Francisco Perna Filho - Poema
San José
O que dizer do homem,
devorado pela longa noite,
longe de tudo,
da mulher amada,
dos filhos,
e da luz do dia?
Que pensará esse homem,
sem vestes e proteção,
a perder-se na frágil esperança que carrega,
no apuro de suas mãos silenciosas e impotentes?
Em que país ficaram os seus olhos
as suas preces,
a sua bússola?
O cobre, que procurava,
tornou-se pó,
perdeu-se no turvo da noite,
no desbotado encanto,
na irônica terra que o soterrara.
Nem um canto poderá reconduzi-lo,
não existem pássaros,
somente a terra,
a fundura da mina
e as lembranças a persegui-lo.
Setecentos metros terra a dentro,
milhões de soluços e desencanto,
o homem sozinho no seu pesadelo,
ouvindo o próprio grito,
penseguindo o pulsar lento
da longa noite sem fim.
Foto: Reuters
Machado de Assis - Poema
Teus olhos são meus livros.
Que livro há aí melhor,
Em que melhor se leia
A página do amor?
Flores me são teus lábios.
Onde há mais bela flor,
Em que melhor se beba
O bálsamo do amor?
Machado de Assis - Poema
Pensa em ti mesma, acharás
Melhor poesia,
Viveza, graça, alegria,
Doçura e paz.
Se já dei flores um dia,
Quando rapaz,
As que ora dou têm assaz
Melancolia.
Uma só das horas tuas
Valem um mês
Das almas já ressequidas.
Os sóis e as luas
Creio bem que Deus os fez
Para outras vidas.
Machado de Assis - Poema
A flor do embiroçu
Noite, melhor que o dia, quem não te ama? Fil. Elis. |
Quando a noturna sombra envolve a terra
E à paz convida o lavrador cansado,
À fresca brisa o seio delicado
A branca flor do embiroçu descerra.
E das límpidas lágrimas que chora
A noite amiga, ela recolhe alguma;
A vida bebe na ligeira bruma,
Até que rompe no horizonte a aurora.
Então, à luz nascente, a flor modesta,
Quando tudo o que vive alma recobra,
Languidamente as suas folhas dobra,
E busca o sono quando tudo é festa,
Suave imagem da alma que suspira
E odeia a turba vã! da alma que sente
Agitar-se-lhe a asa impaciente
E a novos mundos transportar-se aspira!
Também ela ama as horas silenciosas,
E quando a vida as lutas interrompe,
Ela da carne os duros elos rompe,
E entrega o seio às ilusões viçosas.
É tudo seu, — tempo, fortuna, espaço,
E o céu azul e os seus milhões de estrelas;
Abrasada de amor, palpita ao vê-las,
E a todas cinge no ideial abraço.
O rosto não encara indiferente,
Nem a traidora mão cândida aperta;
Das mentiras da vida se liberta
E entra no mundo que jamais não mente.
Noite, melhor que o dia, quem não te ama?
Labor ingrato, agitação, fadiga,
Tudo faz esquecer tua asa amiga
Que a alma nos leva onde a ventura a chama.
Ama-te a flor que desabrocha à hora
Em que o último olhar o sol lhe estende,
Vive, embala-se, orvalha-se, rescende,
E as folhas cerra quando rompe a aurora.
In. Jornal de Poesia
Imagem retirada da Internet: flor
Machado de Assis - Poema
Menina e moça
A Ernesto Cibrão |
Está naquela idade inquieta e duvidosa,
Que não é dia claro e é já o alvorecer;
Entreaberto botão, entrefechada rosa,
Um pouco de menina e um pouco de mulher.
Às vezes recatada, outras estouvadinha,
Casa no mesmo gesto a loucura e o pudor;
Tem cousas de criança e modos de mocinha,
Estuda o catecismo e lê versos de amor.
Outras vezes valsando, o seio lhe palpita,
De cansaço talvez, talvez de comoção.
Quando a boca vermelha os lábios abre e agita,
Não sei se pede um beijo ou faz uma oração.
Outras vezes beijando a boneca enfeitada,
Olha furtivamente o primo que sorri;
E se corre parece, à brisa enamorada,
Abrir as asas de um anjo e tranças de uma huri.
Quando a sala atravessa, é raro que não lance
Os olhos para o espelho; e raro que ao deitar
Não leia, um quarto de hora, as folhas de um romance
Em que a dama conjugue o eterno verbo amar.
Tem na alcova em que dorme, e descansa de dia,
A cama da boneca ao pé do toucador;
Quando sonha, repete, em santa companhia,
Os livros do colégio e o nome de um doutor.
Alegra-se em ouvindo os compassos da orquestra;
E quando entra num baile, é já dama do tom;
Compensa-lhe a modista os enfados da mestra;
Tem respeito a Geslin, mas adora a Dazon.
Dos cuidados da vida o mais tristonho e acerbo
Para ela é o estudo, excetuando-se talvez
A lição de sintaxe em que combina o verbo
To love, mas sorrindo ao professor de inglês.
Quantas vezes, porém, fitando o olhar no espaço,
Parece acompanhar uma etérea visão;
Quantas cruzando ao seio o delicado braço
Comprime as pulsações do inquieto coração!
Ah! se nesse momento, alucinado, fores
Cair-lhe aos pés, confiar-lhe uma esperança vã,
Hás de vê-la zombar de teus tristes amores,
Rir da tua aventura e contá-la à mamã.
É que esta criatura, adorável, divina,
Nem se pode explicar, nem se pode entender:
Procura-se a mulher e encontra-se a menina,
Quer-se ver a menina e encontra-se a mulher!
In. Jornal de Poesia
Imagem: Almeida Júnior - Moça com livros
O Tempo, o relógio e o menino - Sinésio Dioliveira - Crônica
Andam em círculo
os ponteiros do relógio
não vão longe
cavalgam apenas um dia
depois retomam o mesmo caminho.
Há quem veja, no lado ingênuo da infância, a melhor fase existencial do homem. Na infância, não se consegue ver gigantes em moinhos. Na infância, não se consegue ver uma pedra no meio do caminho além de uma pedra no meio do caminho.
Sinésio Dioliveira é jornalista, professor de Português e fotógrafo (www.flickr.com/photos/
Brasigóis Felício - Poema
O PARAÍSO CONFLAGRADO
Na cidade maravilhosa
tudo está em polvorosa:
bandos em bondes
armados até os dentes
descem da Rocinha e Vidigal
Rumo ao paraíso
de São Conrado,
um dos metros quadrados
mais caros do Brasil.
É tanto tiro, que até parece
a Sarajevo, um explodir de minas
na Bósnia Herzegovina
- “deve ser mais legal
ser negão no Senegal”:
Traficantes da pesada
com armamentos de guerra
e coletes à prova de bala
II
Deve existir, em algum
rincão do paraíso tropical
um lugar mais legal
mais humilde e tranqüilo
onde se possa
passear com os filhos
sem escutar tiros disparados
por todos os lados.
Se for aquela ilha
de paz – mar da tranqüilidade –
que buscam turistas artistas,
deste balneário conflagrado
quero manter distância
Deve existir algum lugar
neste planeta água
onde se possa, à noitinha,
colocar cadeiras na calçada
e trocar dedos de prosa
com os vizinhos
- e ver a vida passar,
cheia de graça, sem
fazer pirraça, e sem
tirar o sossego da gente.
Imagem retirada da Internet: tráfico
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