Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto) - Conto



A VONTADE DO FALECIDO




Seu Irineu Boaventura não era tão bem-aventurado assim, pois sua saúde não era lá para que se diga. Pelo contrário, seu Irineu ultimamente já tava até curvando a espinha, tendo merecido, por parte de vizinhos mais irreverentes, o significativo apelido de “Pé-na-Cova”. Se digo significativo é porque seu Irineu Boaventura realmente já dava a impressão de que, muito brevemente, iria comer capim pela raiz, isto é, iam plantar ele e botar um jardinzinho por cima.

Se havia expectativa em torno do passamento  do seu Irineu? Havia sim. O velho tinha os seus guardados. Não eram bens imóveis, pois seu Irineu conhecia de sobra Altamirando, seu sobrinho, e sabia que, se comprasse terreno, o nefando parente se instalaria nele sem a menor cerimônia. De mais a mais, o velho era antigão: não comprava o que não precisava e nem dava dinheiro por papel pintado. Dessa forma, não possuía bens imóveis nem ações,debêntures e outras bossas. A erva dele era viva. Tudo guardado em pacotinhos, num cofrão verde que ele tinha no escritório.

Nessa erva é que a parentada botava olho grande, com os mais afoitos entregando-se ao feio vício do puxa-saquismo, principalmente depois que o velho começou a ficar com aquela cor de uma bonita tonalidade cadavérica. O sobrinho, embora mais mau-caráter do que o resto da família, foi o que teve a atitude mais leal, porque, numa tarde em que seu Irineu tossia muito, perguntou assim de supetã:

-        Titio, se o senhor puser o bloco na rua, pra quem é que fica o seu dinheiro, hem?

O velho, engasgado de ódio, chegou a perder a tonalidade cadavérica e ficar levemente ruborizado, respondendo com voz rouca:

       Na hora em que eu morrer, você vai ver, seu cretino.

Alguns dias depois, deu-se o evento. Seu Irineu pisou no prego e esvaziou. Apanhou um resfriado, do resfriado passou à pneumonia, da pneumonia passou ao estado de coma e do estado de coma não passou mais. Levou pau e foi reprovado.

            - Bota titio na mesa da sala de visitas – aconselhou Altamirando; e começou o velório. Tudo que era parente com razoáveis esperanças de herança foi velar o morto. Mesmo parentes desesperançados compareceram ao ato fúnebre, porque estas coisas vocês sabem bem como são: velho rico, solteirão, rende sempre um dinheirão. Horas antes do enterro, abriram o cofrão verde onde havia sessenta milhões em cruzeiros, vinte em pacotinhos de “Tiradentes”  e quarenta em pacotinhos de “Santos Dumont” :

-       O velho tinha menos dinheiro do que eu pensava – disse alto o sobrinho.

E logo adiante acrescentava baixinho:

-       Vai ver, gastava com mulher.

Se gastava ou não, nunca se soube. Tomou-se – isto sim – conhecimento de uma carta que estava cuidadosamente colocada dentro do cofre, sobre o dinheiro. E na carta o velho dizia: “Quero ser enterrado junto com a quantia existente nesse cofre, que é tudo o que eu possuo e que foi ganho com o suor do meu rosto, sem a ajuda de parente vagabundo nenhum.” E, por baixo, a assinatura com firma reconhecida para não haver dúvida: Irineu de Carvalho Pinto Boaventura.

Pra quê! Nunca se chorou tanto num velório sem se ligar pro morto. A parentada chorava às pampas, mas não apareceu ninguém com peito para desrespeitar a vontade do falecido. Estava todo o mundo vigiando, e lá foram aquelas notas novinhas arrumadas ao lado do corpo, dentro do caixão.

Foi quase na hora do corpo sair. Desde o momento em que se tomou conhecimento do que a carta dizia, que Altamirando imaginava um jeito de passar o morto pra trás. Era muita sopa deixar aquele dinheiro ali pro velho gastar com minhoca. Pensou, pensou e, na hora que iam fechar o caixão, ele deu um grito de “pera aí”. Tirou os sessenta milhões de dentro do caixão, fez um cheque da mesma importância, jogou lá dentro e disse “fecha”.
-       Se ele precisar, mais tarde desconta o cheque no Banco.

Sandra Falcone - Poema



A velha loba

 
a velha loba
defina-se a cada passo
trôpega
soberba

lentamente
abandona-se no chão
aconchegando-se
nas próprias feridas

um uivo
longo
duido
libertador
rompe a alma
selvagem
e arrepia suavemente
a savana

ao longe
a matilha caminha
inexorável




Mariana Ianelli - Poema



Filhos do Fogo




Não foi o cansaço da jornada
Que de novo nessa noite nos venceu,
Mas um sofrimento antigo, igual a sempre,
A realidade com sua mão espadaúda
Juntando a poeira de uns castelos demolidos,
De tudo extraindo o que sobra de nosso, afinal:
O irreversível.

Cultivamos rituais silenciosos,
Temos dentro de nós a alma do mundo.
Fomos feitos para a solidão,
A mesma que sente um animal
Ao largar o seu rebanho
E esperar a morte suavemente
Numa longa tarde de chuva em Gibeon.

Damos calor às coisas enquanto é tempo
E mais tempo há enquanto estamos mudos.
Gozamos um amor tranqüilo, sem heroísmo.
Assim acontece certas vezes, por espanto:
De um golpe, o infinito nos apanha.

Charles Bukowski - Poema


Desenho by Matheus Duarte


Seguros



a casa dos vizinhos me deixa
triste.
ambos marido e mulher acordam cedo e
vão ao trabalho.
chegam em casa no início da noite.
têm um pequeno menino e uma menina.
pelas 21h todas as luzes na casa
se apagam.
na manhã seguinte ambos marido e
mulher acordam cedo de novo e vão ao
trabalho.
retornam no início da noite.
pelas 21h todas as luzes se
apagam.

a casa dos vizinhos me deixa
triste.
as pessoas são boas pessoas, eu
gosto deles.

mas sinto que estão se afogando.
e não posso salvá-los.

eles sobrevivem.
eles não são
sem-teto.

mas o preço é
terrível.

às vezes durante o dia
eu olho para a casa
e a casa olha para
mim
e a casa
chora, sim, é verdade, eu
sinto isso.

a casa está triste pelas pessoas que ali
moram
e eu também
e olhamos um ao outro
e carros passam pra lá e pra cá
na rua,
barcos atravessam o porto
e as altas palmeiras cutucam
o céu
e esta noite às 21h
as luzes se apagarão,
e não somente naquela
casa
e não somente nesta
cidade.
vidas seguras se escondem,
quase
paradas,
a respiração dos
corpos e pouco
mais.



Tradução

Edmar Oliveira - Crônica



Matar, matar, matar. Afinal, quanto vale uma vida?



A humanidade sempre conviveu com assassinatos. Desde os tempos mais remotos, na luta pela sobrevivência nas cavernas — no raciocínio darwiniano — ou a partir do alegórico caso bíblico em que o invejoso Caim matou o irmão, Abel. Mas por que o homem mata seu semelhante? Basicamente movido por instinto inato, mas as motivações vão desde a rivalidade no futebol à gula pelo dinheiro alheio.
Foi por dinheiro que, na noite de 31 de dezembro de 2002, num bairro nobre de São Paulo, Suzane Louise von Richthofen comandou o brutal assassinato dos próprios pais, Manfred Albert e Marísia von Richthofen. Daniel Cravinhos, na época namorado de Suzane, e o irmão, Christian Cravinhos, se encarregaram de desferir golpes de barra de ferro na cabeça de Manfred e Marísia. Manfred morreu na hora, e Marísia ainda agonizou com massa encefálica exposta, segundo a polícia. O casal dormia na hora fatídica.
Loira, olhos verdes, voz suave, divinamente linda e diabolicamente macabra, Suzane articulou o inominável. Ela e os irmãos Cravinhos queriam euros e dólares de Manfred e Marísia, agasalhados no cofre da mansão do casal. Após o sucesso diabólico, Suzane e Daniel Cravinhos comemoraram num motel. Os três assassinos foram condenados a penas que chegam a 50 anos, que cumprem em presídios paulistas.
A banalização dos chamados crimes contra a vida é de difícil explicação. Especialistas divergem. As teses não batem. Os números do horror são inexatos. “A mídia tem grande responsabilidade nisso, pois fica divulgando e alimentando o mau, tornando-o ‘natural’ para a sociedade”, afirma um sociólogo. “Não, a culpa é da falta de escola adequada para as crianças, que acabam se envolvendo com marginais para, no futuro, se tornar um deles”, assegura um especialista em segurança pública. “É da natureza humana”, decreta um psicanalista. “Falta Deus no coração”, prega um padre. “O maior problema é a impunidade”, decreta um promotor de justiça. É provável que todos tenham razão, mas ninguém consegue explicar com segurança o porquê de tantos homicídios, sobretudo por motivos banais. Hoje, matar é como ir a uma festa, tomar uma cervejinha e dançar. É o rock do diabo.
Tiago Fernandes da Silva Chaves, o “Tiagão”, de 21 anos, é considerado perigosíssimo pela polícia dos estados do Maranhão e Piauí. Mas um comparsa não levou a sério os antecedentes criminais de Tiagão, que já havia matado seis pessoas nos dois estados. A “ingenuidade” de Marcos Antônio Aparício, de 22 anos, custou-lhe a vida. Foi morto por Tiagão a facadas na rodoviária de Timon, pequena cidade do Maranhão, em março deste ano, porque não pagou ao parceiro uma monstruosa dívida de R$ 1. O bandido impiedoso fez sua sétima vítima, foi preso e condenado a mais de 30 anos de prisão.
Fiel de uma igreja evangélica da mesma cidade de Tiagão, Lineuza Oliveira e Silva, de 24 anos, estava sempre pregando a Bíblia. Não perdia a oportunidade de falar sobre céu, inferno, Jesus Cristo. Assídua no templo, seguia à risca os ensinamentos do pastor, inclusive pagando em dia o dízimo. Mas nem sempre seguia o amor e desapego ensinados por Cristo. De onde tirava dinheiro, se não trabalhava? Dos pobres e idosos pais, Lourival Rodrigues da Silva e Joana Borges de Oliveira e Silva, de 73 e 71 anos, respectivamente. Os idosos viviam do salário mínimo da aposentadoria e já haviam perdido a TV para a filha, que a vendeu para engordar os cofres da “casa de Deus”.
Na manhã de um domingo ensolarado de janeiro passado, antes de seguir para a escola dominical, Lineuza Oliveira foi possuída por Satanás. Furiosa por não conseguir a “décima parte devida a Deus”, como sempre dizia quando queria os recursos minguados dos pais adotivos, executou-os a machadadas, enquanto dormiam. Segundo o delegado de Timon, Ricardo Hérlon Furtado, nos dias que antecederam a crueldade, a moça demonstrava forte obsessão em ficar rica. Dizia que se desse R$ 5 mil à igreja, Deus lhe daria três vezes mais. Com uma frieza de arrepiar, Lineuza explicou a uma TV local o que fez: “Do pó viemos e para o pó iremos”.
O que mais chama a atenção de especialistas são a frieza e crueldade dos matadores e os motivos dos crimes. Nos Estados Unidos, ficou famoso o caso de Betty Johnson Neumar, conhecida como “Viúva Negra”, moradora de uma pequena cidade da Georgia, que deixou a cadeia recentemente depois de pagar fiança de 200 mil euros, segundo “O Globo”. Betty Johnson, uma aparentemente doce velhinha, mandou matar cinco maridos para ficar com o seguro de vida deles. A polícia só conseguiu decifrar os caminhos da teia de aranha da “doce velhinha” após anos de investigação. Segundo policiais, ela executou o primeiro marido na década de 1950.
Conforme reportagem do jornal “Zero Hora”, de Porto Alegre, dados da pesquisa Mapa da Violência mostra que o Brasil ainda lidera o ranking de assassinatos no planeta, em números absolutos. São 46 mil homicídios por ano, em média. Mas, em termos proporcionais, deixou de encabeçar esse campeonato macabro. O Brasil ocupa hoje o sexto lugar na taxa de homicídios por 100 mil habitantes, num ranking de 91 países. A média é de 25 assassinatos por 100 mil habitantes. Fomos superados em violência, nos últimos anos, por El Salvador, Colômbia, Guatemala, Ilhas Virgens Americanas e Venezuela.
O sociólogo Julio Waiselfisz, coordenador da pesquisa Mapa da Violência, nem pensa em comemorar essa mudança. Em primeiro lugar, porque acredita que ela pode ser circunstancial, sazonal. Em segundo lugar, porque o que ocorreu foi um aumento da violência em outros países latino-americanos, sem que o Brasil tenha experimentado redução significativa nos indicadores.
Afinal, quanto vale uma vida? É possível mensurar em dinheiro a existência de uma pessoa? Se perguntarmos a Suzane Louise von Richthofen e a Tiagão, teremos uma resposta tão sangrenta quanto os noticiários policiais de todos os dias.
Edmar Oliveira é jornalista.

Imagem retirada da Internet: Algemas

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