Ronaldo Costa Fernandes - Poema


Lição de anatomia




Sou coisa.
Algo assemelhado a
lápis ou vela
que para existir se consome
esgrimindo garatujas ou se queimando
no fulgor das palavras ou na luz suicida
que ilumina enquanto se imola.

O bumbo dos solitários é o mesmo dos eufóricos
geme a mesma voz surda
no compasso do tempo das matrizes.

A tarde
com seu invólucro de nuvens
conspira com vozes na liturgia dos alvoroços.

A vida é um erro:
alguns chegam a ser sentenciados
                                     a oitenta anos de vida.






In. Andarilho, Rio, 7Letras, 2000)
Imagem retirada da Internet: vela

Cassiano Ricardo




Desejo




As coisas que não conseguem morrer
Só por isso são chamadas eternas.
As estrelas, dolorosas lanternas
Que não sabem o que é deixar de ser.

Ó força incognoscível que governas
O meu querer, como o meu não-querer.
Quisera estar entre as simples luzernas
Que morrem no primeiro entardecer.

Ser deus — e não as coisas mais ditosas
Quanto mais breves, como são as rosas
É não sonhar, é nada mais obter.

Ó alegria dourada de o não ser
Entre as coisas que são, e as nebulosas,
Que não conseguiu dormir nem morrer.





Imagem retirada da Internet: Nebulosa

Gonçalves Dias - Poema



Louise O´Murphy, de Francois Boucher


Sempre ela

 
Per noctem quaesivi, quam diligit anima
mea et non inveni illam,

Cant.Cant.




Eu amo a doce virgem pensativa,
Em cujo rosto a palidez se pinta,
Como nos céus a matutina estrela!
A dor lhe há desbotado a cor das faces,
E o sorriso que lhe roça os lábios
Murcha ledo sorrir nos lábios doutrem.


Tem um timbre de voz que n'alma ecoa,
Tem expressões d'angélica doçura,
E a mente do que as ouve, se perfuma
De amor profundo e de piedade santa,
E exala eflúvios dum odor suave
De aloés, de mirra ou de mais grato incenso.


E nessas horas, quando a mente aflita,
De dor oculta remordida, anseia
Desabrochar-se em confidência amiga,
"Neste mundo o que sou? — triste clamava;
"Pérsica envolta em pó, entre ruínas,
"Erma e sozinha a resolver-me em pranto!


"Flor desbotada em hástea já roída,
"De cujo tronco as outras amarelas
"Já rojam sobre o pó, já murchas pendem!
"É sentir e sofrer a minha vida!"
Merencória dizia, erguendo os olhos
Aos céus dum claro azul, que lhes sorriam.


Nada o mudo alcion por sobre os mares,
E próximo a seu fim desata o canto;
A rosa do Sarão lá se despenha
Nas águas do Jordão: e como a rosa,
Como o cisne, do mar entre os perfumes,
Aos sons duma Harpa interna ela morria!


E como o partor que avista a linda rosa
Nas águas da corrente, e como o nauta
Que vê, que escuta o cisne ir-se embalado
Sobre as águas do mar, cantando a morte;
Eu também a segui — a rosa, o cisne,
Que lá se foi sumir por clima estranho.


E depois que os meus olhos a perderam,
Como se perde a estrela em céus infindos,
Errei por sobre as ondas do oceano,
Sentei-me à sombra das florestas virgens,
Procurando apagar a imagem dela,
Que tão inteira me ficara n'alma!


Embalde aos céus erguendo os olhos turvos
Meu astro procurei entre os mais astros,
Qu'outrora amiga sina me fadara!
Com brilho embaciado e lua incerta
Nos ares se perdeu antes do ocaso,
Deixando-me sem norte em mar d'angústias.



In. Jornal de Poesia
Imagem retirada da Internet: El Clarin
 

Gonçalves Dias - Poema



Seus olhos


Oh! rouvre tes grands yeux dont la paupière tremble,
Tes yeux pleins de langueur;
Leur regard est si beau quand nous sommes ememble!
Rouvre-les; ce regard manque à ma vie, il semble
Que tufermes ton coeur.
Turquety


Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,
De vivo luzir,
Estrelas incertas, que as águas dormentes
Do mar vão ferir;


Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,
Têm meiga expressão,
Mais doce que a brisa, — mais doce que o nauta
De noite cantando, — mais doce que a frauta
Quebrando a solidão,


Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,
De vivo luzir,
São meigos infantes, gentis, engraçados
Brincando a sorrir.


São meigos infantes, brincando, saltando
Em jogo infantil,
Inquietos, travessos; — causando tormento,
Com beijos nos pagam a dor de um momento,
Com modo gentil.


Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,
Assim é que são;
Às vezes luzindo, serenos, tranqüilos,
Às vezes vulcão!


Às vezes, oh! sim, derramam tão fraco,
Tão frouxo brilhar,
Que a mim me parece que o ar lhes falece,
E os olhos tão meigos, que o pranto umedece
Me fazem chorar.


Assim lindo infante, que dorme tranqüilo,
Desperta a chorar;
E mudo e sisudo, cismando mil coisas,
Não pensa — a pensar.



Imagem retirada da Internet: Olhos Negros

JJ Leandro - Conto


             
O segredo dos hamsters do nazista








Cresci ouvindo todo mundo dizer que o alemão da nossa rua era nazista. Mas só anos depois descobri toda carga de ódio histórico que a palavra carrega. Antes disso o via com olhos indulgentes. Era solitário, e não parecia opção sua. Só isto bastava para eu me encher de pena. Diziam que se isolava porque seus segredos eram tantos e tamanhos que vivia com medo de cometer inconfidências durante o sono que o prejudicassem irremediavelmente. Por isso, diziam também, nem mulher arranjara desde a chegada ao Brasil.
Era criança e pensava na implicância das pessoas como puro despeito por ele viver num belo sobrado ao pé da ladeira entre casas humildes de empregados da fábrica de tecidos que logo cedo acordava o bairro com um apito estridente, descoroçoando os galos nos quintais. Com chuva ou neblina, frio ou calor, os trabalhadores beijavam mulheres e crianças e dirigiam-se pontualmente ao serviço. Ele, no entanto, nunca seguia para trabalho algum. Sua exclusiva ocupação visível era postar-se ao amanhecer no portão de casa qual esfinge, olhos cravados na rua, e uma expressão grave de quem remoía o passado. Ele continuava ali enquanto não passavam todos os trabalhadores de semblantes pesados e soturnos. Em pouco mais de meia hora, o sol mal dissipando a madrugada, a rua voltava ao silêncio. Um ou outro cachorro farejava o magro lixo da gente pobre em busca da primeira refeição do dia. Como não havia mais atrativo ali, o homem voltava a fechar a porta de casa, isolando-se do mundo. Só a abriria novamente quando o apito da fábrica anunciasse o final da jornada. E ficaria à porta, umas vezes sentado em cadeira, outras em pé mesmo, novamente esfinge, não raro sem camisa, os peitos flácidos, a barriga gorda caída sobre o cós da calça escondendo o cinto até quando o último trabalhador passasse. Não permanecia observando o movimento da nova seara de gente que invadia a rua com grande barulho: os estudantes. Durante a movimentação na rua ele não cumprimentava ninguém. Também não reclamava que a contrapartida fosse a indiferença. Tratavam-no como se não existisse, como se fosse a sombra de uma árvore que se alguém acenasse para ela poderia passar por louco.
À porta de casa ou à janela, eu vigiava a sua movimentação, ou melhor, a sua imobilidade com grande interesse. A luz acesa dia e noite no quarto da frente do andar superior também me intrigava. O que tanto fazia trancado naquele ambiente? Achava-o estranho, hábitos misantrópicos em descompasso com a vizinhança acessível e tagarela. Estariam as conversas quase cochichadas dos adultos influenciando meu juízo a seu respeito? Naquele tempo seus hábitos incutiam-me a certeza de que nazista era o mesmo que se enclausurar, esconder-se de tudo e de todos. Certa vez minha mãe criticou a timidez excessiva de minha irmã mais velha, que a mantinha reclusa em casa como uma monja no claustro, e não tive dúvida em vingar-me dela na primeira oportunidade em que me passou raiva: nazista! Levei uma sova e promessas de outras tantas se voltasse a repetir palavrão tão feio.

O nazista saía furtivamente de casa, pude observar, sempre metido no mesmo paletó detweed xadrez, chapéu de feltro na cabeça e olhares desconfiados escrutinando calçadas, becos, cruzamentos das ruas. Não fosse a excessiva desconfiança passaria por um bom velhinho aposentado em roupa comum. O destino de suas saídas era previsível: o banco, o armazém e, com mais frequência, o vendedor de hamsters, que atendia num aviário. Este último destino era o que mais chamava atenção nas redondezas. Inicialmente, o próprio dono do aviário era indiscreto a respeito das visitas do nazista. Falava com português duro de Lisboa que o homem lhe comprava muitos hamsters. E a história da preferência do nazista pelos ratinhos correu a rua de ponta a ponta. Quando ouvi sobre os hamsters do nazista, visitei o desbocado Manuel. E ele não se fez de rogado, vasculhou um livro de vendas e contou os animaizinhos adquiridos pelo homem no último mês: cinquenta, ó miúdo, disse alisando o vasto bigode negro. Mas nem o Manuel, familiarizado no Sudeste Asiático com quem comia cobra e cachorro, sabia o destino dos hamsters do nazista. Disse com pragmatismo sobre a excentricidade: interessa-me que é bom cliente, paga à vista pelos bichinhos e nunca reclama do preço. Que posso querer mais, pá? Virou-me as costas, como a querer reparar o tempo perdido com criança, e pôs muita atenção no desnecessário trabalho de arrumar as já arrumadas gaiolas dos pássaros. Eu voltei intrigado para casa. O que fazia o nazista com tantos hamsters? Um só, dois, vá lá, serviriam de companhia, distração para um homem solitário. Mas um monte deles!? Pior de tudo que o sobrado era um fortim inexpugnável. Outro dia meus pais se deram conta, surpresos, que em dez anos jamais viram vivalma entrar lá. Já que ninguém tinha acesso ao fortim, restou como desforra apelidá-lo de bunker. O segredo dos hamsters era, portanto, indevassável.

Assim a imaginação popular deu asas, ou patas, à fantasia. Havia quem garantisse serem os hamsters o alimento predileto do nazista. Ao ouvir à mesa de refeição meu pai relatar o absurdo que se espalhava pela rua, minha mãe correu ao banheiro aos engulhos. Voltou ainda lívida e furibunda: nunca mais diga coisa tão nojenta à mesa. Ele encolheu os ombros defendendo-se: é o que o povo diz. Meu irmão caçula sublimou a versão nojenta com uma hilária. Para a criançada do colégio, o nazista queria dar continuidade ao desejo megalomaníaco de Hitler de dominar o mundo. Treinava secretamente um exército de hamsters brancos para conquistar países, começando pelo Brasil.

A dificuldade no estabelecimento da verdade e as conjeturas incendiavam as mentes. O mistério em torno dos hamsters crescia como uma bola de neve e naturalmente buscavam-se estratégias para desvendá-lo.

Mas havia os que se negavam a cooperar. O Manuel, arredio afinal, era um deles. Com receio de perder o bom cliente, não se aventurava à mínima especulação junto ao nazista sobre o destino deles. E muitos tinham sido os apelos por ajuda. Defendia-se com a esfarrapada desculpa de que o velhinho e ele trocavam raras palavras. O homem, num português sofrível, que maltratava o clássico ouvido manuelino, mal expressava a quantidade de ratinhos que queria a cada visita; e isso, claro, após sucessivas tentativas mal sucedidas: deizaquinçavintuna, e por aí afora.

Mas como o desfecho de toda história tem a sua hora, a do nazista também chegou. Ninguém o vira viajar, no banco havia dias que não aparecia, no armazém não comprara alimentos nos últimos dias, no Manuel, aonde ia dia sim, dia não, já eram três dias de ausência. Inconformado, o português punha olhos acusadores sobre a clientela: espantaram-me o melhor freguês.

Mas ele não estava com a razão.

Numa manhã em que mais uma vez não abrira a porta para acompanhar o taciturno desfile dos empregados da fábrica de tecidos, a vizinha ao lado, incomodada com o mau cheiro exalado do bunker, acionou os bombeiros. Até eu corri para a massa de gente que rápido se aglomerou diante do sobrado. Antes de escapulir, pus todos em casa em polvorosa: os bombeiros vão arrombar a casa do nazista. Minha mãe gritou da cozinha: Meu Deus é a guerra! Mas eu já estava longe demais para ouvir o que dissera depois, talvez a proibição de ir até lá. Frustração geral. Os bombeiros impediram a aproximação de curiosos. O espanto cresceu quando chegou o rabecão, deu ré e posicionou a traseira colada à porta principal. Por ali retiraram o corpo do velhinho. Bombeiros e rabecão foram embora como chegaram: rápido e com absoluta discrição. Uma coisa era certa: o alemão morrera. E isso virou notícia no bairro.

A tarde reservava mais surpresas. Com a polícia, os repórteres invadiram o bunker em completo alvoroço. Flashs pipocaram na frente da casa, dentro, no quintal, nada escapou às lentes atentas dos fotógrafos. O que havia ali de tão especial a ponto de deixar a imprensa ávida? Havia mais de três décadas que a guerra acabara, os nazistas criminosos, quase sem exceção, haviam sido capturados e julgados, a maioria já estava inclusive morta. Não havia mais peixe graúdo escondido. Não, não havia sido descoberto um nazista importante em minha rua. Os repórteres também se foram menosprezando a ralé operária. Um mais atencioso cifrou resposta a minha súplica: leia amanhã a Tribuna.

No dia seguinte o nazista, de fato, era manchete principal em todos os jornais da cidade. O legista antecipara ataque cardíaco como a causa da morte. Fotos dele jovem com o uniforme da SS e velhinho como o conhecíamos na rua encimavam o seu nome alemão: Hans Grüber. Então despertei para o fato de a rua toda conhecê-lo só por nazista. Um estigma pessoal com que nunca se incomodara. Nem quando surpreendia um resto de conversa à sua aproximação: lá vem o nazista.

Fora guarda no campo de concentração de Treblinka. Mas não pesava sobre ele qualquer acusação de crime de guerra. A página interna, inteirinha, trazia com detalhes o motivo de tanto estardalhaço sobre o homem.

Grüber montara em casa, no grande quarto da frente do andar superior, o mesmo que tinha as luzes constantemente acesas e me chamavam atenção, uma réplica diminuta do campo de concentração de Treblinka. Havia até tabuleta com nome pintado. Em minudências, nada faltava: a locomotiva a pilha que percorria o quarto para deixar as vítimas no campo; os grandes alojamentos como galpões de fábrica; a câmara de gás que, cheia de vítimas, recebia dose letal de monóxido de carbono. Em estrutura paralela, o forno crematório. As anotações de Grüber em livro caixa repetiam a meticulosa organização nazista: nos últimos 10 anos sacrificara mais de cinco mil vítimas. As vítimas, algumas delas libertadas pelos bombeiros raquíticas pela privação de alimentos, pasmem, eram os inofensivos hamsters.


Imagem tirada da Internet: campo de concentração

JJ Leandro - Conto



Garotas, cuba libre e cigarros




Carolina oferecia a noite para diversão de um adolescente de minha idade no final da década de 1970. E só. A partir da sexta-feira, formava um grupo com amigos do colégio e apostava quem beijaria primeiro uma garota na boate Itapuã. Íamos mesmo a pé porque ninguém tinha carro, chutando gorgulho e cachorro nas ruas sem calçamento até a beira do rio. A Itapuã era um quiosque de madeira, grande e redondo, pregado perigosamente no barranco do Tocantins. De longe o ritmo rebolante da dance music excitava nossas libidos. Lá dentro as meninas esperavam o nosso assédio. Convencional, quase um tácito jogo de gato e rato.
Udinei, baixinho falante, cabelos pretos e lisos, adiantava-se ao grupo, fazia-o estacar quase com a autoridade de um comandante que põe o pelotão em ordem antes da batalha, para defender com ares de péssimo filósofo a igualdade entre os sexos:
— Se nós estamos loucos por uns beijos, elas não estão menos.
Um estímulo e tanto para quem era tímido, a maioria em certa medida, pois inexperientes éramos todos com absoluta certeza.
Crisóstomo, magro desengonçado, olhava-o calado enquanto conferenciava. Após longos tragos no cigarro soltava seu desdém com a fumaça:
— De novo não, né, Udinei.
Meu palpite era que o baixinho não convencia nem a si mesmo, pois voltava para casa sempre invicto, esmagado pela gozação geral.
— O que foi Udinei, nenhuma delas te viu? Não olharam para baixo, foi isso?
Encabulado, perdia a loquacidade na volta. Parecia invisível na noite escura. Às vezes Rocha Filho, por pura compaixão, cingia-lhe o pescoço com uma amigável chave de braço, fazia cafunés em seus cabelos, desalinhando-os enquanto o consolava:
— Amigo, darás um excelente contador. És perfeito com os números.
As tremendas gargalhadas do Samuel, moleque alto e esguio, vestido sempre com esmero, pontuavam o trajeto na volta. Tão mais altas quanto mais bêbado estivesse. A gargalhada destoava do conjunto equilibrado. Explodia como petardo na guerra a cada provocação. Impressionava-me arrancar tão poderoso som de um corpo frágil de bailarino. Quem cruzasse na rua conosco esperava surgir como autor da façanha na noite escura um estivador hercúleo, como os dos barcos do rio, não um rapazote franzino que gomalinava os cabelos crespos.
A invasão da pista de dança, um tabuado suspenso no abismo onde as meninas requebravam soltas aos gemidos de gata no cio de Donna Summer em Love to Love You Baby, não era o primeiro destino na chegada. Havia um rito preparatório, menos regra de uma confraria e mais a tácita e inconfessável incapacidade de abordar as meninas com a cara limpa. Sentávamos em mesinhas no pátio dianteiro, uma espécie de bar, único espaço em terra firme na Itapuã. Ali atacávamos de cuba libre, para colocar rápido a coragem à flor da pele. Lá dentro, os tímidos cordeirinhos viravam extrovertidos leões, virgens pesavam os prós e os contras de seus atos; ainda não era a moda pra valer, mas homem também se travestia: metade homem, metade bicho; decididamente, além de tudo isto, com o Zodiac de Roberta Kelly era impossível segurar peixe no aquário. O jogo de luzes cortava a escuridão paralisando os movimentos das pessoas. Mas fora ainda éramos mais estátuas que os lá de dentro. Tinha vontade, conforme o álcool migrava do copo para a cabeça, de entrar logo e ver o que aconteceria. Mas via nos rostos graves dos colegas, entre goles de bebida e tragos de cigarro, que a precaução ainda conseguia frear a audácia que o coquetel de música e álcool aos poucos fazia crescer. Ainda não é hora, acautelava-me. Só levantávamos dali após muita bagana de cigarro no chão e copos vazios. Estimulados, era o triunfo ou o vexame. Valia a máxima: ou vai ou racha.

Em mais uma noite na boate, senti que chegara minha vez de me dar bem. A loirinha, cabelos curtos batidos na nuca à Jean Seberg, que já vira no colégio algumas vezes, sorria para mim. Inseguro ainda mudei de posição na pista para certificar-me de que não estava na direção de quem ela olhava. Rocha Filho que, apesar das muitas cubas libres a mais que eu na cabeça, jamais perdia o faro de caçador me cutucou:
— É você mesmo, poeta. Ela tá parada em você.
Aproximei-me mais, os colegas incentivando e marcando o ritmo de I Feel Love com palmas. Senti-me na berlinda. Tinha a minha chance, ou me dava bem ou fracassava. Depois outro arriscaria com nova garota. O pisca-pisca das luzes e os reflexos do globo espelhando geometrias nos corpos afundavam a realidade num abismo labiríntico comum a quem está perdido em caminho nunca trilhado. Poeta, ouça Udinei: toda senda resulta em labirinto a quem não conhece o caminho. Mas estavam ali, diante de mim, dentes alvos e perfeitos, boca sorridente que merecia beijos, olhos brilhantes e incisivos na escuridão. Guias perfeitos para atingir o amor livre de qualquer contratempo. Era só segui-los. Mas o que fazer para acompanhá-la em Only the Good Die Young? Me enredava em seus bamboleios. Estava mais desnorteado que o rapaz da música de Billy Joel com sua garota católica. Ouvi um eco longínquo dizer, e era o Crisóstomo: está apanhando feio, hein, poeta? Como numa conjura, Samuel estalou uma das suas terríveis gargalhadas. Fora quem mais bebera. Udinei, a autoestima pisada por todos na pista de dança, com certeza tinha olhos somente para seu infortúnio: já pensava que seria novamente o Cristo da turma.
Linda a minha boneca alemã de porcelana, a minha musa da nouvelle vague. Qualquer um embarcaria na sua onda. Magrinha, beleza displicentemente largada na calça capri e na blusa de algodão branco sem mangas. Um conjunto perfeito para uma noite tropical quente. O desejo é uma armadilha que realça, para nos iludir, as qualidades de quem queremos conquistar. A advertência do pobre filósofo Udinei invadiu meus pensamentos: poeta, isso nada mais é que a cegueira do amor. Quer dizer que você foi fisgado. Às favas todos eles. O corpo da minha Jean Seberg pedia carinho. Toques delicados que a minha inexperiência poderia converter em desastres. A indecisão durou minutos. Para o desenlace, teria que fugir dali. Cacei a mão dela na escuridão e a senti gelada, viscosa, apesar da estufa infernal que era a boate cheia e vibrante. Estava aterrorizada, sem dúvida. Minha confiança cresceu, afinal estávamos em pé de igualdade, como pregava o mau filósofo. Arrastei-a dali, sentamo-nos à mesa colada à parede de madeira. Um janelão abria-se para o precípio escuro, o rio estava logo abaixo. Corria vertiginoso, solerte, traiçoeiro como o amor.
Ainda nos apresentávamos quando o garçom nos atendeu. Cuba libre pra mim, Laura pediu guaraná. At Seventeen abriu caminho aos primeiros carinhos. Começaram nos dedos e prontamente subiram à boca. Ela anuiu encostando a cabeça em meu ombro. Lábios carnudos, doces, saliva, suor e batom. Vertigem com Jean Seberg e Janis Ian. Música alta, Nobody Does it Better. Uma pergunta dela: você é o espião que me ama? Completamente, amor. Tornamo-nos o show da noite. Ávidos beijos, mãos atrevidas e incansáveis que o escuro da boate não ocultava.
O garçom voltou.
— Nada por hora, xará — despachei, a cabeça por cima do ombro dela.
Ele sorriu insistente.
—Jovens, o gerente pediu moderação. O ambiente é familiar.
A escuridão foi incapaz de esconder as faces rubras de Laura. Tornaram-se fluorescentes, destacaram-se. Queria ir embora. Prontifiquei-me a levá-la. O meu irmão tá lá fora, pode deixar, desobrigou-me. Vou com você, obstinei-me. Confusa ainda rendeu-se rápido: você que sabe.
Embananei-me, o irmão dela era o Haroldo, colega de aula. Noivo, não integrava a nossa turma dos finais de semana. Tinha um fusquinha. Abriu a boca quando nos viu juntinhos. Desconcertado, alisou o bigodinho ruivo com dedos de nicotina.
— Mano, me leva embora.
— Agora?
— Sim.
Intrometi-me.
— Vou junto.
Haroldo franziu o cenho, alisou os cabelos finos da cor do bigodinho. Tentando disfarçar o incômodo, queixou-se sem muita ênfase:
— Porra, poeta, tanta garota aí e você acerta logo em minha irmã.
Sorri desconcertado, mas fui autêntico:
— Cara, não sabia quem ela era. Nada pessoal, Haroldo. Bom que agora somos cunhados.
— Você é sem-vergonha — disse num quase sorriso.
Entramos no fusquinha. Na frente, Haroldo e a noiva. Atrás, eu e Laura novamente audaciosos. O garçom ficara na Itapuã.

Álvares de Azevedo - Poema


pieds et lis de madonna humides Banque d'images - 501964
Quand on te voit, il vient à maints
Une envie dedans les mains
De te tâter, de te tenir...

Clément Marot



Seio de virgem 

 


O que eu sonho noite e dia,
O que me dá poesia
E me torna a vida bela,
O que num brando roçar
Faz meu peito se agitar,
E' o teu seio, donzela!
 

Oh! quem pintara, o cetim
Desses limões de marfim,
Os leves cerúleos veios,
Na brancura deslumbrante
E o tremido de teus seios!
 

Quando os vejo, de paixão
Sinto pruridos na mão
De os apalpar e conter...
Sorriste do meu desejo?
Loucura! bastava um beijo
Para neles se morrer!
 

Minhas ternuras, donzela,
Votei-as à forma bela
Daqueles frutos de neve...
Aí duas cândidas flores
Que o pressentir dos amores
Faz palpitarem de leve.
 

Mimosos seios, mimosos,
Que dizem voluptuosos:
"Amai-nos, poetas, amai!
"Que misteriosas venturas
"Dormem nessas rosas puras
E se acordarão num ai!"
 

Que lírio, que nívea rosa,
Ou camélia cetinosa
Tem uma brancura assim?
Que flor da terra ou do céu,
Que valha do seio teu
Esse morango ou rubim?
 

Quantos encantos sonhados
Sinto estremecer velados
Por teu cândido vestido!
Sem ver teu seio, donzela,
Suas delícias revela
O poeta embevecido!
 

Donzela, feliz do amante
Que teu seio palpitante
Seio d'esposa fizer!
Que dessa forma tão pura
Fizer com mais formosura
Seio de bela mulher!
 

Feliz de mim... porém não!...
Repouse teu coração
Da pureza no rosal!
Tenho eu no peito uma aroma
Que valha a rosa que assoma
No teu seio virginal?...

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