Elizabeth Caldeira - Poema
Luiz de Miranda - Poema
Ponto de Partida
Não sonharei o impossível
nem aurora
a luz vem luzindo
sua desesperada agonia
o passado move
sua chuva de caspa e cinza
Não me queiram cordato
sou sempre o reverso
o horizonte incabado
quando me julgam morto
renasço com os caídos e mato
para morrer de novo
à lucidez das palavras endurecidas
Alerta, neste quarto emprestado
à beira do coração
me sustento de miudezas
substantivos, verbos, adjetivos
complementos do cotidiano
e construo a esperança
como quem se salva
para salvar
Alerta na pampa
casa e coração
cinza no osso da dor
cinza no rosto do amor
arsenal da solidão
arreios da vida inteira
Não sonharei o impossível
revoa a angústia
como pássaro sem prumo
nossos mortos, nossa morte
escuro silêncio
espaço sem ar
desequilibrando no céu
o algodão das palavras
Desequilibrando no céu
as aves de pouso alto
o alarme geral
das armas e das canções
Desequilibrando, desequilibrando
Fonte: Página do autor
Imagem retirada da Internet: Alceu Valença
Luiz de Miranda - Poema
Poética brava
O poema é o sistema
onde a palavra
grava o conteúdo
grave o feroz de tudo
grava o que não tem
princípio ou término
e só finda num fundo
de olho
onde a vida é um retrato
transparente da verdade
O poema não tem dilema
entre um susto e outro
sobrepõe-se por camadas de
som
é um potro vidente
armado até os dentes
da fúria doce da imagem
Fonte: Página do autor
Imagem retirada da Internet: Luiz de Miranda
Brasigóis Felício - Poema
A FEIRA DO POVO
No sertão nordestinado
a feira do povo
é uma economia de centavos
São ovos ambicionados
de um viver sextavado
Um real é dinheiro digno
de consideração e apreço
Galinha do pé seco
não dá pra quem quer
Zé da buchada quer enricar
só de as destripar
Mais velha que as penosas
só a perpétua necessidade
Manga e mamacadela
fazem lama de derrama
Quem vendeu umbu a beça
agradece a Deus, alegroso,
com um sorriso banguelo
Pitomba e melancia
entram em promoção
depois que se desmancham:
“Comprem de mim,
que minha minhas irmãs estão buchudas,
e minha mãe vai parir!”
O chão é azinabrado pelo sangue
de animais estripados
à vista do freguês
Que é para ele ver
o quanto é duro morrer
Cabeças de bode,
de porcos e vacas nos fitam
com olhar esbugalhado
Na feira do povo
muitos têm que morrer
para sustentar a fome eterna
dos que só vivem para comer
A freguesia vem do agreste
onde só vive cabra da peste
calcinado na caatinga
onde a vida é bem mofina
Da vida ávida por viver
é feita a feira do povo:
O desespero é gritado
no rebanho de condenados
do sertão nordestinado.
Foto by Arthur Soares: feira
Juan Gelman - Poema
Epitáfio
¡Digo que el hombre debe serlo!
In Violín y otras cuestiones
Imagem retirada da Internet: Juan Gelman
Francisco Perna Filho - Ensaio curto
Em 1º de setembro de 2004, primeiro dia de aula, um comando que reclamava em particular o fim da guerra na Chechênia manteve mais de mil pessoas no ginásio da escola durante três dias, até quando o exército lançou um assalto. Trezentas e trinta pessoas, entre as quais 186 crianças, morreram na operação. (Fote: Portal Terra)
Uma Temporada no Inferno*
Todas as guerras são abomináveis, traços de bestialidade e incerteza; transgressoras da liberdade e da razão, retalhos de humanidade. Todas as guerras são martírios, segregadoras da alma humana; violento atentado ao espírito; disseminadoras de um ódio gratuito.
Por mais lógica que se possa imaginar ao se declarar uma guerra, ela nos soará sempre paradoxal: não há violência que nos conserte; não há martírio que nos redima.
Toda guerra é imposta, autoritária, ditatorial. Toda ditadura é deprimente, olhar deturpado da realidade, sentimento ameaçador e covarde. Discurso ideológico e sectário; monólogo opressor.
Toda guerra é violenta, e a violência não é local, municipal, estadual ou globalizada. Não é assunto jurisdicional, é ontológica. Alguns a manifestam mais branda, perseguindo, retaliando, alijando; outros, dela são membros, como um braço, uma perna. A ela pertencem e, para esses, a vida é um risco feito a lápis na mão de um deus pagão. Ninguém se salva.
De todas as formas de violência, a infantil é inaceitável, é irremediável, deixa marcas na alma, é ferida que não se cura, transtorna o ser e, quase sempre, dele não se desprega. É na infância que apuramos o olhar para as coisas do mundo. Que definimos as cores do nosso por vir: muitas vezes quente, muitas vezes frias, outras tantas matizadas, quantas sem luz. A violência que pare a violência, como um espelhamento. Lembremos de Mohammed, o prematuro, nascido sob os “auspícios” da Guerra do Iraque; de Intizar, criança que perdeu os braços, também no Iraque, após ser atingido por uma bomba americana, fruto da bestialidade de Bush. Lembremos de Hiroshima, seis de agosto de 1945, às 08:15 da manhã, o piloto de um avião B-29, Paul Tibbets lança a primeira bomba atômica, deixando um lastro de destruição; a cena é repetida em Nagasaki, nove de agosto, com a bomba “Fatman”. Lembremos a cena daquela criança nua, desesperada. Lembremos do Kosovo, uma outra criança chorando, sobre os escombros, a morte dos pais; e agora, numa foto comovente de Segei Dalzhenko, vimos uma criança ensangüentada, desesperada, fugindo dos seqüestradores da Escola de Beslan, na Ossélia do Norte, Rússia.
Não há como se calar, fechar os olhos, diante de tanta barbárie, de tanto medo que nos oprime, da insegurança que invadiu os nossos lares, já que as ruas há muito foram tomadas, brutalizadas, esquecidas.
Há muita dor nos nossos corações, transtornados que estão pela impotência ante o espetáculo a que assistimos: nas ruas de São Paulo, quando mendigos são brutalmente assassinados; no Rio de Janeiro, as balas que se encontram com os seus alvos, porquanto os homens é que estão perdidos. Em Brasília, a violência pública em muitos setores, e a privada? quem não se lembra do índio Galdino “ludicamente” queimado? Uma repetição bárbara e inquisitorial, como em Joana D’Arc. Em Goiânia, quanto crimes insolúveis. Não há mais distinção de classes; não se respeita mais autoridade constituída, todos sentem a mesma dor. Todos pela morte tornam-se iguais.
É uma imensa tristeza que nos massacra, a impotência que nos dói no fundo da alma, um grito desesperado de socorro, sem ter para onde correr, fugir. Quanto mais nos afastamos, mais nos vemos refletidos nessas cenas de barbárie, mais temerosos ficamos, ao protagonizar espetáculos tão brutais.
O que nos resta? Talvez a imagem desesperada das crianças de Beslan, em pânico, tentando sobreviver de rosas, como relataram após serem libertas dos seus algozes. As flores que brotam do caos, como em de Ferreira Goulart, Poema Sujo: Num cofo no quintal na terra preta cresciam plantas e rosas (como pode o perfume nascer assim?). Talvez nos restem os livros, a educação pela palavra, a poesia como motor de toda transformação.
* Título tomado de empréstimo a Jean Arthur Nicolas Rimbaud, poeta francês (1859-1891).
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