A REFEIÇÃO DO POETA
Em busca do maná existencial
Com prefácio do escritor Goiamérico Felício Carneiro dos Santos e orelha de Luiz Serenini Prado, o poeta e professor Francisco Perna Filho lançou seu livro de poemas Refeição, editado pela Editora Kelps, em 2001, com ilustrações infantis (de autoria de seu próprio filho de cinco anos, João Pedro Tavares Perna) e que, na intenção ao autor, não estão ali aleatoriamente, mas como coadjuvante de sua proposta temática. Vejamos. O projeto poético em questão gira em torno do eixo contrapontístico: realidade física circundante e o efeito destrutivo desta realidade sobre o “eu interior”, em busca do equilíbrio do ser humano, na sua bipolaridade: corpo e espírito. Recorre ao potencial energético da alma, induz à prática da visão lúcida, aguda, que mostra ao homem o tempo que lhe coube, as contas do rosário de sua travessia, os indícios dessa presença reconfortante e, muitas vezes, obscurecida, para o possível encontro do “alimento” que refaz, que se propõe reconstituir a unidade ameaçada.
E frente à perturbadora desordem de um “Cafarnaum” que o avassala, “nada há de novo que não nos mostre o velho”, e que, por isso, lhe instala a angústia, que o oprime e o deprime; resta ao ser humano “espectar”. Reconstituir-se, no tempo, operando memória, único recurso de solda dos fatos circunstanciais, para poder ocupar seu verdadeiro espaço de agente de seu destino. É preciso que não se perca de vista o propósito de recuperação, que o homem se permita sonhar, “voar”, para que encontre, no horizonte, as perspectivas de reabastecer-se e reenergizar-se, para poder enfrentar, lutar. Então, o poeta insiste na fome da liberdade, no contraponto de idéias que dividem o nosso “ego”, que balançam a nossa psique.
O livro se constitui de três partes. Com a primeira, iluminada por epígrafe de Fernando Pessoa, se instala o espaço das dúvidas, a dureza do enfrentamento da realidade. E o significativo poema “Montanha” nos faz descortinar o pétreo espaço:
A palavra pesada persegue a pedra, revela o austero pulsar do silêncio e, com ele, inaugura um olhar de montanha.(Refeição, p.19)
Metalingüisticamente, o poeta aponta, também, para a árdua luta na escolha (“no olhar”), na pesquisa da palavra-cerne, da palavra essencial. A significativa metáfora “olhar da montanha” aponta para a dureza dessa busca, que o preocupa e o instiga, arregimentando experiência, para firmar-se neste terreno tão árduo para os poetas e em que já se revela promissor.
Na segunda parte, instala-se o primeiro round dessa luta, quando o poeta, com plena demonstração da referida palavra aguda e perseguida, dá vazão ao seu “olhar de montanha”. Vejamos no poema “Todos” (com epígrafe de Manoel de Barros), como ele se expressa no claro propósito de agasalhar, em si, a síntese da humanidade:
Tente a revisão do ultrapassado, a coesão da arte do absurdo, a adaptação ao pós-moderno (...) Em mim estão todos. Eu sou todos. (Refeição, p.33)
“O rio continua no riso pálido do pescador extático no hiato das culturas, na incontinência dos jovens poetas” (Refeição, p.37)
Sente-se o alento primacial que batiza o universo e, em reforço a essa imagem, é que Francisco Perna parece acrescentar a linha primeva da pintura do menino de cinco anos. Também, a partir desse olhar, é que se justifica, a nosso ver, o pragmático título Refeição, e não um outro, trabalhado pela transfiguração e, por isso, mais carregado de poeticidade, como “Realento”, ou “Renascimento”, ou qualquer outro nesta referida linha. Tem a força crua da realidade, fazendo transparecer o outro pólo de nossa unidade, o espiritual, uma vez que esse alento deve representar o êmulo da necessária reação. Destruí-lo é perdê-la, como tragicamente se constata no poema “Essencial”.
O enfrentamento da realidade deve resultar, pelo potencial de reflexão, na lucidez que permite descortinar o campo de batalha, que permite visualizar o que resta ao ser humano. Reagir, sim, pois cabe ao homem “parir o vôo de destinação”, já que a vida é múltipla e toda “estrada traz o peso dos passos”.
Nota-se, no exemplo a seguir, como o poeta acha a palavra delineadora, caricatural, criando a imagem expressionista, prenhe de carga social:
Assim a leveza do estômago que passivamente soletrava o pão. (Refeição, p.65)
Há, sem dúvida, um sopro revolucionário a sugerir e a comandar a reação necessária.
E aquele pensamento básico — “parir um vôo de destinação” — segue comandando a temática do livro, que discute a consciência da sensação de impotência do ser humano, deslocado de si mesmo, como se comprova em “Palavras de um Morto”:
Há um grito em cada verso meu, grito abafado, mas sereno. Um grito continental de clamor e piedade pela humanidade.
O clímax desse estado de espírito é alcançado pelo sujeito lírico, quando, assumindo, explicitamente, os cinco anos do filho do poeta, idade da esperança, mostra-se, em contrapartida, “totalmente desesperançado numa paisagem de desamor, de guerras, de extermínios, como vemos em “Kosovo”:
Estou com cinco anos, a lua acaba de se apagar. (Refeição, p.94)
Na terceira e última parte do livro, agora iluminada por epígrafe de García Lorca, “Ydespués”, canaliza-se a angústia pela constatação da impotência frente ao tempo que circunscreve os problemas que atingem os homens, “peregrinos das insolúveis sentenças”, bem como se evidenciam os meios de reação.
A metaforização das imagens que suscitam o desfilar das carências vitais do homem, carências indiciadas pelas metáforas que traduzem os elementos primaciais da vida (como os alimentos, por exemplo, daí o título, não só do poema-chave, “A Sagrada Ceia”, quanto do próprio livro), provoca a concretização, a sacralização da proposta do livro: a urgência e coragem de se “olhar” para se “descobrir” e para “sentir” o seu próximo; a urgência e coragem de se buscarem as fontes de desajustes; a tentativa de resgate da angústia deles decorrente; a possibilidade de se tentar uma sondagem reparadora, que “revise a fome de santos e peregrinos”.
E enfrentando o percurso da reação, “o poeta refaz-se do último pesadelo” de sua “fome existencial”. Deixa entrever como atitude redentora “um leque de possibilidades”, apontando para a direção de seu olhar recriador, voltado para o Outro, para o Mundo e para Deus.
E, no último poema, “Duplo”, o poeta mostra, ao ser humano, a dicotomia responsável por tanta angústia, chamando a atenção para o homem e seu desdobramento visceral:
Caminhos me levam para fora de mim viajo. Não há como entender. (Refeição, p.117)
Busca o seu vôo, mas os pés estão presos em sua realidade. Parece vencido:
Há uma escuridão perpetuada. Manhã pesada. Mas quer readquirir forças para reagir:
Contemplo o meu corpo petrificado no espelho da sala. Reflito um abraço e vou dormir. (Refeição, p.118)
Assim, Francisco Perna Filho sintoniza, neste livro, nas imagens que sacralizam os dois campos de batalha, sua visão de poeta, no “ser passante” que somos; ousa argüi-lo, de maneira criativa, mas, talvez numa mostra de seu lado docente, busca apontar-lhe, ou melhor, sugerir-lhe, as vias de salvação. Seu imaginário está prenhe do universal e, poeta contemporâneo, consegue mostrar, com tenacidade, sua preocupação em torno da “difícil luta com as palavras”. Feliz iniciativa, Francisco Perna. Prossiga na sua árdua missão. Parabéns.
MOEMA DE CASTRO E SILVA OLIVAL, doutora em letras pela USP e professora emérita da Universidade Federal de Goiás, é escritora e crítica literária, autora, entre outros livros, de O Espaço da Crítica (Editora da UFG, 1998).
Este ensaio crítico foi publicado em dezembro de 2002, no Jornal Opção, em Goiânia.