Dora Ferreira da Silva - Poema




Elegia dos Golfinhos





Viu (porque só ver podia)
sem interferir: eles feriam
o cardume denso dos golfinhos, armadura azulada
protegendo atuns. Eram estes o alvo cobiçado
para as latarias de consumo. Tudo servia
aos velhacos: matemática, um navio branco
— noivo da Morte —, redes atiradas
em círculo perfeito e nefasto perto do cardume.
Tiros ecoavam no ar, encapelando
a ordem bela dos golfinhos no caos turbilhonante.
Aprisionados, eles se contorciam em desespero.

Lamentem-se os coros sagrados de Netuno
acorram Nereidas, Anfitrite em lágrimas com
seus cavalos marinhos em torno das malévolas mandalas
de redes sobre o mar. Ó Nova Idade, não vês tantas
formas desfeitas, não vês que o rei Midas
tudo transforma agora no ouro do negócio?
Os golfinhos tranqüilos começam a morder.
Ah, cascata iridiscente no limiar da morte
em dança fúnebre! É o anti-Cristo no coração dos homens,
o usurpador, o peixe voltado para a esquerda, involutivo.

Mercância vil contaminando cabeças
e corações! Vociferem as pitonisas
de cabelos soltos, pálpebras emaciadas!
São os golfinhos os novos educadores
com sua graça natural, com sua dança
que a morte não detém. Eles propõem música.


Imagem retirada da Internet: Golfinhos 

Francisco Perna Filho - Poema




Comida Caseira




Cansado
de aventuras
extraconjugais,
lembrou-se da mulher
e voltou para casa.


Imagem retirada da Internet: Cinta-liga

Francisco Perna Filho - Poema




Criação



Na quarta,
eu recolho as cinzas,
dissipo as cismas,
enceto a rima,
sem olhar para
trás.

Na quarta,
retomo a messe,
componho a prece,
celebro a vida.


Imagem: Michelângelo: A Criação de Adão

Pio Vargas Abadio Rodrigues - Poema







Aviário de Naus


Nunca fui de vigiar espantos.
Sobrevivo ante a urgência
de cada mínima coisa
imaginando o que pode advir
quando o semáforo
sorrir
O verde e o corpo em disparada
romper o ritmo:
oceano a morrer de sede.


Pequeno
eu inventava demônios
só pelo prazer de os ter
a povoar neurônio.

Pequeno ainda
imaginava abismos
sob os cabelos
penhascos
planícies
novelos
só para vestir
os lugares mais distantes
onde armo duelos
com espelhos.

Hoje
o inquilino que me habita
cintila nos relógios
de praça e pulso
sem reparar no corpo
o dédalo tempero
de um oceano avulso.
sem descobrir
que o equilíbrio
supera o efeito
e se fantasma ou glândula
isso que limita o peito.

Eu sempre soube
que um pedaço de gelo
carrega o fogo
que não lhe coube.

E cresci sem planos
como vão crescendo
os fantasmas
pela noite dos anos.

Agora
fico a moldurar delírios
como se inventasse mundos
planetas
galáxias inteiras
em mínimas letras.

Sei-me de fato
a geração de suicidas
que optou por adiar o ato.
Tenho razões indizíveis
para acreditar em nada
e apenas ficar por perto
por perto, apenas,
como se a vontade
fosse descartável
e isso de insônia
tivesse pouco a ver
com a didática da fome
de memória inadiável.

As gaiolas de agora
Ao meio dia a vida é outra
mas não se encontra jamais
a ilusória porta inicial:

Vive-se muito pelo pouco
já que nascer
foi a mera aula inaugural.

Por isso
dei de sequestrar manhãs
só para modelar os relógios
e tecer
fio a fio
as horas vãs
lás
a costurar vazios pelos cômodos divãs

Aprendi que a vida grassa
mas não passa de rima fácil.

Velho

acho que valho
a idade dos espelhos
o tempero dos sais
a metafísica do cais
e mais
um aviário de naus
que pediu concordatas
e passou pelas datas
usuário do caos.



Poema vencedor do Gremi de 1989, 1º lugar.



In.Historiografia Goiana.
Imagem retirada da Internet: Naus

Noel Rosa - Poema





Pierrô apaixonado


Um Pierrô apaixonado,
Que vivia só cantando,
Por causa de uma Colombina
Acabou chorando... Acabou chorando...

A Colombina entrou num butiquim,
Bebeu, bebeu, saiu assim, assim
Dizendo: "Pierrô, cacete!
Vai tomar sorvete com o Arlequim!"

Um grande amor tem sempre um triste fim.
Com o Pierrô aconteceu assim.
Levando esse grande chute,
Foi tomar vermute com amendoim.



Imagem retirada da Internet: Máscara

Francisco Perna Filho - Poema


Atrás do curral



Atrás do curral,
mora uma fada,
que se enfeita
de folhas e pimentas
vermelhas.
à noite,
quando se deita,
iludida pelos pássaros,
que passeiam no seu ventre,
entrega-se a rosas e risos,
para, depois,
serenar
adormecida.


Do livro inédito Venerada Veneranda.




Imagem retirada da Internet: pimentas

Francisco Perna Filho - Poema




Passagem




Sob a ponte,
a fonte,
um passado em torrente,
um menino acena para sua mãe.
A água é fria,
a vida larga,
os olhos do menino
devoram o céu imenso.
Ninguém sobrou
para contar a história.
Só a memória,
e é essa
ficção.


Imagem retirada da Internet: ponte

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