  – Seriam oito ou dez?  – troncos roliços terminados em garras de ave de rapina,curvando as árvores como se fossem ervas.

Saiu de uma espécie de ninho de excrementos, deixando dois ovos negros semelhantes a blocos erráticos.

O fim do corpo abriu-se. Era um orifício profundo como uma caverna, em que fiadas de placas córneas entrechocavam-se como se fossem dentes, e expeliu uma colina de matérias purulentas, esverdeadas.

Depois, as duas patas de frente ergueram-se e introduziram naquela gruta infecta, um elefante vivo que nem gemia, paralisado de terror.

A mastigar, triturando, a estalar os ossos do paquiderme, deslizou no lodo negro e foi, aos poucos, sumindo-sena lagoa espumosa e sombria.

Três meses depois eu convalescia no melhor hospital de Pretória e, apesar de tratado por médicos especialistas,ainda tinha o olhar inquieto, suspeitoso, meio desvairado, cheio de fulgores luminosos, a voz rouca, com inflexõesásperas e bruscas, enfim um todo de legítimo louco, nervos alterados, corpo sacudido de tremores convulsos, ataquesde afonia.

Ninguém quis acreditar na minha narração. Disseram-me ser uma alucinação proveniente dum formidávelenvenenamento pelo quinino. Outros asseguravam-me ser o efeito da picada das moscas tsé-tsé ou de algumaserpente desconhecida, mas os meus carregadores indígenas que bateram as florestas durante dias até meencontrarem desmaiado, a morrer no fundo de uma cova de apanhar leões, juraram todos terem visto na lama o rastode uma fera colossal, desconhecida, bem maior, sem dúvida, que o mais crescido de todos os elefantes.

Infelizmente ninguém pode dar crédito a negros, pois eles me garantiram e trejuraram, várias vezes, que osproboscídeos dormiam pendurados pelas trombas à copa das palmeiras!?...

Liqüidei com felicidade meus negócios e, apurando uma regular fortuna, retirei-me aqui para Londres, onde oanimal mais feroz é o banqueiro.

"Mas, quem pode saber ao certo, as feras horrendas, fantásticas, os monstros de outras idades que a tenebrosaÁfrica esconde no âmago de suas imensas florestas negras e no fundo de suas grandes lagoas escuras?"

(1934)

In. Contos Fantásticos Brasileiros. Org.: Braulio Tavares. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003, p.27-31.
Imagem retirada da Internet: Marfim


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