Machado de Assis - Poema


Livros e flores



Teus olhos são meus livros.
Que livro há aí melhor,
Em que melhor se leia
A página do amor?

Flores me são teus lábios.
Onde há mais bela flor,
Em que melhor se beba
O bálsamo do amor?



Machado de Assis - Poema



















A uma senhora
que me pediu versos




Pensa em ti mesma, acharás
Melhor poesia,
Viveza, graça, alegria,
Doçura e paz.

Se já dei flores um dia,
Quando rapaz,
As que ora dou têm assaz
Melancolia.

Uma só das horas tuas
Valem um mês
Das almas já ressequidas.

Os sóis e as luas
Creio bem que Deus os fez
Para outras vidas.




In. Jornal de Poesia
Foto by António Stª Clara

Machado de Assis - Poema

822582470_05dee8a995.jpg image by rosejc1

A flor do embiroçu



Noite, melhor que o dia, quem não te ama?
Fil. Elis.


Quando a noturna sombra envolve a terra
E à paz convida o lavrador cansado,
À fresca brisa o seio delicado
A branca flor do embiroçu descerra.

E das límpidas lágrimas que chora
A noite amiga, ela recolhe alguma;
A vida bebe na ligeira bruma,
Até que rompe no horizonte a aurora.

Então, à luz nascente, a flor modesta,
Quando tudo o que vive alma recobra,
Languidamente as suas folhas dobra,
E busca o sono quando tudo é festa,

Suave imagem da alma que suspira
E odeia a turba vã! da alma que sente
Agitar-se-lhe a asa impaciente
E a novos mundos transportar-se aspira!

Também ela ama as horas silenciosas,
E quando a vida as lutas interrompe,
Ela da carne os duros elos rompe,
E entrega o seio às ilusões viçosas.

É tudo seu, — tempo, fortuna, espaço,
E o céu azul e os seus milhões de estrelas;
Abrasada de amor, palpita ao vê-las,
E a todas cinge no ideial abraço.

O rosto não encara indiferente,
Nem a traidora mão cândida aperta;
Das mentiras da vida se liberta
E entra no mundo que jamais não mente.

Noite, melhor que o dia, quem não te ama?
Labor ingrato, agitação, fadiga,
Tudo faz esquecer tua asa amiga
Que a alma nos leva onde a ventura a chama.

Ama-te a flor que desabrocha à hora
Em que o último olhar o sol lhe estende,
Vive, embala-se, orvalha-se, rescende,
E as folhas cerra quando rompe a aurora.




In. Jornal de Poesia

Imagem retirada da Internet: flor

Machado de Assis - Poema

Menina e moça



A Ernesto Cibrão




Está naquela idade inquieta e duvidosa,
Que não é dia claro e é já o alvorecer;
Entreaberto botão, entrefechada rosa,
Um pouco de menina e um pouco de mulher.

Às vezes recatada, outras estouvadinha,
Casa no mesmo gesto a loucura e o pudor;
Tem cousas de criança e modos de mocinha,
Estuda o catecismo e lê versos de amor.

Outras vezes valsando, o seio lhe palpita,
De cansaço talvez, talvez de comoção.
Quando a boca vermelha os lábios abre e agita,
Não sei se pede um beijo ou faz uma oração.

Outras vezes beijando a boneca enfeitada,
Olha furtivamente o primo que sorri;
E se corre parece, à brisa enamorada,
Abrir as asas de um anjo e tranças de uma huri.

Quando a sala atravessa, é raro que não lance
Os olhos para o espelho; e raro que ao deitar
Não leia, um quarto de hora, as folhas de um romance
Em que a dama conjugue o eterno verbo amar.

Tem na alcova em que dorme, e descansa de dia,
A cama da boneca ao pé do toucador;
Quando sonha, repete, em santa companhia,
Os livros do colégio e o nome de um doutor.

Alegra-se em ouvindo os compassos da orquestra;
E quando entra num baile, é já dama do tom;
Compensa-lhe a modista os enfados da mestra;
Tem respeito a Geslin, mas adora a Dazon.

Dos cuidados da vida o mais tristonho e acerbo
Para ela é o estudo, excetuando-se talvez
A lição de sintaxe em que combina o verbo
To love, mas sorrindo ao professor de inglês.

Quantas vezes, porém, fitando o olhar no espaço,
Parece acompanhar uma etérea visão;
Quantas cruzando ao seio o delicado braço
Comprime as pulsações do inquieto coração!

Ah! se nesse momento, alucinado, fores
Cair-lhe aos pés, confiar-lhe uma esperança vã,
Hás de vê-la zombar de teus tristes amores,
Rir da tua aventura e contá-la à mamã.

É que esta criatura, adorável, divina,
Nem se pode explicar, nem se pode entender:
Procura-se a mulher e encontra-se a menina,
Quer-se ver a menina e encontra-se a mulher!


In. Jornal de Poesia

Imagem: Almeida Júnior - Moça com livros

O Tempo, o relógio e o menino - Sinésio Dioliveira - Crônica



Andam em círculo

os ponteiros do relógio

não vão longe

cavalgam apenas um dia

depois retomam o mesmo caminho.




quem veja, no lado ingênuo da infância, a melhor fase existencial do homem. Na infância, não se consegue ver gigantes em moinhos. Na infância, não se consegue ver uma pedra no meio do caminho além de uma pedra no meio do caminho.


Eu, particularmente, não me encontro entre esses saudosistas doentiamente agarrados à “infância querida que anos não trazem mais”. Isso porque as alegrias da infância não chegam ao conhecimento do espírito. Não consigo conceber essas alegrias como tais, se não se tem consciência delas. Figurativamente, é como alguém se tornar um passarinho a desbravar o céu e a cantarolar pelas árvores e não ter o maravilhoso conhecimento disso. Esse conhecimento, inclusive, tem muito a ver com as três palavras da grande frase de René Descartes: “Penso, logo existo”.

Esses pensamentos me vieram à mente após um acontecimento que presenciei na rua. O sinal fechou. Parei e fiquei observando as pessoas que atravessavam a faixa de pedestres. A maioria estava apressada, certamente preocupada em ganhar tempo para alguma atividade. Muitas talvez apressadas sem motivo algum. Conheço muito gente assim.
Entre as muitas pessoas, duas chamaram a minha atenção. Na verdade, mais o menino do que sua mãe, que lhe segurava o braço esquerdo por questão de segurança. O menino, que aparentava ter uns seis anos, caminhava meio que arrastado. E a razão disso estava em seu braço direito: um relógio. Ele estava indiferente à movimentação dos carros e pessoas à sua volta.

Seus olhos estavam fixos no relógio. Havia um ar de encantamento em seu semblante. Pela sua empolgação com o objeto, julguei que o relógio foi um presente recebido naquele dia, talvez alguns minutos antes de eu vê-lo. Esse detalhe, o leitor há de convir, é irrelevante em relação ao fato que desencadeou esta crônica.

O menino não enxergou o tempo dentro do objeto. Apenas viu o relógio. Seu coraçãozinho ainda é muito pequeno e por isso incapacitado para enxergar as coisas essenciais que escampam do campo da visibilidade dos olhos.

O tempo é algo que só se enxerga quando a pessoa se desentende como gente, é quando ela toma conhecimento do lado efêmero da vida. Essa constatação por agora é impossível àquele menino. Seu cora-çãozinho ainda é pequeno.

Amanhã, quando os anos não puderem mais trazer a infância daquele menino, ele certamente vai atravessar alguma faixa de pedestres com seu filho, puxando-o pelo braço. Amanhã, quando os anos não puderem mais trazer a infância daquele menino, ele certamente vai enxergar que o bicho gigantesco e feroz enjaulado na caixinha de vidro que ornamenta seu pulso é o tempo: nome que o homem lhe deu sem que o tempo saiba.

Se o menino amanhã, quando homem, enxergar o tempo e aproveitá-lo com uma vivência de alma grande, isso será a materialização do ato de pensar e, consequentemente, a concretização do ato de existir. Se o menino amanhã, quando homem, enxergar o tempo com olhos de alma grande, ele descobrirá que o tempo vale ouro, mas não em gastá-lo na busca insana pelo metal, como tem sido tão comum para muitos homens, que, já bem no finalzinho do seu tempo no mundo dos vivos, quando não há mais tempo, querem, desesperados, viver coisas simples que outrora julgavam inúteis e, assim, compensar o tempo que desperdiçaram.

Tomara que o tempo amanhã, quando homem aquele menino, não o leve embora dessa maneira...


Sinésio Dioliveira é jornalista, professor de Português e fotógrafo (www.flickr.com/photos/sinesiodioliveira/ oliveirasinesio@gmail.com)




Brasigóis Felício - Poema



O PARAÍSO CONFLAGRADO




Na cidade maravilhosa

tudo está em polvorosa:

bandos em bondes

armados até os dentes

descem da Rocinha e Vidigal

Rumo ao paraíso

de São Conrado,

um dos metros quadrados

mais caros do Brasil.

É tanto tiro, que até parece

a Sarajevo, um explodir de minas

na Bósnia Herzegovina

- “deve ser mais legal

ser negão no Senegal”:

Traficantes da pesada

com armamentos de guerra

e coletes à prova de bala


II



Deve existir, em algum

rincão do paraíso tropical

um lugar mais legal

mais humilde e tranqüilo

onde se possa

passear com os filhos

sem escutar tiros disparados

por todos os lados.

Se for aquela ilha

de paz – mar da tranqüilidade –

que buscam turistas artistas,

deste balneário conflagrado

quero manter distância

Deve existir algum lugar

neste planeta água

onde se possa, à noitinha,

colocar cadeiras na calçada

e trocar dedos de prosa

com os vizinhos

- e ver a vida passar,

cheia de graça, sem

fazer pirraça, e sem

tirar o sossego da gente.



Imagem retirada da Internet: tráfico

Antônio Lisboa - Ensaio Crítico


O livro infernal do poeta Valdivino


Por Antônio Lisboa


Literatura feita para chocar. Assim poderia ser sintetizado o mais novo livro do poeta e jornalista Valdivino Braz.



Logo no prefácio o autor adverte: “Presume-se que O Gado de Deus, um livro infernal, escabroso, com personagens infames – a par com os laivos poéticos, filosóficos e divertidos -, possui autonomia para sustentar-se à parte. (...) O leitor esteja preparado. Esta obra é um tratamento de choque, de arrepiar os cabelos e deixar os incautos com cara de ouriço. Exala enxofre, fumega chifre queimado. O riso se transforma em choro e ranger de dentes. Não há, em todo o mundo, um livro como este”.


"...Só o homem livre é pastor de si mesmo, toda e única liberdade é foro íntimo...”


Com o título inicial de As dores da terra antiga, a obra recebeu Menção Honrosa no Concurso Nacional de Romances do Paraná, em 1993.

Saído das oficinas da Editora Kelps e compondo a “Coleção Goiânia em Prosa e Verso”, da Secretaria Municipal da Cultura de Goiânia, O Gado de Deus é, em essência, uma crítica mordaz às infâmias e mazelas produzidas pelo governo militar que tomou o poder no Brasil, em 1964.

Como o próprio autor define, trata-se de um relato corrosivo que expõe por inteiro o lado sórdido da vida.

Na mítica e ao mesmo tempo arena realista em que a trama se desenrola, o Brasil é visto simplesmente como “Pátria”. Nesse palco, desfilam os mais infames personagens e suas vítimas, como “o general, mandando prender e arrebentar, que é hora de tanger o gado ao matadouro”, numa referência ao general João Figueiredo, o último presidente do período militar.

Com uma linguagem poético-filosófica de tom mordaz, o texto de Valdivino Braz refere-se aos agentes da ditadura como “os homens com cabeça de cabaça”.

Marcadamente imagética, a narrativa derrama-se por uma dialética que se embebe e galopa na sonoridade das palavras. Como no trecho: “Na meia-lua ou cutelo lunar da jornada desta vida, deparei-me com pedras tapiocanga no meio do caminho, as pedras da vida e do mundo, incrustadas no fundo de minhas retinas fatigadas, meio que assim numa fadiga fatiada, dado de sobra, a mim, o que se dá em dobro, a pedra dos rins, das torções, dos tropeços e pescoções, e foi então que me vi perdido em selva tenebrosa, sem Dante e sem Drummond...” E o texto se estende por um parágrafo de 24 linhas a fio.


“Os bancos, como Deus e o Diabo, estão por toda parte, em conciliábulos de ordem financeira e armação de arapucas para seus clientes."


Em sua narrativa herética e diabólica, Braz critica a crítica e não perdoa nem a si mesmo, quando se compara ao éter “a conduzir a narrativa deste canhestro romance antirromance”...

A crueza da existência se completa no terror da palavra. Há momentos da escrita em que o autor compõe cenas sinistras: “Abrupto e traiçoeiro, o fio de arame farpado arrebenta-se na cerca; num bote de cobra, chicoteia a cara de Brasilino, e uma farpa fura-lhe o olho esquerdo. Daí que ele, imprecando contra Deus e o mundo, larga mão do ofício de fazedor de cercas”.

Um dos momentos em que a deliberada heresia torna-se mais marcante está no capítulo “As boas-vindas da casa”: “O mundo é dos espertos e dos poderosos, e nas mãos absconsas de Deus depõem-se as almas dos crédulos, o cego rebanho de tolos, tangido com a inadimplência das promessas provindas de bocas imundas, com o bafo do esôfago, e não com o hálito da pureza, nem com o sopro divino que anima o mísero barro”.

No cotidiano de “Pátria”, entre os personagens e situações que infernizam a vida de seus pobres moradores estão, segundo Braz, as instituições bancárias. “Os bancos, como Deus e o Diabo, estão por toda parte, em conciliábulos de ordem financeira e armação de arapucas para seus clientes. Graças a Deus, diz o banqueiro C.R.Cifrão, um cretino. A César o que é de César, reprisa o fanhoso Nazareno, com diploma de contabilista e puxa-saco de gente rica; agarrado feito carrapato em bago de boi, a ver o que lucra com isso. Gentinha desprezível, sem caráter!”

O texto valdiviniano despeja pontiagudas ironias em certos trechos. Como quando situa geograficamente a “Funerária Bom Repouso”, concorrente da “Funerária Vai Com Deus” e o “Cemitério Municipal Seja Bem-Vindo ao Lar”. A escrita ri da inglória, expõe o lado podre de pobres seres e reserva momento especial para os políticos.

Ao trilhar por certa convicção atéia e niilista do autor, a escrita conversa (provoca) o leitor com o seguinte trecho: “Comunga teologia? Eu não estudo Teo, mas vasculho um pouco as coisas de Deo. Está sorrindo. Gostou? Deus é Deus, seja lá o que for, e não seja por isso ficar adulando padre ou pastor. Só o homem livre é pastor de si mesmo, toda e única liberdade é foro íntimo...”

Para o autor, a humanidade é uma doença. Quando projetava este seu O Gado de Deus, Valdivino Braz já prometia: “Antes de morrer, pelas veredas pedregosas do meu cérebro, pelas urzes do meu amargo coração, pelos espinhos de meus cardos pensamentos e pela bile que a vida me derrama aos jatos pela boca, hei de escrever um livro infernal, a grande paródia, um tratado da criatura humana, no que ela tem de pior”. Vade-retro!


Antônio Lisboa é jornalista (UFG) pós-graduado em Comunicação Pública (ESPM).

Imagem retirada da Internet: gado

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