Teus olhos são meus livros.
Que livro há aí melhor,
Em que melhor se leia
A página do amor?
Flores me são teus lábios.
Onde há mais bela flor,
Em que melhor se beba
O bálsamo do amor?
A flor do embiroçu
Noite, melhor que o dia, quem não te ama? Fil. Elis. |
Quando a noturna sombra envolve a terra
E à paz convida o lavrador cansado,
À fresca brisa o seio delicado
A branca flor do embiroçu descerra.
E das límpidas lágrimas que chora
A noite amiga, ela recolhe alguma;
A vida bebe na ligeira bruma,
Até que rompe no horizonte a aurora.
Então, à luz nascente, a flor modesta,
Quando tudo o que vive alma recobra,
Languidamente as suas folhas dobra,
E busca o sono quando tudo é festa,
Suave imagem da alma que suspira
E odeia a turba vã! da alma que sente
Agitar-se-lhe a asa impaciente
E a novos mundos transportar-se aspira!
Também ela ama as horas silenciosas,
E quando a vida as lutas interrompe,
Ela da carne os duros elos rompe,
E entrega o seio às ilusões viçosas.
É tudo seu, — tempo, fortuna, espaço,
E o céu azul e os seus milhões de estrelas;
Abrasada de amor, palpita ao vê-las,
E a todas cinge no ideial abraço.
O rosto não encara indiferente,
Nem a traidora mão cândida aperta;
Das mentiras da vida se liberta
E entra no mundo que jamais não mente.
Noite, melhor que o dia, quem não te ama?
Labor ingrato, agitação, fadiga,
Tudo faz esquecer tua asa amiga
Que a alma nos leva onde a ventura a chama.
Ama-te a flor que desabrocha à hora
Em que o último olhar o sol lhe estende,
Vive, embala-se, orvalha-se, rescende,
E as folhas cerra quando rompe a aurora.
In. Jornal de Poesia
Imagem retirada da Internet: flor
Menina e moça
A Ernesto Cibrão |
Está naquela idade inquieta e duvidosa,
Que não é dia claro e é já o alvorecer;
Entreaberto botão, entrefechada rosa,
Um pouco de menina e um pouco de mulher.
Às vezes recatada, outras estouvadinha,
Casa no mesmo gesto a loucura e o pudor;
Tem cousas de criança e modos de mocinha,
Estuda o catecismo e lê versos de amor.
Outras vezes valsando, o seio lhe palpita,
De cansaço talvez, talvez de comoção.
Quando a boca vermelha os lábios abre e agita,
Não sei se pede um beijo ou faz uma oração.
Outras vezes beijando a boneca enfeitada,
Olha furtivamente o primo que sorri;
E se corre parece, à brisa enamorada,
Abrir as asas de um anjo e tranças de uma huri.
Quando a sala atravessa, é raro que não lance
Os olhos para o espelho; e raro que ao deitar
Não leia, um quarto de hora, as folhas de um romance
Em que a dama conjugue o eterno verbo amar.
Tem na alcova em que dorme, e descansa de dia,
A cama da boneca ao pé do toucador;
Quando sonha, repete, em santa companhia,
Os livros do colégio e o nome de um doutor.
Alegra-se em ouvindo os compassos da orquestra;
E quando entra num baile, é já dama do tom;
Compensa-lhe a modista os enfados da mestra;
Tem respeito a Geslin, mas adora a Dazon.
Dos cuidados da vida o mais tristonho e acerbo
Para ela é o estudo, excetuando-se talvez
A lição de sintaxe em que combina o verbo
To love, mas sorrindo ao professor de inglês.
Quantas vezes, porém, fitando o olhar no espaço,
Parece acompanhar uma etérea visão;
Quantas cruzando ao seio o delicado braço
Comprime as pulsações do inquieto coração!
Ah! se nesse momento, alucinado, fores
Cair-lhe aos pés, confiar-lhe uma esperança vã,
Hás de vê-la zombar de teus tristes amores,
Rir da tua aventura e contá-la à mamã.
É que esta criatura, adorável, divina,
Nem se pode explicar, nem se pode entender:
Procura-se a mulher e encontra-se a menina,
Quer-se ver a menina e encontra-se a mulher!
In. Jornal de Poesia
Imagem: Almeida Júnior - Moça com livros
Andam em círculo
os ponteiros do relógio
não vão longe
cavalgam apenas um dia
depois retomam o mesmo caminho.
Sinésio Dioliveira é jornalista, professor de Português e fotógrafo (www.flickr.com/photos/
O PARAÍSO CONFLAGRADO
Na cidade maravilhosa
tudo está em polvorosa:
bandos em bondes
armados até os dentes
descem da Rocinha e Vidigal
Rumo ao paraíso
de São Conrado,
um dos metros quadrados
mais caros do Brasil.
É tanto tiro, que até parece
a Sarajevo, um explodir de minas
na Bósnia Herzegovina
- “deve ser mais legal
ser negão no Senegal”:
Traficantes da pesada
com armamentos de guerra
e coletes à prova de bala
II
Deve existir, em algum
rincão do paraíso tropical
um lugar mais legal
mais humilde e tranqüilo
onde se possa
passear com os filhos
sem escutar tiros disparados
por todos os lados.
Se for aquela ilha
de paz – mar da tranqüilidade –
que buscam turistas artistas,
deste balneário conflagrado
quero manter distância
Deve existir algum lugar
neste planeta água
onde se possa, à noitinha,
colocar cadeiras na calçada
e trocar dedos de prosa
com os vizinhos
- e ver a vida passar,
cheia de graça, sem
fazer pirraça, e sem
tirar o sossego da gente.
Imagem retirada da Internet: tráfico
O livro infernal do poeta Valdivino
Literatura feita para chocar. Assim poderia ser sintetizado o mais novo livro do poeta e jornalista Valdivino Braz.
Logo no prefácio o autor adverte: “Presume-se que O Gado de Deus, um livro infernal, escabroso, com personagens infames – a par com os laivos poéticos, filosóficos e divertidos -, possui autonomia para sustentar-se à parte. (...) O leitor esteja preparado. Esta obra é um tratamento de choque, de arrepiar os cabelos e deixar os incautos com cara de ouriço. Exala enxofre, fumega chifre queimado. O riso se transforma em choro e ranger de dentes. Não há, em todo o mundo, um livro como este”.
"...Só o homem livre é pastor de si mesmo, toda e única liberdade é foro íntimo...”
Com o título inicial de As dores da terra antiga, a obra recebeu Menção Honrosa no Concurso Nacional de Romances do Paraná, em 1993.
Saído das oficinas da Editora Kelps e compondo a “Coleção Goiânia em Prosa e Verso”, da Secretaria Municipal da Cultura de Goiânia, O Gado de Deus é, em essência, uma crítica mordaz às infâmias e mazelas produzidas pelo governo militar que tomou o poder no Brasil, em 1964.
Como o próprio autor define, trata-se de um relato corrosivo que expõe por inteiro o lado sórdido da vida.
Na mítica e ao mesmo tempo arena realista em que a trama se desenrola, o Brasil é visto simplesmente como “Pátria”. Nesse palco, desfilam os mais infames personagens e suas vítimas, como “o general, mandando prender e arrebentar, que é hora de tanger o gado ao matadouro”, numa referência ao general João Figueiredo, o último presidente do período militar.
Com uma linguagem poético-filosófica de tom mordaz, o texto de Valdivino Braz refere-se aos agentes da ditadura como “os homens com cabeça de cabaça”.
Marcadamente imagética, a narrativa derrama-se por uma dialética que se embebe e galopa na sonoridade das palavras. Como no trecho: “Na meia-lua ou cutelo lunar da jornada desta vida, deparei-me com pedras tapiocanga no meio do caminho, as pedras da vida e do mundo, incrustadas no fundo de minhas retinas fatigadas, meio que assim numa fadiga fatiada, dado de sobra, a mim, o que se dá em dobro, a pedra dos rins, das torções, dos tropeços e pescoções, e foi então que me vi perdido em selva tenebrosa, sem Dante e sem Drummond...” E o texto se estende por um parágrafo de 24 linhas a fio.
“Os bancos, como Deus e o Diabo, estão por toda parte, em conciliábulos de ordem financeira e armação de arapucas para seus clientes."
Em sua narrativa herética e diabólica, Braz critica a crítica e não perdoa nem a si mesmo, quando se compara ao éter “a conduzir a narrativa deste canhestro romance antirromance”...
A crueza da existência se completa no terror da palavra. Há momentos da escrita em que o autor compõe cenas sinistras: “Abrupto e traiçoeiro, o fio de arame farpado arrebenta-se na cerca; num bote de cobra, chicoteia a cara de Brasilino, e uma farpa fura-lhe o olho esquerdo. Daí que ele, imprecando contra Deus e o mundo, larga mão do ofício de fazedor de cercas”.
Um dos momentos em que a deliberada heresia torna-se mais marcante está no capítulo “As boas-vindas da casa”: “O mundo é dos espertos e dos poderosos, e nas mãos absconsas de Deus depõem-se as almas dos crédulos, o cego rebanho de tolos, tangido com a inadimplência das promessas provindas de bocas imundas, com o bafo do esôfago, e não com o hálito da pureza, nem com o sopro divino que anima o mísero barro”.
No cotidiano de “Pátria”, entre os personagens e situações que infernizam a vida de seus pobres moradores estão, segundo Braz, as instituições bancárias. “Os bancos, como Deus e o Diabo, estão por toda parte, em conciliábulos de ordem financeira e armação de arapucas para seus clientes. Graças a Deus, diz o banqueiro C.R.Cifrão, um cretino. A César o que é de César, reprisa o fanhoso Nazareno, com diploma de contabilista e puxa-saco de gente rica; agarrado feito carrapato em bago de boi, a ver o que lucra com isso. Gentinha desprezível, sem caráter!”
O texto valdiviniano despeja pontiagudas ironias em certos trechos. Como quando situa geograficamente a “Funerária Bom Repouso”, concorrente da “Funerária Vai Com Deus” e o “Cemitério Municipal Seja Bem-Vindo ao Lar”. A escrita ri da inglória, expõe o lado podre de pobres seres e reserva momento especial para os políticos.
Ao trilhar por certa convicção atéia e niilista do autor, a escrita conversa (provoca) o leitor com o seguinte trecho: “Comunga teologia? Eu não estudo Teo, mas vasculho um pouco as coisas de Deo. Está sorrindo. Gostou? Deus é Deus, seja lá o que for, e não seja por isso ficar adulando padre ou pastor. Só o homem livre é pastor de si mesmo, toda e única liberdade é foro íntimo...”
Para o autor, a humanidade é uma doença. Quando projetava este seu O Gado de Deus, Valdivino Braz já prometia: “Antes de morrer, pelas veredas pedregosas do meu cérebro, pelas urzes do meu amargo coração, pelos espinhos de meus cardos pensamentos e pela bile que a vida me derrama aos jatos pela boca, hei de escrever um livro infernal, a grande paródia, um tratado da criatura humana, no que ela tem de pior”. Vade-retro!
Antônio Lisboa é jornalista (UFG) pós-graduado em Comunicação Pública (ESPM).
Imagem retirada da Internet: gado
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