Renato Russo - Poema



Tempo perdido


Todos os dias quando acordo,
Não tenho mais o tempo que passou
Mas tenho muito tempo
Temos todo o tempo do mundo.


Todos os dias antes de dormir,
Lembro e esqueço como foi o dia:
"Sempre em frente,
Não temos tempo a perder".


Nosso suor sagrado
É bem mais belo que esse sangue amargo
E tão sério
E selvagem.


Veja o sol dessa manhã tão cinza:
A tempestade que chega é da cor dos teus olhos castanhos.
Então me abraça forte e me diz mais uma vez
Que já estamos distantes de tudo:
Temos nosso próprio tempo.


Não tenho medo do escuro, mas deixe as luzes acesas agora.
O que foi escondido é o que se escondeu
E o que foi prometido, ninguém prometeu.


Nem foi tempo perdido;
Somos tão jovens.


Imagem retirada da Internet: Renato Russo

Jacques Prévert - Poema





PARA PINTAR O RETRATO DE UM PÁSSARO



                                                                            Para Elsa Henriquez


Primeiro pintar uma gaiola
com a porta aberta
pintar depois
algo de lindo
algo de simples
algo de belo
algo de útil
para o pássaro
depois dependurar a tela numa árvore
num jardim
num bosque
ou numa floresta
esconder-se atrás da árvore
sem nada dizer
sem se mexer…
Às vezes o pássaro chega logo
mas pode ser também que leve muitos anos
para se decidir
Não perder a esperança
esperar
esperar se preciso durante anos
a pressa ou a lentidão da chegada do pássaro
nada tendo a ver
com o sucesso do quadro
Quando o pássaro chegar
se chegar
guardar o mais profundo silêncio
esperar que o pássaro entre na gaiola
e quando já estiver lá dentro
fechar lentamente a porta com o pincel
depois
apagar uma a uma todas as grades
tendo o cuidado de não tocar numa única pena do pássaro
Fazer depois o desenho da árvore
escolhendo o mais belo galho
para o pássaro
pintar também a folhagem verde e a frescura do vento
a poeira do sol
e o barulho dos insectos pelo capim no calor do verão
e depois esperar que o pássaro queira cantar
Se o pássaro não cantar
mau sinal
sinal de que o quadro é ruim
mas se cantar bom sinal
sinal de que pode assiná-lo
Então você arranca delicadamente
uma das penas do pássaro
e escreve seu nome num canto do quadro.


de “Paroles” (1945)


Tradução de Silviano Santiago




In. Poemas de Jacques Prévert,  Rio de Janeiro: Nova Fronteira - 2000.
Imagem retirada da Internet: Revista Agulha 

Jacques Prévert - Poema


O combate com o anjo



Não vás
Tudo já foi combinado
A luta é fraudulenta
E quando ele aparecer no ringue
Nimbado de relâmpagos de magnésio
Eles entoarão aos berros o TEU DEUM
E antes que te levantes da cadeira
Tocarão os sinos sem parar
Jogarão no teu rosto
A esponja sagrada
E não terás tempo de voar-lhe nas penas
Cairão sobre ti
E ele te golpeará no baixo-ventre
Desabarás
Os braços estupidamente em cruz
Na serragem
E nunca mais poderás fazer amor.


Tradução de Dora Ferreira da Silva



Imagem retirada da Internet: Jacques Prévert

J. Guillén - Poema


Uma Porta



Entreaberta, uma porta.
A quem busca essa luz?
Fluente o claro-escuro.


        Transparente e foge
- Para quem o silêncio -
Um âmbito de clausura.

                       Chama, talvez promete
                  A incógnita. Vislumbres.
                  Pra que sol tal repouso?

        E o trajeto propõe,
Dirige por um ar
Vazio e persuasivo.

         Interior. As paredes
Enquadram bem a incógnita.
Aqui? Nogal, cristal.

                         Um silêncio se isola.
                      Familiar, muito urbano?
                      Cheira a uma rosa diária.

           Porta fechada: longe.
Esta luz é destino?
Então, é face a face...


Tradução de  Dora Ferreira da Silva


Imagem retirada da Internet: Guillén

Allen Ginsberg - Poema





Arte é ilusão, pois eu não ajo


Fico ou Parto – com constante alegria
Meus pensamentos, embora céticos, são sagrados
Santa prece para o conhecimento ou puro fato.

Então enceno a esperança de que posso criar
Um mundo vivo em torno de meus olhos mortais
Um triste paraíso é o que imito
E anjos caídos cujas asas perdidas são suspiros.

Neste estado não mundano em que me movimento
Minha Fé e Esperança são diabólica moeda corrente
Em mundos falsificados, cunho pequenos donativos
Em torno de mim, e troco minha alma por amor.


Tradução Cláudio Willer



Imagem retirada da Internet: Allen Ginsberg

François Villon - Poema




BALADA DA GORDA MARGOT





Se amo e sirvo a dama de bom grado,
Pensareis que sou vil e cabeçudo?
Ela faz tudo que é do meu agrado,
Por seu amor eu cinjo adaga e escudo.
Se vem cliente, a um trago mais graúdo
De vinho me recolho, a um canto perto.
De água, pão, fruta e queijo faço oferta.
“Bene stat” – eu digo a quem mais vaza –
“E volte sempre se embaixo lhe aperta,
Aqui neste bordel que é a nossa casa.”

Mas ocorre que as coisas ficam pretas
Quando sem prata vem dormir Margot.
Mal posso vê-la, de ódio às suas tretas.
Tomo cinto e jaqueta, e o que mais for.
E juro que me servem de penhor.
Ela, punhos nas ancas “Anticristo!”
Grita e jura por Nosso Senhor Jesus Cristo,
Que não dará. Com um pau lhe quebro as asas
E em seu nariz lhe gravo o meu escrito
Aqui neste bordel que é nossa casa.

Depois vem paz e solta um peido bruto,
Venenoso qual sapo dendrobata.
Logo me acerta, rindo, o cocuruto:
“Vem vem, neném”, nas coxas me arrebata.
E dormimos qual saco de batatas.
Pela manhã quando lhe ronca o ventre,
Monta em mi, antes que se gaste dentro
Seu fruto. Gemo – e em cinza faz-se a brasa:
De tanto futucar, eu me desventro,
Aqui neste bordel que é nossa casa.

Vente, chova, neve – e o meu pão foi cozido.
Igual às marafonas, sou servido.
Lá, mau gato a mau rato, bem medido –
Lado a lado – se sabe a maior rasa?
Onde lama é amor, amor é lama.
Nem quer-se a honra ou ela nos reclama
Aqui neste bordel que é nossa casa.

Tradução de Sebastião Uchoa Leite





In. François Villon/Poesia. Edusp, 2000
Imagempintura de Fernando Botero, pintor e escultor colombiano.

François Villon - Poema



Balada dos Enforcados




Irmãos humanos que depois de nós viveis.
Não tenhais duro contra nós o coração.
Porquanto se de nós, pobres, vos condoeis.
Deus vos concederá mais cedo o seu perdão.
Aqui nos vedes pendurados, cinco, seis:
Quanto à carne, por nós demais alimentada.
Temo-la há muito apodrecida e devorada,
E nós, os ossos, cinza e pó vamos virar.
De nossa desventura ninguém dê risada:
Rogai a Deus que a todos queira nos salvar!

Chamamo-vos irmãos : disso não desdenheis.
Apesar de a justiça a nossa execução
Ter ordenado. Vós, contudo, conheceis
Que nem todos possuem juízo firme e são.
Exculpai-nos – que mortos, mortos, nos sabeis -
Com o filho de Maria, a nunca profanada;
A sua graça, para nós, não finde em nada,
No inferno não nos venha o raio despenhar.
Ninguém nos atormente, a vida já acabada.
Rogai a Deus que a todos queira nos salvar!

A chuva nos lavou, limpou-nos, percebeis;
O sol nos ressequiu até à negridão;
Pegas, corvos cavaram nossos olhos – eis! -,
Tiraram-nos a barba, a bico e repuxão.
Em tempo algum tranqüilos nos contempiareis:
Para cá, para lá, o vento de virada
A seu talante leva-nos , sem dar pousada;
Mais que a dedal, picam-nos pássaros no ar.
Não queirais pertencer a esta nossa enfiada.
Rogai a Deus que a todos queira nos salvar!

Príncipe bom Jesus, de universal mandar,
Guardai-nos, ou o infemo nos arrecada:
Lá nada temos a fazer, nada a pagar.
Homens, aqui a zombaria é inadequada:
Rogai a Deus que a todos queira nos salvar!


Tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos


In.Poemas de François Villon. São Paulo: Art Editora, 1986.





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