Brasigóis Felício - Ensaio curto


Bomba

A burrice da bomba
                                                                                              



Cada um sabe onde é mar ou onde é sertão na paisagem da sua solidão. A memória de ter sido é a mais recôndita e difícil lembrança. O fato de esquecermos passagens de nossa vida tem uma explicação: é que, quando as vivemos, não estivemos conscientes, ou estávamos mergulhados em sono profundo, a dormir pesadamente.

O homem só sabe que não sabia depois que aprendeu. Mas quase nunca aprendemos, pelo simples fato de não saber que não sabemos, ou de não querer saber. Pensar que se tem consciência é o caminho certo para não tê-la. Toda ilusão de nossas vidas se baseia na certeza de que sabemos, podemos fazer tudo o que quisermos, e que temos controle sobre nossos atos, pensamentos e palavras.

Se não fosse tão profundo o sono em que vivemos, poderíamos não ser tão mecânicos, e querer despertar. Mas, não tendo consciência de que estamos adormecidos, precisamos ser despertados por alguém que esteja (ou seja) acordado. Assim como, para sair de uma prisão, primeiro teríamos que ter consciência de que ali estamos como prisioneiros. O que nos mantém prisioneiros dentro de nós mesmos é não saber que não há liberdade sem consciência, nem consciência sem liberdade.
Sair sozinhos seria quase impossível. Teríamos de contar com ferramentas que só poderiam vir de fora. E também da ajuda de outros prisioneiros, que desejassem se libertar.
Sem falar no imprescindível auxílio dos que, tendo sido prisioneiros, quiseram se libertar, e o conseguiram. Conhecem, portanto, os caminhos que tornam possível (mas não certa) a libertação.
*
Distorcemos o princípio mental a ponto de chamar uma bomba de inteligente. Ou de considerar santa uma guerra insana, ou que o acúmulo de bens materiais define a felicidade e a qualidade de vida de um povo, observou Sérgio Moraes. Associamos a felicidade a um determinado estado mental ou emocional, não sabendo que tudo faz o seu caminho e ascensão e de queda. Como bem diz o samba: “O que dá pra rir/dá pra chorar/ Questão só de peso e medida/Problema de hora e lugar/”.
 A visão que compreende é o pensamento (ou a ação) que transforma o sonho em realidade não a que proclama à praça ser dona da verdade, e gerente de consciências. Afinal, uma pandemia acadêmica seria aquela em que a vaidade tomasse de assalto uma cidade, e contaminasse todas as suas possíveis verdades. 

Brasigóis Felício é Poeta e Jornalista, Membro da Academia Goiana de Letras. 



Foto retirada da Internet: Bomba

Castro Alves - Poema



                                                                  Foto by Maldivas




A Tarde




Era a hora em que a tarde se debruça
Lá da crista das serras mais remotas...
E d'araponga o canto, que soluça,
Acorda os ecos nas sombrias grotas;
Quando sobre a lagoa, que s'embuça,
Passa o bando selvagem das gaivotas...
E a onça sobre as lapas salta urrando,
Da cordilheira os visos abalando.

Era a hora em que os cardos rumorejam
Como um abrir de bocas inspiradas,
E os angicos as comas espanejam
Pelos dedos das auras perfumadas...
A hora em que as gardênias, que se beijam,
São tímidas, medrosas desposadas;
E a pedra... a flor... as selvas... os condores
Gaguejam... falam... cantam seus amores!

Hora meiga da Tarde! Como és bela
Quando surges do azul da zona ardente!
,Tu és do céu a pálida donzela ...
Que se banha nas termas do oriente...
Quando é gota do banho cada estrela,
Que te rola da espádua refulgente...
E, — prendendo-te a trança a meia lua,
Te enrolas em neblinas seminua!...

Eu amo-te, ó mimosa do infinito!
Tu me lembras o tempo em que era infante.
Inda adora-te o peito do precito
No meio do martírio excruciante;
E, se não te dá mais da infância o grito
Que menino elevava-te arrogante,
É que agora os martírios foram tantos,
Que mesmo para o riso só tem prantos!...

Mas não m'esqueço nunca dos fraguedos
Onde infante selvagem me guiavas,
E os ninhos do sofrer que entre os silvedos
Da embaíba nos ramos me apontavas;
Nem, mais tarde, dos lânguidos segredos
De amor do nenufar que enamoravas...
E as tranças mulheris da granadilha!...
E os abraços fogosos da baunilha!...

E te amei tanto — cheia de harmonias
A murmurar os cantos da serrana, —
A lustrar o broquel das serranias,
A doirar dos rendeiros a cabana...
E te amei tanto — à flor das águas frias —
Da lagoa agitando a verde cana,
Que sonhava morrer entre os palmares,
Fitando o céu ao tom dos teus cantares!...

Mas hoje, da procela aos estridores,
Sublime, desgrenhada sobre o monte,
Eu quisera fitar-te entre os condores
Das nuvens arruivadas do horizonte...
,Para então, — do relâmpago aos livores ...
Que descobrem do espaço a larga fronte, —
Contemplando o infinito..., na floresta
Rolar ao som da funeral orquestra!!!

In. Domínio Público

Castro Alves - Poema




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A uma estrangeira



Lembrança de uma noite no mar
Sens-tu mon coeur, comme U palpite?
Le tien comme il battait gaiement!
Je m'en vais pourtant, ma petite,
Bien loin, bien vite, Toujours t'aimant.
(Chanson)


Inês! nas terras distantes,
Aonde vives talvez,
Inda lembram-te os instantes
Daquela noite divina?...
Estrangeira, peregrina,

Quem sabes?-Lembras-te, Inês?
Branda noite! A noite imensa
Não era um ninho?-Talvez!...
Do Atlântico a vaga extensa
Não era um berço? — Oh! Se o era...
Berço e ninho... ai, primavera!

O ninho, o berço de Inês.
Às vezes estremecias...
Era de febre? Talvez...
Eu pegava-te as mãos frias
P'ra aquentá-las em meus beijos...
Oh! palidez! Oh! desejos!

Oh! longos cílios de Inês.
Na proa os nautas cantavam;
Eram saudades?... Talvez!
Nossos beijos estalavam
Como estala a castanhola.:.

Lembras-te acaso, espanhola?
Acaso lembras-te, Inês?
Meus olhos nos teus morriam...
Seria vida?-Talvez!
E meus prantos te diziam:
"Tu levas minh'alma, ó filha,
Nas rendas desta mantilha...

Na tua mantilha, Inês!"
De Cadiz o aroma ainda
Tinhas no seio... — Talvez!
De Buenos Aires a linda,
Volvendo aos lares, trazia
As rosas de Andaluzia




In. Domínio Público
Imagem by russian brides

Castro Alves - Poema



A duas flores





São duas flores unidas,
São duas rosas nascidas
Talvez no mesmo arrebol,

Vivendo no mesmo galho,
Da mesma gota de orvalho,
Do mesmo raio de sol.
Unidas, bem como as penas
Das duas asas pequenas
De um passarinho do céu...

Como um casal de rolinhas,
Como a tribo de andorinhas
Da tarde no frouxo véu.
Unidas, bem como os prantos,
Que em parelha descem tantos
Das profundezas do olhar...

Como o suspiro e o desgosto,
Como as covinhas do rosto,
Como as estrelas do mar.
Unidas... Ai quem pudera
Numa eterna primavera
Viver, qual vive esta flor.

Juntar as rosas da vida
Na rama verde e florida,
Na verde rama do amor!



In. Domínio Público
Imagem: vida sol e mar

Castro Alves - Poema





Amante





"Basta, criança! Não soluces tanto...
Enxuga os olhos, meu amor, enxuga!
Que culpa tem a clícia descaída
Se abelha envenenada o mel lhe suga?

"Basta! Esta faca já contou mil gotas
De lágrimas de dor nos teus olhares.
Sorri, Maria! Ela jurou pagar-tas
No sangue dele em gotas aos milhares.

"Por que volves os olhos desvairados?
Por que tremes assim, frágil criança?
Est'alma é como o braço, o braço é ferro,
E o ferro sabe o trilho da vingança.

"Se a justiça da terra te abandona,
Se a justiça do céu de ti se esquece,
A justiça do escravo está na força...
E quem tem um punhal nada carece!...

"Vamos! Acaba a história... Lança a presa...
Não vês meu coração, que sente fome?
Amanhã chorarás; mas de alegria!
Hoje é preciso me dizer — seu nome!"




In.Domínio Público
Imagem retirada da Internet: flôr

Castro Alves - Poema


Não quero outro amor




"Eu não quero outro amor; não quer a abelha
Um novo cetro se o primeiro cai;
Iramaia viúva nos desertos,
Peregrina chorando — a morte atrai.


Eu não quero outro amor; sou como o cervo
Que a raiz encontrou no jibatã;
Ali se abriga na floresta escura,
Lá viu-o a noite, e vê-lo-á a manhã.


Eu não quero outro amor; não quer a paca
Mais de um caminho, procurando o rio,
Ali a espera o caçador malvado,
Ali ferida, soluçou, caiu.


Eu não quero outro amor — sou como o índio
Que caminha buscando o Taracuá:
Afeito ao fogo da escolhida planta
Vai andando e rejeita o Biribá.


Eu não quero outro amor — não quer a planta
Outra seiva, outro sol, estranho chão:
Não cresce longe, mas definha e prende
Amando o sol que encubara o grão.


Eu não quero outro amor; sou como a seta
Que num vôo somente corta o ar;
Se perde o golpe tomba logo inerte
Entra o índio sem caça o tijupar.


Eu a vítima fui da seta ervada,
De plumas verdes, venenoso fio;
Mas não quero outro amor, ajoelho e beijo
O pó da campa que este amor abriu.


Porque eu sou como a abelha que rejeita
Um novo cetro se o primeiro cai;
Iramaia perdida nos desertos
Peregrina, chorando a morte atrai."





In. Domínio Público
Imagem retirada da Internet: Mal me quer

Castro Alves - Poema



O "adeus" de Teresa




A vez primeira que eu fitei Teresa,
Como as plantas que arrasta a correnteza,
A valsa nos levou nos giros seus
E amamos juntos E depois na sala
"Adeus" eu disse-lhe a tremer co'a fala


E ela, corando, murmurou-me: "adeus."


Uma noite entreabriu-se um reposteiro. . .
E da alcova saía um cavaleiro
Inda beijando uma mulher sem véus
Era eu Era a pálida Teresa!
"Adeus" lhe disse conservando-a presa


E ela entre beijos murmurou-me: "adeus!"


Passaram tempos sec'los de delírio
Prazeres divinais gozos do Empíreo
... Mas um dia volvi aos lares meus.
Partindo eu disse - "Voltarei! descansa!. . . "
Ela, chorando mais que uma criança,


Ela em soluços murmurou-me: "adeus!"


Quando voltei era o palácio em festa!
E a voz d'Ela e de um homem lá na orquesta
Preenchiam de amor o azul dos céus.
Entrei! Ela me olhou branca surpresa!
Foi a última vez que eu vi Teresa!


E ela arquejando murmurou-me: "adeus!"



In.Poesias completas. São Paulo, Nacional, 1959.
Imagem retirada da Internet: folha seca

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