Francisco Perna Filho - Poema


Destino de Pedra


De quem são os meninos
que dormem ao relento,
que sonham grandiosidades,
e sucumbem nos esgotos da cidade grande
consumidos na fumaça da própria miséria
de uma existência precária?
De onde vêm esses meninos
que cumprem um destino de pedra,
pedras de crack que sempre carregam.
Sísifos da modernidade,
armados de inconsciência,
dormitando pelos esgotos
e sucumbindo na ilusão do transitório?
De que são feitos os seus dias,
os seus olhos medonhos,
as suas almas esvaídas
na maldade inocente da química
mortífera de uma breve existência?
Para onde caminham essas criaturas
silenciadas em mentiras,
em promessas e bofetadas,
em fome de existência,
em liberdade forjada?
São filhos da rua,
da lástima do mundo,
da indiferença dos homens.
Vêm dos restos do mundo,
da miséria urbana,
das crateras da incompreensão.
São feitos do lodo da existência,
das sobras de ideologias,
do sexo barato das ruas.
Caminham em círculo,
emperdenidos apóstolos,
com suas gotas,
com suas pedras,
com seus delírios,
sem destino.

Imagem retirada da Internet: meninos ao relento

Fernando Py - Poema




Cave Canem


Aviso bem-humorado
na fachada das casas de Pompéia.

Mudam-se os tempos, mudam-se os desígnios
e o aviso permanece
curiosidade arqueológica do pai
na fachada de minha casa.

Porém hoje mais certo seria
poupar os cães desse cuidado
e escrever à entrada
de toda casa toda cidade todo país
mesmo na caixa-alta do itálico latim
CAVE HOMINES





In. Jornal de poesia
Imagem retirada da Internet: cão

Francisco Perna Filho - Poema


Para o meu filho, distante



Cada vez que meu filho se vai
É como um pedaço de mim que se solta,
Como a carne talhada à faca,
Nunca é a mesma.

Cada vez que meu filho se ausenta,
Fico mais limitado no olhar,
É o como se tudo se tornasse distante,
Não me permitindo alcançar a beleza do grito.

Sempre que fico só, sem o meu filho,
Algo em mim se torna frio,
Torno-me silencioso e triste,
Não sabendo recompor-me em tanta ausência.

Sempre que fico assim, só, sem o meu filho,
Passo a buscá-lo no espelho,
Tentando encontrar no meu rosto
Sombras do que se foi.

Imagem retirada da Internet: trilhos

Humberto de Campos - Conto

 
O MONSTRO




Pelas margens sagradas do Eufrates, que fugia, então, sem espuma e sem ondas, caminhavam, na infância maravilhosa da Terra, a Dor e a Morte. Eram dois espetros longos e vagos, sem forma definida, cujos pés não deixavam traços na areia. De onde vinham, nem elas próprias sabiam. Guardavam silêncio, e marchavam sem ruído olhando as coisas recém-criadas.

Foi isto no sexto dia da Criação. Com o focinho mergulhado no rio, hipopótamos descomunais contemplavam, parados, a sua sombra enorme, tremulamente refletida nas águas. Leões fulvos, de jubas tão grandes que pareciam, de longe, estranhas frondes de árvores louras, estendiam a cabeça redonda, perscrutando o Deserto. Para o interior da terra, onde o solo começava a cobrir-se de verde, velando a sua nudez com um leve manto de relva moça, que os primeiros botões enfeitavam, fervilhava um mundo de seres novos, assustados, ainda, com a surpresa miraculosa da Vida. Eram aves gigantescas, palmípedes monstruosos, que mal se sustinham nas asas grosseiras, e que traziam ainda na fragilidade dos ossos a umidade do barro modelado na véspera. Algumas marchavam aos saltos, o arcabouço à mostra, mal vestidas pela penugem nascente. Outras se aninhavam, já, nas moitas sem espinhos, nos primeiros cuidados da primeira procriação. Batráquios de dorso esverdeado porejando água, fitavam mudos, com os largos olhos fosforescentes e interrogativos, a fila cinzenta dos outeiros longínquos, que pareciam, à distância, à sua brutalidade virgem, uma procissão silenciosa, contínua, infinita, de batráquios maiores. Auroques taciturnos, sacudindo a cabeça brutal, em que se enrolavam, encharcadas e gotejantes, braçadas de ervas dos charcos, desafiavam-se, urrando, com as patas enfiadas na terra mole.

Rebanho monstruoso de um gigante que os perdera, os elefantes pastavam em bando, colhendo com a tromba, como ramalhetes verdes, moitas de arbustos frescos. Aqui e ali, um alce galopava, célere. E à sua passagem, os outros animais o ficavam olhando, como se perguntassem que focinho, que tromba, ou que bico, havia privado das folhas aquele galho seco e pontiagudo que ele arrebatava na fuga. Ursos primitivos lambiam as patas, monotonamente. E quando um pássaro mais ligeiro cortava o ar, num vôo rápido, havia como que uma interrogação inocente nos olhos ingênuos de todos os brutos.

Em passo triste, a Dor e a Morte caminham, olhando, sem interesse, as maravilhas da Criação. Raramente marcham lado a lado. A Dor vai sempre à frente, ora mais vagarosa, ora mais apressada; a outra, sempre no mesmo ritmo, não se adianta, nem se atrasa. Adivinhando, de longe, a marcha dos dois duendes, as coisas todas se arrepiam, tomadas de agoniado terror. As folhas, ainda mal recortadas no limo do chão, contraem-se, num susto impreciso. Os animais entreolham-se inquietos e o vento, o próprio vento, parece gemer mais alto, e correr mais veloz à aproximação lenta, mas segura, das duas inimigas da Vida.

Súbito, como se a detivesse um grande braço invisível, a Dor estacou, deixando aproximar-se a companheira.

Para que mistério - disse, a voz surda, - para que mistério teria Jeová, no capricho da sua onipotência, enfeitado a terra de tanta coisa curiosa?

A Morte estendeu os olhos perscrutadores até os limites do horizonte, abrangendo o rio e o Deserto, e observou, num sorriso macabro, que fez rugir os leões:

- Para nós ambas, talvez...
- E se nós próprias fizéssemos, com as nossas mãos, uma criatura que fosse, na terra, o objeto carinhoso do nosso cuidado? Modelado por nós mesmas, o nosso filho seria, com certeza, diferente dos auroques, dos ursos, dos mastodontes, das aves fugitivas do céu e das grandes baleias do mar. Tra-lo-íamos, eu e tu, em nossos braços, fazendo do seu canto, ou do seu urro, a música do nosso prazer... Eu o traria sempre comigo, embalando-o, avivando-lhe o espírito, aperfeiçoando-lhe à alma, formando-lhe o coração. Quando eu me fatigasse, tomá-lo-ias, tu, então, no teu regaço... Queres? 

A Morte assentiu, e desceram, ambas, à margem do rio; onde se acocoraram, sombrias, modelando o seu filho.

- Eu darei a água... - disse a Dor, mergulhando a concha das mãos, de dedos esqueléticos, no lençol vagaroso da corrente.
- Eu darei o barro... - ajuntou a Morte, enchendo as mãos de lama pútrida, que o sol endurecera.
E puseram-se a trabalhar. Seca e áspera, a lama se desfazia nas mãos da oleira sinistra que, assim, trabalhava inutilmente.
- Traze mais água! - pedia.
A Dor enchia as mãos no leito do rio, molhava o barro, e este, logo, se amoldava, escuro, ao capricho dos dedos magros que o comprimiam. O crânio, os olhos, o nariz, a boca, Os braços, o ventre, as pernas, tudo se foi formando, a um jeito, mais forte ou mais leve, da escultora silenciosa.
- Mais água! - pedia esta, logo que o barro se tornava menos dócil.

E a Dor enchia as mãos na corrente, e levava-a à companheira.

Horas depois, possuía a Criação um bicho desconhecido. Plagiado da obra divina, o novo habitante da Terra não se parecia com os outros, sendo, embora, nas suas particularidades, uma reminiscência de todos eles. A sua juba era a do leão; os seus dentes, os do lobo; os seus olhos, os da hiena; andava sobre dois pés, como as aves, e trepava, rápido, como os bugios.

O seu aparecimento no seio da animalidade alarmou a Criação. Os uros, que jamais se haviam mostrado selvagens, urravam alto, e escarvavam o solo, à sua aproximação. As aves piavam nos ninhos, amedrontadas e os leões, as hienas, os tigres, os lobos, reconhecendo-se nele, arreganhavam o dentes ou mostravam as garras, como se a terra acabasse de ser invadida, naquele instante, por um inimigo inesperado.

Repelido pelos outros seres, marchava, assim, o Homem pela margem do rio, custodiado pela Dor e pela Morte. No seu espirito inseguro, surgiam, às vezes, interrogações inquietantes. Certo, se aqueles seres se assombravam à sua aproximação, era porque reconheciam, unânimes, a sua condição superior. E assim refletindo, comprazia-se em amedrontar as aves, e em perseguir em correrias desabaladas pela planície, ou pela margem do rio, esquecendo por um instante a Dor e a Morte, os gamos, os cerdos, as cabras, os animais que lhe pareciam mais fracos.

Um dia, porém, orgulhosas do seu filho, as duas se desavieram, disputando-se a primazia na criação do abantesma.

- Quem o criou fui eu! - dizia a Morte. - Fui eu quem contribuiu com o barro!
- Fui eu! - gritava a outra. - Que farias tu sem a água, que amoleceu a lama?
E como nenhuma voz conciliadora as serenasse, resolveram, as duas, que cada uma tiraria da sua criatura a parte com que havia contribuído.
- Eu dei a água! - tornou a Dor.
- Eu dei o barro! - insistiu a Morte.

Abrindo os braços, a Dor lançou-se contra o monstro, apertando-o, violentamente, com as tenazes das mãos. A água, que o corpo continha, subiu, de repente, aos olhos do Homem, e começou a cair, gota a gota... Quando não havia mais água que espremer, a Dor se foi embora. A Morte aproximou-se, então, do monte de lama, tomou-o nos ombros, e partiu...

In. O MONSTRO E OUTROS CONTOS.

Imagem retirada da Internet: Ancestral

Henriqueta Lisboa - Poema



A menina selvagem 




A menina selvagem veio da aurora
acompanhada de pássaros,
estrelas-marinhas
e seixos.
Traz uma tinta de magnólia escorrida
nas faces.
Seus cabelos, molhados de orvalho e
tocados de musgo,
cascateiam brincando
com o vento.
A menina selvagem carrega punhados
de renda,
sacode soltas espumas.
Alimenta peixes ariscos e renitentes papagaios.
E há de relance, no seu riso,
gume de aço e polpa de amora.


Reis Magos, é tempo!
Oferecei bosques, várzeas e campos
à menina selvagem:
ela veio atrás das libélulas.


Publicado: Lírica (1958)

Fonte: Jornal de Poesia
Imagem retirada da Internet: menina selvagem

Henriqueta Lisboa - Poema



Não a face dos mortos. 


Não a face dos mortos.
Nem a face
dos que não coram
aos açoites
da vida.
Porém a face
lívida
dos que resistem
pelo espanto.


Não a face da madrugada
na exaustão
dos soluços.
Mas a face do lago
sem reflexos
quando as águas
entranha.


Não a face da estátua
fria de lua e zéfiro.
Mas a face do círio
que se consome
lívida
no ardor.


Publicado: A Face Lívida (1945)



Fonte: Jornal de Poesia
Imagem retirada da Internet: círio

Henriqueta Lisboa - Poema



Ciranda de mariposas 


Vamos todos cirandar
ciranda de mariposas.
Mariposas na vidraça
são jóias, são brincos de ouro.


Ai! poeira de ouro translúcida
bailando em torno da lâmpada.
Ai! fulgurantes espelhos
refletindo asas que dançam.


Estrelas são mariposas
(faz tanto frio na rua!)
batem asas de esperança
contra as vidraças da lua.


Publicado: Menino Poeta (1943)

Fonte: Jornal de Poesia

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