Moema de Castro e Silva Olival - Ensaio Crítico


A REFEIÇÃO DO POETA

Em busca do maná existencial



Em sua estréia na literatura, o poeta Francisco Perna Filho instaura um projeto poético que gira em torno do eixo contrapontístico — o efeito destrutivo da realidade física circundante e a busca de equilíbrio do “eu interior”



MOEMA DE CASTRO E SILVA OLIVAL


Com prefácio do escritor Goiamérico Felício Carneiro dos Santos e orelha de Luiz Serenini Prado, o poeta e professor Francisco Perna Filho lançou seu livro de poemas Refeição, editado pela Editora Kelps, em 2001, com ilustrações infantis (de autoria de seu próprio filho de cinco anos, João Pedro Tavares Perna) e que, na intenção ao autor, não estão ali aleatoriamente, mas como coadjuvante de sua proposta temática. Vejamos. O projeto poético em questão gira em torno do eixo contrapontístico: realidade física circundante e o efeito destrutivo desta realidade sobre o “eu interior”, em busca do equilíbrio do ser humano, na sua bipolaridade: corpo e espírito. Recorre ao potencial energético da alma, induz à prática da visão lúcida, aguda, que mostra ao homem o tempo que lhe coube, as contas do rosário de sua travessia, os indícios dessa presença reconfortante e, muitas vezes, obscurecida, para o possível encontro do “alimento” que refaz, que se propõe reconstituir a unidade ameaçada.


E frente à perturbadora desordem de um “Cafarnaum” que o avassala, “nada há de novo que não nos mostre o velho”, e que, por isso, lhe instala a angústia, que o oprime e o deprime; resta ao ser humano “espectar”. Reconstituir-se, no tempo, operando memória, único recurso de solda dos fatos circunstanciais, para poder ocupar seu verdadeiro espaço de agente de seu destino. É preciso que não se perca de vista o propósito de recuperação, que o homem se permita sonhar, “voar”, para que encontre, no horizonte, as perspectivas de reabastecer-se e reenergizar-se, para poder enfrentar, lutar. Então, o poeta insiste na fome da liberdade, no contraponto de idéias que dividem o nosso “ego”, que balançam a nossa psique.

O livro se constitui de três partes. Com a primeira, iluminada por epígrafe de Fernando Pessoa, se instala o espaço das dúvidas, a dureza do enfrentamento da realidade. E o significativo poema “Montanha” nos faz descortinar o pétreo espaço:

A palavra pesada persegue a pedra, revela o austero pulsar do silêncio e, com ele, inaugura um olhar de montanha.(Refeição, p.19)


Metalingüisticamente, o poeta aponta, também, para a árdua luta na escolha (“no olhar”), na pesquisa da palavra-cerne, da palavra essencial. A significativa metáfora “olhar da montanha” aponta para a dureza dessa busca, que o preocupa e o instiga, arregimentando experiência, para firmar-se neste terreno tão árduo para os poetas e em que já se revela promissor.


Na segunda parte, instala-se o primeiro round dessa luta, quando o poeta, com plena demonstração da referida palavra aguda e perseguida, dá vazão ao seu “olhar de montanha”. Vejamos no poema “Todos” (com epígrafe de Manoel de Barros), como ele se expressa no claro propósito de agasalhar, em si, a síntese da humanidade:

Tente a revisão do ultrapassado, a coesão da arte do absurdo, a adaptação ao pós-moderno (...) Em mim estão todos. Eu sou todos. (Refeição, p.33)


Nesta segunda parte, o “eu lírico” questiona o vazio do mundo, das coisas em si, a força inaugural que o preside, como se pode ver em “Transformações”:

“O rio continua no riso pálido do pescador extático no hiato das culturas, na incontinência dos jovens poetas” (Refeição, p.37)


Sente-se o alento primacial que batiza o universo e, em reforço a essa imagem, é que Francisco Perna parece acrescentar a linha primeva da pintura do menino de cinco anos. Também, a partir desse olhar, é que se justifica, a nosso ver, o pragmático título Refeição, e não um outro, trabalhado pela transfiguração e, por isso, mais carregado de poeticidade, como “Realento”, ou “Renascimento”, ou qualquer outro nesta referida linha. Tem a força crua da realidade, fazendo transparecer o outro pólo de nossa unidade, o espiritual, uma vez que esse alento deve representar o êmulo da necessária reação. Destruí-lo é perdê-la, como tragicamente se constata no poema “Essencial”.


O enfrentamento da realidade deve resultar, pelo potencial de reflexão, na lucidez que permite descortinar o campo de batalha, que permite visualizar o que resta ao ser humano. Reagir, sim, pois cabe ao homem “parir o vôo de destinação”, já que a vida é múltipla e toda “estrada traz o peso dos passos”.


Nota-se, no exemplo a seguir, como o poeta acha a palavra delineadora, caricatural, criando a imagem expressionista, prenhe de carga social:

Assim a leveza do estômago que passivamente soletrava o pão. (Refeição, p.65)

Há, sem dúvida, um sopro revolucionário a sugerir e a comandar a reação necessária.

E aquele pensamento básico — “parir um vôo de destinação” — segue comandando a temática do livro, que discute a consciência da sensação de impotência do ser humano, deslocado de si mesmo, como se comprova em “Palavras de um Morto”:

Há um grito em cada verso meu, grito abafado, mas sereno. Um grito continental de clamor e piedade pela humanidade.


O clímax desse estado de espírito é alcançado pelo sujeito lírico, quando, assumindo, explicitamente, os cinco anos do filho do poeta, idade da esperança, mostra-se, em contrapartida, “totalmente desesperançado numa paisagem de desamor, de guerras, de extermínios, como vemos em “Kosovo”:


Estou com cinco anos, a lua acaba de se apagar. (Refeição, p.94)

Na terceira e última parte do livro, agora iluminada por epígrafe de García Lorca, “Ydespués”, canaliza-se a angústia pela constatação da impotência frente ao tempo que circunscreve os problemas que atingem os homens, “peregrinos das insolúveis sentenças”, bem como se evidenciam os meios de reação.

A metaforização das imagens que suscitam o desfilar das carências vitais do homem, carências indiciadas pelas metáforas que traduzem os elementos primaciais da vida (como os alimentos, por exemplo, daí o título, não só do poema-chave, “A Sagrada Ceia”, quanto do próprio livro), provoca a concretização, a sacralização da proposta do livro: a urgência e coragem de se “olhar” para se “descobrir” e para “sentir” o seu próximo; a urgência e coragem de se buscarem as fontes de desajustes; a tentativa de resgate da angústia deles decorrente; a possibilidade de se tentar uma sondagem reparadora, que “revise a fome de santos e peregrinos”.


E enfrentando o percurso da reação, “o poeta refaz-se do último pesadelo” de sua “fome existencial”. Deixa entrever como atitude redentora “um leque de possibilidades”, apontando para a direção de seu olhar recriador, voltado para o Outro, para o Mundo e para Deus.

E, no último poema, “Duplo”, o poeta mostra, ao ser humano, a dicotomia responsável por tanta angústia, chamando a atenção para o homem e seu desdobramento visceral:

Caminhos me levam para fora de mim viajo. Não há como entender. (Refeição, p.117)


Busca o seu vôo, mas os pés estão presos em sua realidade. Parece vencido:

Há uma escuridão perpetuada. Manhã pesada. Mas quer readquirir forças para reagir:

Contemplo o meu corpo petrificado no espelho da sala. Reflito um abraço e vou dormir. (Refeição, p.118)


Assim, Francisco Perna Filho sintoniza, neste livro, nas imagens que sacralizam os dois campos de batalha, sua visão de poeta, no “ser passante” que somos; ousa argüi-lo, de maneira criativa, mas, talvez numa mostra de seu lado docente, busca apontar-lhe, ou melhor, sugerir-lhe, as vias de salvação. Seu imaginário está prenhe do universal e, poeta contemporâneo, consegue mostrar, com tenacidade, sua preocupação em torno da “difícil luta com as palavras”. Feliz iniciativa, Francisco Perna. Prossiga na sua árdua missão. Parabéns.



MOEMA DE CASTRO E SILVA OLIVAL, doutora em letras pela USP e professora emérita da Universidade Federal de Goiás, é escritora e crítica literária, autora, entre outros livros, de O Espaço da Crítica (Editora da UFG, 1998).


Este ensaio crítico foi publicado em dezembro de 2002, no Jornal Opção, em Goiânia.

Foto by Tainá Corrêa

Memória - entrevista com o Artista Plástico M. Cavalcanti




MARANHÃO CAVALCANTI

“Precisamos de um novo Renascimento”



Para o artista plástico goiano, a sociedade moderna submergiu numa desordem praticamente medieval e cabe à arte contribuir para a reconstrução do ser humano em sua plenitude ética e cognitiva



Com dezenas de exposições no Brasil e no exterior, M. Cavalcanti é um dos mais conceituados artistas plásticos contemporâneos do Estado. Mineiro de Uberlândia, onde nasceu em 19 de novembro de 1956, Oswaldo Maranhão Cavalcante Júnior reside em Goiânia desde 1960. Já realizou dezenas de painéis, inclusive na sede nacional da OAB, em Brasília, além de esculturas e murais. Obras de sua autoria compõem acervos, entre outros, da University of Wyoming Art Museum, em Laramie (Estados Unidos); Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), em Brasília; Palácio das Esmeraldas (Goiânia); Unesco, no Rio de Janeiro; Museu de Arte de Goiânia, Fundação Jaime Câmara e Fundação Cultural de Brasília. Participou de cerca de 50 exposições (entre as principais), nos Estados Unidos, na França, em Goiânia, Brasília, Paraná, São Paulo e Minas Gerais.

Agora, M. Cavalcanti participa do Projeto Cor da Carne, inaugurado no dia 29 de fevereiro último e em cartaz no Flamboyant Shopping Center até 14 de março, domingo, das 10 às 22 horas. O projeto compõe-se de um rebanho de zebus pintados por 12 artistas plásticos goianos. Depois de ingressar no curso de publicidade e propaganda da Faculdade Cambury, M. Cavalcanti transferiu-se para o curso de arquitetura, na mesma instituição. Nesta entrevista concedida aos escritores Valdivino Braz (também jornalista), Francisco Perna Filho (também professor), com participação especial do escritor Delermando Vieira, M. Cavalcanti reflete sobre a arte — em sua acepção mais profunda — e, conseqüentemente, fala do homem — em suas tensões mais agônicas. Sem deixar de cutucar, com vara curta, a política cultural do Estado e do país.

Francisco Perna — M. Cavalcanti, vamos começar pelas coisas boas. Fale-nos do recente painel que você criou para a sessão de Brasília da OAB. Qual o significado disso, já que sua obra estará inserida no contexto arquitetônico Oscar Niemeyer?

Fui indicado por uma galeria de São Paulo, a Galeria André, e fiquei muito satisfeito. Há três anos, eles estavam tentando encontrar um artista para executar a obra. Quando eu soube que o painel faria parte da fachada da sede da OAB, em Brasília, projetada por Oscar Niemeyer, fiquei mais motivado ainda. Eu já tinha feito um painel na Receita Federal, em Goiânia, como tributo ao próprio Niemeyer. Esse painel na OAB exigiu pesquisa e me deu muito prazer. Tive que pesquisar um pouco a história da OAB, desde 1930, quando ela foi institucionalizada por Getúlio Vargas. Fui a Brasília, para conhecer a sede da OAB, pois sabia que havia uma escultura do Niemeyer na fachada do prédio. Então, eu queria realizar meu trabalho de uma forma que não interferisse e também não competisse, mas que somasse. Creio que fui recompensado: esse esforço resultou num trabalho coerente, bastante elogiado por todos que o viram.

Francisco Perna — O crítico de arte Marcos de Lontra Costa assim se refere a você: “M. Cavalcanti faz parte de um grupo de artistas que preferem investir na tradição da práxis artística, na valorização de seus meios artesanais, na elaboração de sua poética pictórica, que valoriza as cores, as texturas e o ato de pintar”. Como você interpreta a proliferação do conceitual na arte, supervalorizado pelos críticos e badalado pelos meios de comunicação?

Existem algumas correntes, entre as quais duas se distinguem: uma, a arte conceitual; outra, a arte mais figurativista, calcada nessa relação entre teoria e prática, mencionada por Lontra. Há bons artistas nos dois segmentos. Mas é preciso ter muito cuidado com o conceito de arte conceitual, pois há um certo modismo em se dizer adepto dessa arte, levando alguns críticos a forçarem a barra nesse sentido. Dizem que a arte tem que ter como ponto de partida o que o homem quer, o que o homem pensa. Concordo, em parte. Mas, quando o artista começa a desconstruir demais esse contexto, ele corre o risco de perder algumas raízes muito importantes. Prova disso é a facilidade com que muita gente diz: “Ah!, agora sou artista, faço arte conceitual”. E, a partir disso, olha com desdém para outros segmentos artísticos. Não pode ser assim. É possível desenvolver uma arte conceitual profunda, sem cair na banalização. Porque é muito fácil fazer um traço qualquer, jogar graxa na parede, e chamar isso de arte conceitual. Há muita bobagem sendo feita a pretexto de arte conceitual. O que prejudica os artistas que desenvolvem um trabalho sério de arte conceitual, como o artista carioca Tunga.

Francisco Perna — Você citaria alguém de Goiás, particularmente?

Em Goiás também existe uma geração nova que está virando as costas muito rapidamente para os pilares da arte produzida no Estado. São pequenos grupos que começam a incrementar a arte conceitual e a olhar com desdém a velha guarda, digamos assim. Entretanto, arte não é moda, arte não envelhece.

Francisco Perna — Que valor você dá ao desenho na formação do artista?

Considero o desenho como algo extremamente importante para o artista. A minha formação é figurativista e eu seria ingênuo se negasse a importância do desenho. Quem não sabe desenhar está perdendo muito em termos de sensibilidade. O que me preocupa é que está surgindo uma geração que não desenha, não gosta de desenhar e nega a importância do desenho. Aí fica fácil pegar o estrume, jogar numa tela, deixar escorrer e chamar isso de arte conceitual. Se o artista quer se expressar em termos de idéias, tem que pesquisar, estudar, a não ser que seja um gênio superdotado, o que não acontece em Goiás. Aqui não existe gênio nenhum, do meu ponto de vista. O que há são pessoas que se autodenominam gênios, de um modo prematuro, imaturo até. É uma pena que alguns artistas novos começam, de maneira até simplista demais, a achar que a arte conceitual, inspirada num modelo europeu, alemão ou seja ele qual for, tem que ser importada de qualquer jeito para o Planalto. Acham que basta comprar a passagem, viajar para a Europa, ver a arte conceitual que se faz lá e voltar correndo para começar a reproduzi-la aqui. Isso não tem base, não tem lastro. A nossa cultura é que tem que ser colocada daqui para fora, para ela se tornar universal.

Valdivino Braz — Como você relacionaria a arte conceitual de hoje e o vaso sanitário exposto em salão por Marcel Duchamp, bem como as latas de sopa Campbell pintadas por Andy Worhol?

Duchamp fez isso há muitos anos e, naquele momento, abriu uma janela impactante dentro da história da arte. O próprio Andy Worhol, com a banalização do consumo norte-americano, com as sopas Campbell, com a Gold Marilyn (Marilyn Monroe) e o retrato de Pelé, teve a sua importância naquela época. O que acontece é que, de lá para cá, existe uma lacuna e muita bobagem foi feita, inspirada até no próprio Duchamp. Mas, do ponto de vista histórico, não dá para revisitar o mesmo vaso sanitário, a mesma lata de sopa. Isso já foi feito. Não tem nada a ver com o nosso momento atual. O vaso de Duchamp foi importante naquele momento, como rebeldia em relação aos rígidos estéticos da época . Qual é o contexto de hoje? Qual é a desorganização de hoje? Não pode mais ser aquele vaso sanitário, pois isso já se foi. O nosso mundo, hoje, precisa passar por um novo período, que poderia se chamar de um novo Renascimento. Precisamos de um novo Renascimento, porque, pode parecer um paradoxo, um absurdo, um contra-senso, mas estamos próximos da Idade Média em pleno século XXI. Estamos vivendo quase à beira do caos. Então, precisamos de um novo Renascimento para restabelecermos alguns pilares de sustentação e podermos continuar a caminhada, culturalmente falando, politicamente falando, socialmente falando.

Valdivino Braz — Você traçaria algum paralelo entre a arte conceitual e a onda dos chamados flashmobs, tumultos relâmpagos, que consistem em praticar alguma atividade aparentemente sem sentido, como performance artística ou não, apenas para chamar atenção, e depois dispersar-se rapidamente, antes que chegue a polícia?

O que acontece é que, hoje, todo mundo está muito carente. Com relação à performance, muitos mergulham em sua loucura e não conseguem sair dela. Muitas vezes, vejo alguém realizando uma performance e fico surpreso, pois não sei se aquilo está sendo feito com a lucidez necessária ou se a pessoa tem alguma anormalidade no comportamento. Não sei se ela está drogada ou se está contaminada. Qualquer manifestação artística, seja qual for, tem que ser encarada com a maior responsabilidade. Não se pode fazer uma manifestação artística e sair correndo da polícia. Já passou essa época. Infelizmente, as próprias bienais de arte, hoje, vivem de provocações.

Delermando Vieira — Você não acha que existem muitos artistas plásticos forçando a barra em termos de criação?

Infelizmente, sim. Ser artista é um estado de alma, muito mais profundo do que você dizer que agora vai ser artista. Essa racionalidade é uma incoerência do ponto de vista da sensibilidade da criação, no artista genuinamente artista. Há muita gente produzindo bobagem, despreparada para trilhar os caminhos da arte. Ser artista é muito mais do que pegar uma tela e pintar. É decodificar os sinais do silêncio, o silêncio que não acaba, o silêncio que não existe, a verdade que não existe. Essas coisas é que são mais verdadeiras.

Delermando Vieira — Vemos, em Goiás, artistas plásticos pintando Jesus caolho nos prédios e pretensos escultores fazendo boizinhos de pau ou bonequinhas de espiga de milho. Como você vê essas misérias?

Isso é produto dessa confusão à qual me referi. Há coisas que são artesanato, não são arte. Essa confusão é própria do momento atual. Mas essa pretensa arte não dura — o tempo se encarregará de filtrar as coisas. Evidentemente, a própria mídia tem que assumir o seu papel como veículo de divulgação que se leva a sério.

Valdivino Braz — Um artista plástico local disse que o governo Fernando Henrique acabou com as artes no país e que muitas galerias estão fechando, inclusive em Goiânia e Brasília. Concorda com isso? E a política cultural do governo Lula?

O que acontece com as galerias é o reflexo, também, do exagero nessa questão da chamada arte conceitual. Na realidade, o que acontece com a arte conceitual? Muitas vezes, ela se limita a uma performance e dispensa os museus. O que é um desestímulo à estruturação de museus, sendo que nosso país precisa de mais museus. O único museu de grande peso que temos na América Latina é o Museu de Artes de São Paulo, o MASP, criado por Assis Chateaubriand e Pietro Maria Bardi. Hoje, temos o Gilberto Chateaubriand, continuando a caminhada. Mas a própria construção do MASP foi realizada sob a pressão da poderosa figura política de Assis Chateaubriand. A cultura se dá também através de eventos. As artes plásticas se materializam na tela, assim como a literatura se materializa no livro, mas elas não podem prescindir do evento, da divulgação, da mobilização, para se materializar perante a percepção alheia. Se não acontece isso através dos museus, caberia às galerias assumir isso. Infelizmente, o setor cultural vive com um pires na mão. Com isso, pequenos grupos dominantes se apoderam das parcas receitas disponíveis.

Francisco Perna — Esse problema afeta Goiás?

Afeta, porque respinga por aqui. O governo brasileiro interfere muito em nossa vida e, quase sempre, negativamente.

Francisco Perna — Como você vê a iniciativa do governo Marconi Perillo, em Goiás, de criar-se o Centro Cultural Oscar Niemeyer?

Um dia, conversando com o governador Marconi Perillo, fazendo um evento cultural para angariar fundos para a campanha do frio, da OVG [Organização das Voluntárias de Goiás], eu disse a ele que somos vizinhos de Brasília, mas não temos nenhuma obra de Niemeyer, que, então, estava com noventa e dois anos de idade. Sugeri ao governador a criação de um museu que lembrasse o grande arquiteto. Então, ele chamou o presidente da Agência Goiana de Cultura, Nasr Chaul, e as coisas começaram a caminhar nessa direção. Hoje, existe o projeto do Centro Cultural. Esse projeto será um grande marco cultural para nós.

Francisco Perna — Mais do que o trem-bala?

Mais do que o trem-bala, Antes de se pensar em trem-bala, é preciso duplicar a rodovia entre Goiânia e Brasília. Ainda não existe trem-bala nem no eixo Rio-São Paulo. Já perdi muitos amigos ali, naquele trecho. Quem não perdeu? Então, o trem-bala é um trem meio futurista ainda. O projeto é interessante e não sou técnico na área, mas penso que há outras prioridades.

Valdivino Braz — Inclusive o transporte coletivo urbano?

É um exemplo. E precisamos melhorar a nossa malha viária para escoar toda a produção de Goiás, que está vindo aí com tudo.

Valdivino Braz — Para o momento, esse trem seria uma bala perdida?

Poderia até ser uma bala perdida.

Valdivino Braz — Goiânia é vista, por alguns, como a capital dos outdoors, e tem o Projeto Galeria Aberta, nas paredes externas dos prédios. Esse projeto nao necesitapasar por um processo de recuperação?

Eu, inclusive, perdi um painel da Galeria Aberta, próximo à Praça Cívica. O síndico do prédio achou que tinha que apagar porque estava esquentando a parede. O Gomes também perdeu um painel. O Projeto Galeria Aberta é uma idéia muito boa, que se insere no cotidiano da cidade. Infelizmente, precisa de sustentação, que não há.

Francisco Perna — Você também está preocupado com a formação de novos valores. Fale-nos desse projeto.

Um grupo de pessoas estava querendo pegar aulas comigo. Eu disse a elas que, então, iríamos fazer um trabalho muito sério. Tenho visto alguns professores de pintura que parecem mais preocupados em arrancar o dinheiro dos alunos, que estão estacionados no tempo há muitos anos. Vou fazer um curso diferente. Quero resultados com meus alunos. Vamos fazer uma exposição, vou tirá-los do marasmo. Muitos artistas nasceram depois dos 40 anos de idade, e todos os meus alunos estão acima dos 40. O curso é muito embasado, inclusive com a aplicação de textos.

Francisco Perna — É sabido que há uma relação entre as artes plásticas e literatura, como no caso de Boticceli, que fez uma série de desenhos para A Divina Comédia de Dante. E Salvador Dalí foi escritor. Como a literatura se relaciona com obra de M. Cavalcanti?

Tenho muita sensibilidade para com a literatura e gosto de deixar que isso flua. Essa influência da literatura na obra de arte é uma herança anterior à Semana da Arte Moderna, em 1922. Quem teve um grande problema com isso foi Monteiro Lobato ao criticar a obra de Anita Malfati, por não compreendê-la. No meu caso, o meu mar é a pintura, mas a literatura tem mexido demais comigo. Tive uma experiência muito boa no semestre passado, na Faculdade Cambury, e isso foi muito bom porque vi que estava com saudade de pensar sob a ótica da literatura e escrever. Tenho algumas coisas escritas, mas ainda não é o momento de colocar isso para fora. Não tenho que provar nada a ninguém nessa área da literatura, será apenas uma criação minha.

Francisco Perna — Eu falo desta relação porque você já ilustrou alguns livros, fez algumas capas de livros.

Eu não saberia dizer quantas capas de livro já fiz. Entre outros, fiz capa para Carmo Bernardes. Nunca me furtei a essa oportunidade. Acho que ela é muito valiosa, celebra um momento único entre a literatura e as artes plásticas. Assim como o diálogo entre pnitura e arquitetura. Aliás, não posso deixar de registrar a perda de um grande companheiro e um grande arquiteto — Tadeu Batista, falecido recentemente. Sem dúvida, um dos grandes pilares da arquitetura goiana. Foi um revolucionário na área. Desenvolvi meu último trabalho com ele —uma escultura de uma tonelada e seis metros de altura, em frente ao Executive Tower, na avenida 136, no Setor Sul, e um painel que pintei no teto deste mesmo edifício. Essa escultura insere-se no meu projeto de produzir obras em grande escala para incorporá-las ao cenário urbano, pois aqueles bustos que os militares colocavam nas praças não fazem mais sentido. E a perda desse grande amigo, Tadeu Batista, é uma pena porque eu vinha tentando incrementar, cada vez mais, essa parceria entre o artista plástico e o arquiteto.

Valdivino Braz — O artista plástico faz uma leitura da obra literária e expressa com outras tintas essa leitura, daí a importância da capa realizada por ele. Não deixa de existir, sempre, uma empatia entre tela e texto.

Exato. E isso é muito provocante.

Valdivino Braz — Ainda no contexto dos conceitos e performances, como você observa a exposição de cadáveres, a Body Worlds (Mundos Corporais), apresentado pelo alemão Gunther von Hagens?

Sabia que ele se acha revolucionário tal qual Leonardo da Vinci? Afirma que será julgado pela história pelo impacto que está provocando. Eu coloco esse artista — esse artista, não, olha só! —, essa figura, esse alemão, dentro da mesma análise dessa desorganização que estamos vivendo. É interessante o trabalho de Gunther von Haghens, do ponto de vista do estudo da anatomia. Mas quando ele começa a comercializar isso, sistematicamente transformando isso em produto cultural, ele começa a banalizar o ser humanoEle pega os órgãos, distribui, põe numa gaveta e remonta isso como numa oficina de carro. Ele está mexendo com o que há de mais sagrado dentro de nós, a morte, que ainda temos muito mal resolvida. Quando nos encontramos com a morte transformada, revisitada e esteticamente organizada, é uma coisa que nos provoca. É um assunto muito complicado.

Valdivino Braz — Gunther von Hagens teria utilizado cadáveres de vítimas de execução chinesa. E, já que falamos de ética, como você avalia a clonagem?

A clonagem de seres humanos parece inevitável, porque o ser ser humano é muito inquieto, tem sede de conhecer. Mas, se aceitarmos isso sem debater, como estamos debatendo o caso de Ghunter, incorreremos num gravíssimo problema ético. Uma pessoa pratica um roubo e, por causa disso, é executada com um tiro na testa. Outra vem, compra seu cadáver e o transforma para fins pretensamente artísticos. Isso ainda será julgado. Ghunter está mexendo com a religiosidade das pessoas sem o mínimo pudor. E com bilheteria, não é?

Valdivino Braz — Fale-nos um pouco, agora, do seu projeto Cor da Carne, juntamente com outros artistas plásticos, colocando-se aos olhos do público um pequeno rebanho de bois feitos com fibra de vidro, em tamanho natural.

É um projeto de Camilo Pereira, que tem o título de Barão of Fulwood, que lhe foi conferido na Inglaterra. É um goiano que saiu daqui aos 15 anos de idade e está voltando agora, com a pretensão de montar uma galeria de arte para atuar com mais profissionalismo no ramo. Ele está sentindo falta disso. Todos nós sentimos essa falta disso em Goiás. E o projeto Cor da Carne é idéia dele. Reunimos um grupo, somos 13 artistas participando do projeto: D.J. Oliveira, Cléa Costa, Peter Rodulfo [artista inglês que veio com Camilo], Selma Parreira, Nonato e Luiz Mauro [estes dois de Inhumas], Roosevelt, Telma Alves, Tarciso Viriato [de Brasília], Marcelo Solá, Edney Antunes, Juliano Morais e eu. O suporte do projeto é o boi. O interessante é que cada artista entra com um boi e vamos montar um pequeno rebanho muito provocante, porque a política do boi é um dos pilares na economia goiana e teve a sua interferência do ponto de vista cultural. Antigamente, deixava-se de comprar um quadro porque, na visão do comprador, ele custava dez bezerros, 50 cabeças, e isso, para ele, era um absurdo. Hoje, a coisa mudou. A arte vai invadir o boi, sob a nossa ótica cultural. O boi é uma moeda corrente, faz parte da nossa economia, e a arte também. Emblematicamente, esse casamento do boi com a arte tem um sentido muito curioso, e as pessoas vão ver e sentir isso. O projeto está sendo exposto na parte nova do Flamboyant Shopping Center. Alguns artistas, inclusive, vão pintar suas telas no local. Depois a mostra irá para um museu de artes em Brasília e será transformada em livro pelo escritor pelo poeta Brasigóis Felício. Camilo Pereira bancou tudo do próprio bolso.

Valdivino Braz — Como você avalia o papel do Estado na cultura?

Temos algumas referências em Goiás, em termos de política cultural. Tivemos o governo Irapuan Costa Júnior, que foi um grande incentivador da cultura e o governo Henrique Santillo, que foi bastante atuante. Marconi Perillo tem feito um trabalho interessante. A minha preocupação é quanto à formação de pequenos grupos que acabam monopolizando a política cultural. Apesar de termos grandes valores individuais, também sinto falta de um movimento goiano de artes, como se faz em outros Estados, como a Bahia, por exemplo. Devemos observar que alguns chamados baluartes da pintura goiana, com uma projeção nacional muito grande, foram, de certa forma, omissos nessa questão. Foram bem-sucedidos somente para si, e não para o movimento. Não tiveram a preocupação com o coletivo, com a formação de uma consciência goiana de cultura, seja ela nas artes plásticas ou na literatura. Cada um tem a sua individualidade, mas é o momento de se fortalecer o segmento, para se levar a identidade goiana para fora. Uma vez fiz uma exposição em Cambridge, a convite, e chamei o padre César, então secretário municipal de Cultura, para ir conosco a essa exposição. Neste sentido, houve agendamento com a prefeita de Cambridge, Padre César confirmou presença e, na reta final, acabou não indo. Pedi-lhe, então, que enviasse um ofício a Cambridge, que esperava por um agente cultural de Goiás. Recolhi fitas sobre a cidade de Goiânia e levei para lá, fui recebido pela prefeita, que esteve em minha exposição, e eu trouxe a chave daquela cidade. Entreguei-a ao padre César e lhe disse que sua ausência fora sentida. Vejam a importância do artista plástico — o que aconteceu comigo poderia ter acontecido com qualquer outro artista. É necessário que se tenha o agente facilitador do processo cultural.

Francisco Perna — O que você acha das leis de incentivo à cultura, tanto estadual quanto municipal?

Funcionam. Eram uma coisa que não tínhamos e que vieram como incrementadoras da cultura. Sabemos que essa parte foi muito boa. Mas há aspectos ainda polêmicos, como o artista ter aprovado o seu projeto e ser obrigado a ir atrás do orçamento, convencer o empresário a bancar o projeto. A grande política cultural, se tivesse uma lei melhor, seria ver o projeto aprovado e o governo pagar esse projeto, sem fazer o artista correr atrás dos recursos. A via crucis que o artista faz é um processo doloroso, ir atrás do empresário quando nem todos têm habilidade para isso. E ainda há alguns quesitos da própria lei, como, por exemplo, entrar no mérito de saber que material o artista vai usar, quantos pincéis etc. Quantificar isso é uma coisa complicada.

Francisco Perna — Você acha que o empresariado goiano já está mudando o seu conceito em relação à arte, sabendo que quando investe em cultura está investindo em sua própria empresa e incrementando a vida cultural?

Eu tive um projeto aprovado pelo Conselho Estadual de Cultura, um painel em cerâmica na Faculdade Alfa, patrocinado pela Coca-Cola. Houve demora entre a tramitação e a aprovação do projeto. Graças a Deus, tenho um bom relacionamento e consegui encaminhá-lo. Fico pensando em artistas que não têm essa fluência e que vão entrar, às vezes, em estado de sofrimento. Por exemplo, quando o padre César era secretário municipal de Cultura, eu e o Gomes fizemos um projeto em parceria, que consistia na elaboração de um painel no Instituto do Patrimônio Histórico e Geográfico de Goiás. Apresentamos esse projeto à Lei Municipal de Incentivo à Cultura, mas só foram liberados 10 por cento do valor que havíamos pedido. Decidimos, então, subsidiar o restante, por entender a importância do painel, por uma questão de consciência da nossa responsabilidade social. As leis de incentivo à cultura são boas, mas precisam de suportes suplementares.

Francisco Perna — O caso do padre César foi atípico, não? Ele não era da área cultural?

O padre César é uma figura muito polêmica. Aliás, todo padre. Eu não viro as costas para um padre. Historicamente, todos os padres que passaram por aí foram figuras interessantes. Um grande exemplo foi o frei Nazareno Confaloni, que foi artista e um grande incentivador da arte. Mas a questão não é essa. A questão é que o governo, seja municipal ou estadual, tem que ser um facilitador do processo cultural.

Valdivino Braz — Há que ser um facilitador, e não complicador. A burocracia é cruel, até porque, amiúde, é um meio que não chega ao fim.

Exato. Ãs vezes, uma lei de incentivo à cultura parece boa, mas se torna complicada ou inoperante, prejudicando o artista.

Francisco Perna — Outro problema, ao que me parece, é que o atual secretário municipal de cultura, Sandro di Lima, que é da área do teatro, prioriza a sua área em detrimento dos demais.

Com relação a isso, é até uma questão vocacional. Isso existe porque nós, seres humanos, às vezes somos tendenciosos demais. Era de se esperar essa atitude, porque o secretário é da área do teatro. Mas ele tem procurado atender outras áreas também.

Valdivino Braz — Em resumo, o que falta em todo esse contexto cultural?
Falta unidade de pensamento, fluência e espírito de equipe.


Esta entrevista foi originalmente publicada no Jornal Opção, de Goiânia, no dia 07 de março de 2004

Tâmara Filgueiras - Ensaio Crítico

Obra poética “Visgo ilusório” será lançada em Palmas no próximo dia 27

24/05/10 11:50 - Thâmara Filgueiras


Rodolfo Ward

Livro Visgo Ilusório, que já foi lançado em Goiânia, terá solenidade em Palmas, no próximo dia 27
Livro Visgo Ilusório, que já foi lançado em Goiânia, terá solenidade em Palmas, no próximo dia 27
Depois de contemplar os leitores goianos, o escritor e professor do curso de Letras da Unitins – Fundação Universidade do Tocantins, Francisco Perna Filho, se prepara para lançar sua quarta obra, Visgo ilusório, em Palmas. A solenidade acontecerá no próximo dia 27, na cantina Boa Massa (602 Sul, Av. LO 13, Lote 17). A obra faz parte da coletânea Goiânia em prosa e verso, uma parceria entre a prefeitura da capital goiana, a editora Kelps e a Universidade Católica de Goiás.

Visgo ilusório trata da luta diária pelo verbo preciso. “A palavra é uma convenção humana e, de uma certa maneira, ela é arbitrária. Então, o vínculo que há entre a coisa que nomeia e o ser nomeado é muito difusa e às vezes a palavra não consegue expressar aquilo que você quer dizer ou representar”, argumentou o escritor.

O autor também faz uma relação com uma antiga brincadeira de crianças, que aprisionavam pássaros usando visgo feito a base de jaca ou outros materiais. Esta analogia pode ser vista no poemaPor um sono, que trata do visgo ilusório da palavra que, segundo explica Perna Filho, “para criar essas imagens poéticas, para traduzir o mundo, o poeta luta com as palavras para tentar traduzir essa realidade que ele vê. E nem sempre consegue, mas ele usa as palavras que mais se aproximam. Então a gente tem a ilusão de que aquilo está sendo representado pela palavra”, explicou.

A obra divide-se em cinco partes, que são compostas por poesias escritas a partir da invasão dos Estados Unidos ao Iraque até quando se propalou que o etanol seria a grande saída para o Brasil e muitos proprietários de terras começaram a arrendá-las com esse fim. “Eu começo com O olhar, em que eu trago poesias da minha infância, do meu pai, uma autobiografia. Depois tem O voo, onde eu falo da poesia e do ofício do poeta. O mergulho é um trabalho mais voltado para o sentimento mesmo. O revoo onde eu trago oAboio, que fala das fazendas que foram vendidas para plantação de cana para produção de etanol, e Concerto para violino, que fala do maestro russo Serguei Diatchenko, que se matou aos 64 anos. Por fim, tem O visgo, que fala das cenas urbanas, do aglomerado de pessoas”, descreveu o escritor.


Francisco Perna Filho
Nasceu em Miracema do Tocantins, onde teve os primeiros contatos com a literatura. É mestre em Letras e Linguística – estudos literários, pela Universidade Federal de Goiás. Tem três livros publicados: Refeição, de poesia, lançado em 2001 pela editora Kelps; As mobílias da tarde, poesia, publicado pela Perna e Leite Editores, em 2006; e Criação e vanguarda: Bopp e Barros, crítica literária publicada pelo projeto Goiânia em prosa e verso, em 2008.


Delermando Vieira - Ensaio Crítico




Mobiliário poético


De um verdor de faias e sombras incontáveis
A plena e fácil voz celebra o verão.
John Keats








DELERMANDO VIEIRA*




A poesia em Francisco Perna Filho, poeta telúrico, cônscio de seu laborar poético, recende a grãos de terra esmiuçados ao vento das águas da chuva acendendo, nos dias, o espírito dos homens, sob o que tange e locupleta o fôlego, a estética e sabedoria das horas, em sua essência e memória humanística.

Força que assopra e sopesa, na forja do tempo, a leveza do que, ao fundo, medra a mais simples sensibilidade em seu caminho, assim é a sua poesia, tão farta de flashes e nuanças próprias de quem, no passado, viu e viveu a sustância das causas terrenas, num espaço de época longínqua, cuja natureza se esplende ao susto do amor legado, na infância, àqueles que a bem de sua vida sabem, e souberam, como nunca, construir em seu destino os valores de um eterno existir, ainda que efêmera seja, ou fosse, a sua passagem por este mundo.

Profundamente ligada às raízes da sensibilidade, atendo-se, inclusive, aos claros labirintos do dizer-se pleno, assim é a poesia deste poeta, ora chegando, ora se fazendo, dentro de sua vasta particularidade de erguer a grande poesia, sem, contudo, deixar-se conduzir pela vã e medíocre vulgaridade, que certos poetas de hoje defendem, sob o pretexto de que estão construindo uma poesia aberta, comum e viável à compreensão do povo.

A poesia edificada por Francisco Perna Filho em seu belo livro, As Mobílias da Tarde, é, sem dúvida, simples, porém humana, carregada de uma serenidade e grandeza de quem já viveu, e vive, o íntimo testemunho dos fatos legados àqueles que, tão-somente, se propõem a memorar em si todo o cenário e riqueza de seu passado, quando, então, pelas raias da infância laboravam o seu cotidiano untado de sublime natureza. Seguro em suas palavras, Francisco Perna Filho, ou naturalmente, Chico Perna, aqui poeta autêntico, se faz sensível e tocante, ante a clareza de suas idéias se fazendo necessárias, ao poético intento de levar a todos o seu anunciado, ou seja, a forma mais pura de sua poesia erguida sob o crisol de uma razão precisa, finalmente realizada em seu motivo maior: a sínese do silêncio em aguda sensibilidade.

Leve, como leve é o espírito das coisas se prontificando, se traduzindo, à sua mesma natureza de soerguer, na paisagem das horas, o sentido do belo em sua estóica essência, sem, no entanto, descer forçosamente à frágil intenção da mesmice, assim é a poesia deste poeta; e sua força, por certo, traduz-se no espelho de sua natureza terrena, como se fosse de seu hausto a franqueza maior de inspirar e expirar a sabedoria, mais simples e possível, ao cognoscível sentimento das gentes, do mundo mergulhado em suas imagens proliferando cenários de rios, estradas, cidades e lugares de ermo fazer-se em profunda memória. Como vislumbres poéticos arraigados na alma, aqui, neste As Mobílias da Tarde, a poesia se constrói, se sustenta, ao conduzir-se clara e direta em seus versos. Chico Perna, poeta antenado que é, soube, como poucos, relatar os fatos do passado, revelando-os numa sabedoria de admirável sutileza e, por isso mesmo, edificada em sintonia agradável, sem peso algum, que a possa tachar de frágil e simplória.

As Mobílias da Tarde, editora Perna e Leite, 105 páginas, capa de M. Cavalcanti, editado em 2006, traz em sua estrutura a forte memória do que, em suma, minera o espírito do homem, às suas mesmas e profundas raízes e costumes, ao escopo do ser e sua lúdica visão, tão inerente àqueles que, fatalmente, se ressentem, se tocam e se sensibilizam, às lembranças dos dias idos, viajados para nunca mais, quando na velha infância, quando na súbita juventude dos olhos, já gastos, envelhecidos em sua demora, no seu fim de ser já nascido para outro mundo, que não o de hoje, que não o de agora, mas, sim, como o de ontem, que no amanhã, certamente, far-se-á, feito um chamado de Francisca a seu filho, então chegando do rio.

Versos, como “Foi quando ela aprendeu sobre a vida e a morte, acompanhou as estações do ano, a gestação do rio, entusiasmada com a possibilidade de romper o próprio leito”, A Infância, pág. 33; ou, então, “A cidade é vista sob a neblina difusa. Há um desejo de vê-la cada vez mais de perto. Ela é vária e, diluída, ensina um olhar de milhas que não se perde em mim”, A Infância, pág. 51, e, ainda, “O rádio não existe mais, desfez-se no rio dos anos. Hoje, ouço os velhos telhados antecipando o barulho dos galos, os inconsoláveis soldados da noite”, Gênesis, uma visão lúdica, pág. 81, subentendem-se, ou melhor, explicitam-se, dentro de sua anuência inerente à imantada ternura de uma imagética singular, coerente e possível, àqueles de sentimento sincero, honesto como a luz do dia. Versos estes, sim, que em seu estar coevo, expõem, como nunca, o estigma daqueles que em verdade se sabem, tantas vezes, vivendo sua mesma e única essência de viver o que passou, sem, no entanto, coerirem-se à estúpida e forjada mentira de nutrir-se de sentimentos jamais tocados, nunca sentidos. Como a preciosa pedra esquecida no sequitel, versos como “O orvalho nas folhas da erva-cidreira, fumaça subindo da chaminé, rangido de carros-de-boi e a menina com o rosto refletido na água da cisterna”, Gênesis, uma visão lúdica, pág. 29, refletem em si o fôlego de memorável simplicidade que, de certa forma, levam a um traduzir-se à plena natureza, feito fosse sua estrutura, nada mais, nada menos, que um vilancete, uma espécie, assim, de revelação madura, própria e eficaz, sem dúvida, ao coração do ser, do súbito mundo de cada um. Eu, que não sou nada, e nada mais posso ser, senão o que sou, faço-me de pleno e de direito ao dizer, e afirmar, se preciso, que Francisco Perna Filho, possui em sua fala poética longos sinais e reflexos, que lembram, sutilmente, a verve poética de Walt Whitman, ou, talvez, de John Keats, ainda que em sua retórica verbal, concisa e perfeitamente cingida aos dias de hoje. Francisco Perna Filho, sem medo de dizer, é, em suma, um poeta verdadeiro.



Este texto foi originalmente publicado no Jornal Opção, de Goiânia, em 15/06/2007
Delermando Vieira é escritor e Membro a Academia Goiana de Letras.

Brasigóis Felício - Literatura Goiana: um panorama

Literatura goiana – um panorama histórico


Por Brasigóis Felício *


Uma síntese da literatura goiana (ou da literatura brasileira feita em Goiás, como muitos preferem) para ser justa, tem de começar pelo reconhecimento, sem ranço de ufanismo, da expressividade e qualidade do que aqui se escreve e publica. Tal fato é reconhecido por críticos de nomeada, de grandes centros culturais – não obstante o nariz arrebitado de jactância e vanglória, de alguns intelectuais, encastelados nas torres de marfim até de universidades públicas – os quais insistem em amesquinhar sua importância, e não reconhecer tal qualidade. Tal provincianismo, porém, não conseguiu impedir que se firmassem como escritores de prestígio nacional, e mesmo internacional, escritores como Hugo de Carvalho Ramos, Bernardo Elis, José J. Veiga e Cora Coralina.


Hugo de Carvalho Ramos


Depois de quase um século do descobrimento (ou achamento) das minas auríferas na região onde os bandeirantes paulistas construiriam Vila Boa, quase nada se escreveu por estas paragens do Goyaz profundo, a não ser os depoimentos de viajantes que andaram pela província, deixando relatos importantes, como os deixados por Cunha Mattos e Alencastre. De cunha Mattos até hoje se impõe, por sua verdade e atualidade, uma frase de sabor picante: “Em Goyaz as pessoas batem mais com a língua do que com as armas”. Gilberto Mendonça Teles, poeta, professor e crítico literário, assinala, em sua importante obra A poesia em Goiás, que a história de nossa literatura se divide em seis períodos. O primeiro coincide com o descobrimento de Goiás até 1830, quando publica-se o primeiro jornal da província, A matutina Meiapontense.

Gilberto Mendonça Teles

Em obra intitulada “Literatura goiana – síntese histórica”, que escreveu quando proferiu palestra sobre literatura goiana, no Canadá, o acadêmico Geraldo Coelho Vaz atesta que o primeiro poeta brasileiro a se referir a Goiás usava o pseudônimo de Antonio Cordovil. Seu verdadeiro nome era Antônio Lopes da Cruz, que escreveu o Ditirambo às ninfas goianas – em verdade, usou as musas e ninfas como pretexto para bajular o governador Tristão da Cunha Menezes, que o nomeara como professor. Uma moda que pegou entre nós, entre escribas maiores e menores.

O segundo período vai de 1830 a 1903, da publicação do primeiro jornal goiano à instalação da Academia de Direito de Goiás, e a fundação da Academia de Letras, na cidade de Goiás, sede da capital da Província. “Em quase um século, muitos acontecimentos marcaram a vida cultural do Estado. Ainda no século XIX, foram criados o Liceu de Goiás e a primeira biblioteca pública, o Gabinete Literário Goiano, o Teatro São Joaquim, o seminário Santa Cruz, onde se formaram notáveis personalidades da vida cultural de nosso Estado. Bernardo Guimarães, importante romancista, reside em Catalão, na condição de Juiz de Direito nomeado.

O primeiro livro impresso, já em 1863, foi Viagem ao rio Araguaia, de autoria de Couto Magalhães, então governador. O vulto literário mais importante desta época é o poeta romântico Antônio Félix de Bulhões Jardim (1845-1887), que defendia ideais abolicionistas. Outros nomes importantes do período foram os poetas Higino Rodrigues (1869-1906), autor do famoso soneto A pinta preta, Manoel Lopes de Carvalho Ramos (1865-1911), autor do célebre poema Goyania, e mais Edmundo Xavier de Barros, Alceu Victor Rodrigues, Genuíno Correa, Matias da Gama e Silva e Augusto Eliseu.

Antônio Félix de Bulhões Jardim


O terceiro período da evolução histórica de Goiás, assinala Coelho Vaz – inicia-se com a instalação do curso da Academia de Direito, a fundação da Academia de Letras e a revolução de 1030. A publicação do livro Ontem, de Leo Lynce, marca o surgimento do modernismo em Goiás, com atraso de seis anos, em relação à Semana de Arte Moderna, realizada em São Paulo, em 1922. O mais expressivo e talentoso autor deste período foi, inegavelmente, Hugo de Carvalho Ramos, autor de Tropas e boiadas.

Em estilo regionalista que provocou impacto, logo após sua publicação, este autor goiano mereceu saudação entusiástica, por parte de Monteiro Lobato, e de outros escritores e críticos de sua época. Reconhecido como gênio literário, por parte da crítica, Hugo de Carvalho Ramos não conheceu a glória literária, pois que matou-se, ainda muito jovem, em meio a uma crise de depressão. Os nomes que marcaram este período foram, portanto, Hugo de Carvalho Ramos, com Tropas e boiadas e, na poesia, Leo Lynce, com Ontem, título contraditório, pois que colocava a longínqua paisagem do sertão profundo de Goiás no cenário da modernidade literária brasileira.

O quarto período é a fase da transição literária, encontrando as mais variadas influências das escolas romântica, parnasiana, simbolista e moderna. É o período das grandes mudanças, enfatiza Gilberto Mendonça Teles, em A poesia em Goiás. Neste período vêm à publicação obras de João Accioly Barro preto, Derval de Castro páginas do meu sertão e Pedro Gomes, com Pito aceso. A poesia teve reduzida importância nesta fase. O quinto período, para GMT, inicia-se em 1942, com o Batismo Cultural de Goiânia, e a publicação da revista Oeste, indo até a realização, pela União Brasileira de Escritores de Goiás, da I Semana de Arte em Goiás, realizada em 1956.

Bernardo Elis


Fato de grande importância foi a criação da Bolsa de Publicações Hugo de Carvalho Ramos, que teve Bernardo Elis como seu primeiro ganhador, com a obra Ermos e gerais. Em 1954, realizou-se em Goiânia o I Congresso Nacional de intelectuais, com a presença de personalidades conhecidas, de outros países, como o poeta Pablo Neruda. Lamentavelmente, Gilberto Mendonça Teles não atualizou seu livro A poesia em Goiás, quando da publicação de sua segunda edição, deixando assim de registrar um número expressivo de poetas, surgidos a partir de 1970. Muitos deles ganharam concursos de nível nacional e mesmo internacional, firmaram-se como grandes poetas, mas não estão referidos na segunda edição desta obra, o que diminui sua importância histórica.

José Godoy Garcia

A implantação do modernismo literário brasileiro, iniciada com Leo Lynce, teve continuidade com as obras de Bernardo Elis, José Décio Filho, José Godoy Garcia, Afonso e Domingos Félix de Sousa, além do próprio Gilberto Mendonça Teles, um pouco mais tarde, como poeta e crítico de literatura. Uma de suas obras fundamentais é A poesia em Goiás, além de Saciologia goiana (poesia) e obras de referência, no gênero ensaio, estudando os manifestos da modernidade literária, e a poesia de Carlos Drummond de Andrade. Neste período destacaram-se também o romancista e contista Eli Brasiliense, com “Chão vermelho” e “Pium”. Bariano Ortêncio estreou em 1956, com O que foi pelo sertão. Ficcionista, cronista e folclorista, Bariani Ortêncio é uma das mais destacadas personalidades literárias de Goiás.

Eli Brasiliense


Marcam ainda este período autores como Ursulino Leão, romancista, contista e cronista, sendo o romance Maya um de seus trabalhos mais aplaudidos. Outros autores também destacaram-se, como Pedro Celestino, Geraldo Ramos Jubé, Monsenhor Primo Vieira, José Lopes Rodrigues, Demóstenes Cristino, Basileu Toledo França, Regina Lacerda, Rosarita Fleury, Nelly Alves de Almeida, Jesus Barros Boquady, Getúlio Vaz, Mário Rizério Leite, Leo Godoy Otero e Ada Curado.

Yêda Schmaltz


O sexto período da evolução de nossa literatura está em curso, em meio a grandes transformações em nosso meio sócio-econômico-cultural. A criação de duas universidades, e a Federal e a Católica (PUC), a fundação de Brasília, em 1960, representaram uma mudança no ambiente cultural. Surgiu o GEN (Grupo de Escritores Novos), propondo uma instauração estética intitulada de Práxis, por seu criador, o poeta Mário Chamie. Pontificaram neste movimento literário goiano escritores que viriam a se tornar representativos de nossa literatura, como Miguel Jorge, Heleno Godoy, Yêda Schmaltz, Carlos Fernando Magalhães, Luiz Araújo, Luiz Fernando Valadares e Geraldo Coelho Vaz.

Heleno Godoy


A Editora Oriente, liderada pelos irmãos Taylor e José Oriente, publica centenas de títulos de autores novos e já consagrados. Surgem, neste período, nomes como Gabriel Nascente, Alaor Barbosa, Maria Helena Chein, Emílio Vieira, Eduardo Jordão, Ciro Palmerston, Marieta Telles Machado, Martiniano J. Silva, Brasigóis Felício, Delermando Vieira, Dionísio Pereira Machado, Salomão Sousa, Helvécio Goulart, Luiz de Aquino, Edival Lourenço, Helverton Baiano, Almáquio Bastos, Ubirajara Galli, Tagore Biram, Pio Vargas, Itamar Pires, Edir Meireles,Fausto Valle, Jaci Siqueira, Alice Spíndola,Ana Cárita, Diva Goulart, Kleber Adorno, Lygia Rassi, Ebert Vêncio, Celso Cláudio, Augusta Faro, Leda Selma, Maria Abadia Silva, Pedro Tierra, Edmar Guimarães e Valdivino Braz.

Da esquerda para direita: Delermando Vieira, Valdivino Braz e Salomão Sousa


O Gen deu significativa contribuição à renovação e modernidade dos estilos literários, como assinalou a ensaísta Moema de Castro e Silva Olival, em seu livro Gen – um sopro de renovação em Goiás – editora Kelps 2000): “Foi, sem dúvida, um divisor de águas na vida literária de Goiás, um vento promissor: conhecer, discutir, confrontar para renovar.” Uma renovação colocada em xeque, pelo ensaísta Gilberto Mendonça Teles, que via no movimento de renovação praxista em Goiás um entusiasmo juvenil, sem consistência e maturidade. O tempo veio provar que o alarde feito em torno da dita “instauração práxis” era fogo fátuo (fogo de palha) de vez que os nomes do Gen, que vieram a se confirmar como nomes expressivos, deram, sim, uma contribuição notável, por sua participação no debate literário, mas as obras que escreveram posteriormente têm (felizmente) pouco ou nada a ver com a hermética proposta estética defendida por Mário Chamie. A confirmação como escritores veio de seu talento literário, não dos postulados estéticos defendidos com ruído e furor.

Cora Coralina

A criação da Fundação Cultural Pedro Ludovico, em substituição à Secretaria Estadual de Cultura deu maior impulso à literatura, com o Instituto Goiano do Livro, dirigido pela poetisa Yêda Schmaltz, criando coleções importantes, e instituindo concursos e oficinas literárias. A editora Kelps inicia intensa atividade editorial, publicando centenas de títulos de autores goianos, divulgando-os nas Bienais do livro, realizadas em São Paulo e no Rio de Janeiro. Na crítica literária destacam-se Gilberto Mendonça Teles, José Fernandes, Moema de Castro e Silva Olival, Maria Zaira Turchi, Vera Maria Tietzman e Darcy França Denófrio, dentre outros. Com três nomes consagrados, Bernardo Elis, José J. Veiga e Cora Coralina (sendo os dois últimos em nível internacional) Goiás tem notáveis personalidades na literatura, a exemplo de Paulo Nunes Batista, Valdemes Menezes, Braz José Coelho, Antônio José de Moura, William Agel de Mello, Gil Perini, Hilda Gomes Dutra Magalhães, Helena Sebba, Ercília Eckel, Adelice da Silveira Barros, Luiz Estevão, Francisco de Brito, Isócrates de Oliveira, Célia Coutinho Seixo de Brito, Anatole Ramos, César Baiochi, Hélio Rocha, Maria Terezinha Martins, Carmo Bernardes e Francisco Perna Filho.

José J. Veiga


* Brasigóis Felício é membro da Academia Goiana de Letras (cadeira 25) e vice-presidente da Ube-go (União Brasileira de Escritores, Seção de Goiás)


Imagens retiradas da Internet: todos os Direitos reservados

Antônio Lisboa - Ensaio Crítico




O livro infernal do poeta Valdivino


Por Antônio Lisboa


Literatura feita para chocar. Assim poderia ser sintetizado o mais novo livro do poeta e jornalista Valdivino Braz.

Logo no prefácio o autor adverte: “Presume-se que O Gado de Deus, um livro infernal, escabroso, com personagens infames – a par com os laivos poéticos, filosóficos e divertidos -, possui autonomia para sustentar-se à parte. (...) O leitor esteja preparado. Esta obra é um tratamento de choque, de arrepiar os cabelos e deixar os incautos com cara de ouriço. Exala enxofre, fumega chifre queimado. O riso se transforma em choro e ranger de dentes. Não há, em todo o mundo, um livro como este”.


"...Só o homem livre é pastor de si mesmo, toda e única liberdade é foro íntimo...”


Com o título inicial de As dores da terra antiga, a obra recebeu Menção Honrosa no Concurso Nacional de Romances do Paraná, em 1993.

Saído das oficinas da Editora Kelps e compondo a “Coleção Goiânia em Prosa e Verso”, da Secretaria Municipal da Cultura de Goiânia, O Gado de Deus é, em essência, uma crítica mordaz às infâmias e mazelas produzidas pelo governo militar que tomou o poder no Brasil, em 1964.

Como o próprio autor define, trata-se de um relato corrosivo que expõe por inteiro o lado sórdido da vida.

Na mítica e ao mesmo tempo arena realista em que a trama se desenrola, o Brasil é visto simplesmente como “Pátria”. Nesse palco, desfilam os mais infames personagens e suas vítimas, como “o general, mandando prender e arrebentar, que é hora de tanger o gado ao matadouro”, numa referência ao general João Figueiredo, o último presidente do período militar.

Com uma linguagem poético-filosófica de tom mordaz, o texto de Valdivino Braz refere-se aos agentes da ditadura como “os homens com cabeça de cabaça”.

Marcadamente imagética, a narrativa derrama-se por uma dialética que se embebe e galopa na sonoridade das palavras. Como no trecho: “Na meia-lua ou cutelo lunar da jornada desta vida, deparei-me com pedras tapiocanga no meio do caminho, as pedras da vida e do mundo, incrustadas no fundo de minhas retinas fatigadas, meio que assim numa fadiga fatiada, dado de sobra, a mim, o que se dá em dobro, a pedra dos rins, das torções, dos tropeços e pescoções, e foi então que me vi perdido em selva tenebrosa, sem Dante e sem Drummond...” E o texto se estende por um parágrafo de 24 linhas a fio.


“Os bancos, como Deus e o Diabo, estão por toda parte, em conciliábulos de ordem financeira e armação de arapucas para seus clientes."


Em sua narrativa herética e diabólica, Braz critica a crítica e não perdoa nem a si mesmo, quando se compara ao éter “a conduzir a narrativa deste canhestro romance antirromance”...

A crueza da existência se completa no terror da palavra. Há momentos da escrita em que o autor compõe cenas sinistras: “Abrupto e traiçoeiro, o fio de arame farpado arrebenta-se na cerca; num bote de cobra, chicoteia a cara de Brasilino, e uma farpa fura-lhe o olho esquerdo. Daí que ele, imprecando contra Deus e o mundo, larga mão do ofício de fazedor de cercas”.

Um dos momentos em que a deliberada heresia torna-se mais marcante está no capítulo “As boas-vindas da casa”: “O mundo é dos espertos e dos poderosos, e nas mãos absconsas de Deus depõem-se as almas dos crédulos, o cego rebanho de tolos, tangido com a inadimplência das promessas provindas de bocas imundas, com o bafo do esôfago, e não com o hálito da pureza, nem com o sopro divino que anima o mísero barro”.

No cotidiano de “Pátria”, entre os personagens e situações que infernizam a vida de seus pobres moradores estão, segundo Braz, as instituições bancárias. “Os bancos, como Deus e o Diabo, estão por toda parte, em conciliábulos de ordem financeira e armação de arapucas para seus clientes. Graças a Deus, diz o banqueiro C.R.Cifrão, um cretino. A César o que é de César, reprisa o fanhoso Nazareno, com diploma de contabilista e puxa-saco de gente rica; agarrado feito carrapato em bago de boi, a ver o que lucra com isso. Gentinha desprezível, sem caráter!”

O texto valdiviniano despeja pontiagudas ironias em certos trechos. Como quando situa geograficamente a “Funerária Bom Repouso”, concorrente da “Funerária Vai Com Deus” e o “Cemitério Municipal Seja Bem-Vindo ao Lar”. A escrita ri da inglória, expõe o lado podre de pobres seres e reserva momento especial para os políticos.

Ao trilhar por certa convicção atéia e niilista do autor, a escrita conversa (provoca) o leitor com o seguinte trecho: “Comunga teologia? Eu não estudo Teo, mas vasculho um pouco as coisas de Deo. Está sorrindo. Gostou? Deus é Deus, seja lá o que for, e não seja por isso ficar adulando padre ou pastor. Só o homem livre é pastor de si mesmo, toda e única liberdade é foro íntimo...”

Para o autor, a humanidade é uma doença. Quando projetava este seu O Gado de Deus, Valdivino Braz já prometia: “Antes de morrer, pelas veredas pedregosas do meu cérebro, pelas urzes do meu amargo coração, pelos espinhos de meus cardos pensamentos e pela bile que a vida me derrama aos jatos pela boca, hei de escrever um livro infernal, a grande paródia, um tratado da criatura humana, no que ela tem de pior”. Vade-retro!


Antônio Lisboa é jornalista (UFG) pós-graduado em Comunicação Pública (ESPM).

Este texto foi originalmente publicado no Jornal Diário da Manhã, de Goiânia.

Imagem retirada da Internet: Inferno

Francisco Perna Filho - Poema


Cântico do Amor Maior



Valho-me do acaso,
para ver no teu sexo,
o nexo da vida

São compridos os meus olhos
para lá das esquinas,
dos semáforos,
dos destinos.

Percorro teus trechos,
tuas curvas,
para sorver os teus frutos,
ainda tenros, quando chego;
maduros, quando findo.




In. Visgo Ilusório. Francisco Perna Filho. Goiânia: Kelps/PucGoiás/Prefeitura de Goiânia, 2009,p. 40.
Foto by Valdir Cruz

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