Gilberto Mendonça Teles - Poema


















Simplesmente


Não quero mais ouvir falar de poesia
antiga tradicional ou moderna
trovadoresca clássica ou barroca
arcádica romântica ou realista

Não quero mais ouvir falar de poesia
simbolista unanimista ou futurista
vanguardista cubista ou dadaísta
surrealista ou modernista

épica lírica satírica ou dramática
religiosa mística ou goliardesca
cósmica anacreôntica ou semiótica

e muito menos de poesia
bucólica cortês, popular ou engajada
abstrata concreta cinética pura impura
experimental visual sonora ou táctil

Quero é pedir como Mário Quintana
- Retire todos os adjetivos e estará
ressalvada a Poesia.
Eu quero a Poesia, simplesmente.


In. Linear G. São Paulo: Hedra, 2010, 40-1.

João Guimarães Rosa - Poema



Consciência Cósmica




Já não preciso de rir.
Os dedos longos do medo
largaram minha fronte.
E as vagas do sofrimento me arrastaram
para o centro do remoinho da grande força,
que agora flui, feroz, dentro e fora de mim...


Já não tenho medo de escalar os cimos
onde o ar limpo e fino pesa para fora,
e nem deixar escorrer a força dos meus músculos,
e deitar-me na lama, o pensamento opiado...


Deixo que o inevitável dance, ao meu redor,
a dança das espadas de todos os momentos.
e deveria rir, se me retasse o riso,
das tormentas que poupam as furnas da minha alma,
dos desastres que erraram o alvo do meu corpo...



In. Magma - Fonte: Jornal de Poesia
Imagem by Alexandre Lettnin: redemoinho

João Guimarães Rosa - Poema


Luar



De brejo em brejo,
os sapos avisam:
--A lua surgiu!...


No alto da noite as estrelinhas piscam,
puxando fios,
e dançam nos fios
cachos de poetas.


A lua madura
Rola,desprendida,
por entre os musgos
das nuvens brancas...
Quem a colheu,
quem a arrancou
do caule longo
da via-láctea?...


Desliza solta...


Se lhe estenderes
tuas mãos brancas,
ela cairá...



In. Magma - Fonte: Jornal de Poesia
Imagem retirada da Internet: Luar

João Guimarães Rosa - Poema


No Araguaia – I




Nestas praias sem cercas e sem dono
do velho Araguaia,
achei um amigo, escuro,
de cara pintada a jenipapo e urucum:
o carajá Araticum – uassu



Seus músculos são cobras grossas
que incham sobre o couro moreno;
suas narinas têm sete faros;
e nos seus ouvidos há cordas sutis, onde ressoa o pio
curto e triste,
que, mais de um quilometro distante,
solta o patativo borrageiro.



Quando o rio ensolado enruga, em qualquer ponto,
a lâmina lisa de níquel molhado,
ele traduz , na esteira da mareta,
com o binóculo faiscante dos olhos,
o tamanho e a raça do peixe navega escondido.
E a flechada vai arpoar, certeira , debaixo d’água,
o pacamã ou o pirarucu.



A mata não lhe dá mais surpresas
(tem vinte presas onça preta no colar),
nem o rio lhe conta mais novidades
(ele é capaz de flutuar , até dormindo,
correnteza abaixo, como um pau de pita).



Hoje eu lhe perguntei:
--“Como foi feito o mundo,
ó meu patrício Araticum Uassu?...”
Ele riu, deu um mergulho no rio,
e emergiu, com a cabeleira em gotas,
sem precisar de falar...
— “Bem, mas o que é mesmo a vida, meu irmão moreno?...”


Araticum-uassu riu com mais gosto ainda,
e saiu a remar, com esforço simulado,
tangendo a piroga corredeira acima...
--“Muito bem, amigo, quero saber, agora,
o que pensas do amor...”


Desta vez ele não riu --- franziu o rosto,
e jogando fora o remo de taquara,
deitou-se na canoa, indiferente,
com olhos fechados, braços cruzados,
e deixando-se levar pela corrente, à-toa,
sumiu na curva,atrás do saranzal...




In. Magma - Fonte: Jornal de Poesia

Imagem retirada da Internet: Araguaia

T.S. Eliot - Poema

T.S. EliotT.S. EliotT.S. EliotT.S. Eliot

ERONTION's



Thou hast nor youth nor age, But, as it were,
an after dinner's sleep, Dreaming on both.
(William Shakespeare, Measure for Measure,
"Não és jovem nem velho, / mas como, se após o jantar
adormecesses,/ Sonhando que ambos fosses.")





Eis-me aqui, um velho em tempo de seca,
Um jovem lê para mim, enquanto espero a chuva.
Jamais estive entre as ígneas colunas
Nem combati sob as centelhas de chuva
Nem de cutelo em punho, no salgado imerso até os joelhos,
Ferroado de moscardos, combati.
Minha casa é uma casa derruída,
E no peitoril da janela acocora-se o judeu, o dono,
Desovado em algum barzinho de Antuérpia, coberto
De pústulas em Bruxelas, remendado e descascado em Londres.
O bode tosse à noite nas altas pradarias;
Rochas, líquen, pão-dos-pássaros, ferro, bosta.
A mulher cuida da cozinha, faz chá,
Espirra ao cair da noite, cutucando as calhas rabugentas.
E eu, um velho,
Uma cabeça oca entre os vazios do espaço.


Tomaram-se os signos por prodígios: "Queremos um signo!"
A Palavra dentro da palavra, incapaz de dizer uma palavra,
Envolta nas gazes da escuridão. Na adolescência do ano
Veio Cristo, o tigre.
Em maio cqrrupto, cornisolo e castanha, noz das
faias-da-judéia,
A serem comidas, bebidas, partilhadas
Entre sussurros; pelo Senhor Silvero
Com suas mãos obsequiosas e que, em Limoges,
No quarto ao lado caminhou a noite inteira;
Por Hakagawa, a vergar-se reverente entre os Ticianos;
Por Madame de Tornquist, a remover os castiçais
No quarto escuro, por Fraülein von Kulp,
A mão sobre a porta, que no vestíbulo se voltou.
Navetas ociosas
Tecem o vento. Não tenho fantasmas,
Um velho numa casa onde sibila a ventania
Ao pé desse cômoro esculpido pelas brisas.


Após tanto saber, que perdão? Suponha agora
Que a história engendra muitos e ardilosos labirintos,
estratégicos
Corredores e saídas, que ela seduz com sussurrantes ambições,
Aliciando-nos com vaidades. Suponha agora
Que ela somente algo nos dá enquanto estamos distraídos
E, ao fazê-lo, com tal balbúrdia e controvérsia o oferta
Que a oferenda esfaima o esfomeado. E dá tarde demais
Aquilo em que já não confias, se é que nisto ainda confiavas,
Uma recordação apenas, uma paixão revisitada. E dá cedo
demais
A frágeis mãos. O que pensado foi pode ser dispensado
Até que a rejeição faça medrar o medo. Suponha
Que nem medo nem audácia aqui nos salvem. Nosso heroísmo
Apadrinha vícios postiços. Nossos cínicos delitos
Impõem-nos altas virtudes. Estas lágrimas germinam
De uma árvore em que a ira frutifica.


O tigre salta no ano novo. E nos devora. Enfim suponha
Que a nenhuma conclusão chegamos, pois que deixei
Enrijecer meu corpo numa casa de aluguel. Enfim suponha
Que não dei à toa esse espetáculo
E nem o fiz por nenhuma instigação
De demônios ancestrais. Quanto a isto,
É com franqueza o que te vou dizer.
Eu, que perto de teu coração estive, daí fui apartado,
Perdendo a beleza no terror, o terror na inquisição.
Perdi minha paixão: por que deveria preservá-la
Se tudo o que se guarda acaba adulterado?
Perdi visão, olfato, gosto, tato e audição:
Como agora utilizá-los para de ti me aproximar?


Essas e milhares de outras ponderações
Distendem-lhe os lucros do enregelado delírio,
Excitam-lhe a franja das mucosas, quando os sentidos esfriam;
Com picantes temperos, multiplicam-lhe espetáculos
Numa profusão de espelhos. Que irá fazer a aranha?
Interromper o seu bordado? O gorgulho
Tardará? De Bailhache, Fresca, Madame Cammel, arrastados
Para além da órbita da trêmula Ursa
Num vórtice de espedaçados átomos. A gaivota contra o vento
Nos tempestuosos estreitos da Belle Isle,
Ou em círculos vagando sobre o Horn,
Brancas plumas sobre a neve, o Golfo clama,
E um velho arremessado por alísios
A um canto sonolento.
Inquilinos da morada,
Pensamentos de um cérebro seco numa estação dessecada.


(tradução: Ivan Junqueira)


Imagem: Idem

Carlos Nejar - Poema


Luiz Vaz de Camões



Não sou um tempo
ou uma cidade extinta.
Civilizei a língua
e foi resposta em cada verso.
E à fome, condenaram-me
os perversos e alguns
dos poderosos. Amei
a pátria injustamente
cega, como eu, num
dos olhos. E não pôde
ver-me enquanto vivo.
Regressarei a ela
com os ossos de meu sonho
precavido? E o idioma
não passa de um poema
salvo da espuma
e igual a mim, bebido
pelo sol de um país
que me desterra. E agora
me ergue no Convento
dos Jerônimos o túmulo,
que não morri.
Não morrerei, não
quero mais morrer.
Nem sou cativo ou mendigo
de uma pátria. Mas da língua
que me conhece e espera.
E a razão que não me dais,
eu crio. Jamais pensei
ser pai de santos filhos.


Imagem retirada da Internet: Camões

Carlos Nejar - Poema


Construção da noite



No casulo há um homem
mas o fundo é o outro lado.
No casulo de seu tempo há um homem,
mas o fundo é o outro lado.
É o casulo onde o homem foi achado,
mas o fundo é o outro lado.
É o terreno onde o homem foi lavrado,
mas o fundo é o outro lado.
É a treva onde o homem foi fechado,
mas o fundo é o outro lado.
É o silêncio de um homem soterrado,
mas o fundo é o outro lado.
Mas o fundo é o outro lado.

É a infância que nasce sobre o morto,
é a infância que cresce sobre o morto,
é o sol que madruga no seu rosto,
é um homem que salta do sol posto
e convoca outros homens para o sonho
e mistura-se à terra
e mistura-se ao sonho.

E o canto recomeça além do sonho,
além da escuridão, além do lago.
Mas o fundo é o outro lado,
mas o fundo principia sem passado,
sem os montes, sem os barcos, sem o lago.

Tua vida verdadeira é o outro lado.
Tua terra verdadeira é o outro lado.
Tua herança verdadeira é o outro lado.

Tudo cessa.
Tudo cessa,
tudo cessa.
Mas o mundo
é o outro lado
que começa.


In. Página do Autor

Imagem retirada da Internet: Casulo

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