Eu, particularmente, não me encontro entre esses saudosistas doentiamente agarrados à “infância querida que anos não trazem mais”. Isso porque as alegrias da infância não chegam ao conhecimento do espírito. Não consigo conceber essas alegrias como tais, se não se tem consciência delas. Figurativamente, é como alguém se tornar um passarinho a desbravar o céu e a cantarolar pelas árvores e não ter o maravilhoso conhecimento disso. Esse conhecimento, inclusive, tem muito a ver com as três palavras da grande frase de René Descartes: “Penso, logo existo”.
Esses pensamentos me vieram à mente após um acontecimento que presenciei na rua. O sinal fechou. Parei e fiquei observando as pessoas que atravessavam a faixa de pedestres. A maioria estava apressada, certamente preocupada em ganhar tempo para alguma atividade. Muitas talvez apressadas sem motivo algum. Conheço muito gente assim.
Entre as muitas pessoas, duas chamaram a minha atenção. Na verdade, mais o menino do que sua mãe, que lhe segurava o braço esquerdo por questão de segurança. O menino, que aparentava ter uns seis anos, caminhava meio que arrastado. E a razão disso estava em seu braço direito: um relógio. Ele estava indiferente à movimentação dos carros e pessoas à sua volta.
Seus olhos estavam fixos no relógio. Havia um ar de encantamento em seu semblante. Pela sua empolgação com o objeto, julguei que o relógio foi um presente recebido naquele dia, talvez alguns minutos antes de eu vê-lo. Esse detalhe, o leitor há de convir, é irrelevante em relação ao fato que desencadeou esta crônica.
O menino não enxergou o tempo dentro do objeto. Apenas viu o relógio. Seu coraçãozinho ainda é muito pequeno e por isso incapacitado para enxergar as coisas essenciais que escampam do campo da visibilidade dos olhos.
O tempo é algo que só se enxerga quando a pessoa se desentende como gente, é quando ela toma conhecimento do lado efêmero da vida. Essa constatação por agora é impossível àquele menino. Seu cora-çãozinho ainda é pequeno.
Amanhã, quando os anos não puderem mais trazer a infância daquele menino, ele certamente vai atravessar alguma faixa de pedestres com seu filho, puxando-o pelo braço. Amanhã, quando os anos não puderem mais trazer a infância daquele menino, ele certamente vai enxergar que o bicho gigantesco e feroz enjaulado na caixinha de vidro que ornamenta seu pulso é o tempo: nome que o homem lhe deu sem que o tempo saiba.
Se o menino amanhã, quando homem, enxergar o tempo e aproveitá-lo com uma vivência de alma grande, isso será a materialização do ato de pensar e, consequentemente, a concretização do ato de existir. Se o menino amanhã, quando homem, enxergar o tempo com olhos de alma grande, ele descobrirá que o tempo vale ouro, mas não em gastá-lo na busca insana pelo metal, como tem sido tão comum para muitos homens, que, já bem no finalzinho do seu tempo no mundo dos vivos, quando não há mais tempo, querem, desesperados, viver coisas simples que outrora julgavam inúteis e, assim, compensar o tempo que desperdiçaram.
Tomara que o tempo amanhã, quando homem aquele menino, não o leve embora dessa maneira...