Manoel de Barros - Poema



Desejar ser





1

Com pedaços de mim eu monto um ser atônito.



2

Prefiro as linhas tortas, como Deus. Em menino eu
sonhava de ter uma perna mais curta (Só pra poder
andar torto). Eu via o velho farmacêutico de tarde,a
subir a ladeira do beco, torto e deserto...toc ploc toc
ploc. Ele era um destaque.
Se eu tivesse uma perna mais curta,todo mundo ha-
veria de olhar para mim: lá vai o menino torto subindo
a ladeira do beco toc ploc toc ploc.
Eu seria um destaque. A própria sagração do Eu.


In.Livro sobre Nada. Manoel de Barros. Rio de Janeiro: Record, 1996, p.37,39.
Imagem retirada da Internet: linhas tortas

José Antônio Cavalcanti - Ensaio Crítico



O reino deste mundo, de Alejo Carpentier é relançado no Brasil



Por José Antônio Cavalcanti, Jornal do Brasil





RIO - Alejo Carpentier, juntamente com Lezama Lima e Severo Sarduy, integra a santíssima trindade da prosa ficcional cubana. Filho de pai francês e mãe russa, de quem herdou o amor à música – forte presença em seus textos – incorpora à obra a fusão de universos distintos, conciliando o pleno domínio dos recursos técnicos com uma poderosa imaginação. Apesar da experiência europeia e do convívio com os surrealistas, sua literatura é um marco da literatura latino-americana.


O relançamento do romance O reino deste mundo – pela Martins Fontes, em nova tradução, a cargo de Marcelo Tápia – é uma oportunidade de o leitor mergulhar em uma história hipnotizante. O livro, escrito em 1949, recria os acontecimentos que levaram à independência do Haiti, em 1803. O movimento liderado por Toussaint LOuverture, Henri Christophe e Jacques Dessalines criou o primeiro governo negro e a primeira monarquia das Américas ao dividir o país em duas regiões com regimes políticos diferentes: ao sul, uma república; uma monarquia, ao norte.


A saga do povo haitiano, aliás, já despertara o interesse de Vitor Hugo, cujo romance Bug-Jargal, de 1828, trata das relações entre escravos e franceses, e do poeta Lamartine, autor de Toussaint LOuverture, poema dramático sobre o herói da independência haitiana, publicado em 1860.

A primeira parte da narrativa apresenta Ti Noel, o protagonista, escravo de Monsieur Lenormand de Mezy, e fio condutor dos acontecimentos dos quais participa desde a juventude. Carpentier se vale dos dois para apresentar o universo do colono europeu e o mundo do negro haitiano, porém o narrador claramente assume o ponto de vista do oprimido. O capítulo inicial já apresenta uma comparação desfavorável à cultura europeia: “Na África, o rei era guerreiro, caçador, juiz e sacerdote; sua semente preciosa engrossava, em centenas de ventres, uma vigorosa estirpe de heróis. Na França, na Espanha, em contrapartida, o rei enviava seus generais para o combate, era incompetente para dirimir litígios, deixava-se repreender por qualquer frade confessor (...), não fazia mais que gerar um príncipe debiloide, incapaz de acabar com um veado sem ajuda de seus monteiros, a quem designavam, com inconsciente ironia, pelo nome de um peixe tão inofensivo e frívolo como era o delfim”. A crença de Ti Noel em uma África mítica resulta da influência de uma figura extraordinária, Mackandal, cuja presença domina a ação na parte inicial.

Carpentier desmonta, com o recurso de metáforas e ironia, o absolutismo de uma razão autocrática, objetivista, com pretensão de pleno domínio sobre o real, transformado em prisioneiro de seus dogmas. Mackandal é peça-chave nessa desmontagem. Antecessor dos líderes da independência, resistia à escravidão com recursos extraordinários. Grande orador, tentava unir os negros para promover a libertação. Afirmava poder prever o futuro e convence os escravos de sua propriedade imortal. Embriagado, termina preso e queimado em execução pública. Carpentier tira proveito magistral dessa personagem histórica, ao fazer com que nela se cruzem, no plano ficcional, as linhas da resistência e da mandinga. O negro xamã extrai da natureza, sob a forma de ervas destinadas ao envenenamento dos colonos europeus, conhecimento para municiar a revolta. O maneta Mackandal, ogã do rito Radá, promove uma insurreição invisível. Anula a própria morte, reescrevendo em um voo fantástico seus laços secretos com a imortalidade. Não há fim para um corpo com o poder de transformar-se em animal de cascos, em ave, peixe ou inseto. Mackandal, num processo de proliferação barroca, escapa à dominação europeia ao movimentar-se fora da lógica que a preside.


Monsieur Lenormand de Mezy, na segunda parte, após a perda da mulher e tornar-se tarado e bêbado, contrai núpcias com uma atriz decadente, Mademoiselle Floridor. Irrealizada na arte, vale-se da posição hegemônica para simular, de modo cômico-grotesco, a representação de papéis que jamais lhes seriam atribuídos para uma plateia atônita, convocada à força a um espetáculo cuja legibilidade lhe escapa. A palavra “crime”, única ponte entre o francês e o creóle, desprega-se do texto para estigmatizar a insana declamadora, razão pela qual os escravos passam a olhar a atriz como mais uma criminosa fugitiva da metrópole como tantas outras prostitutas. Civilização e opressão formam uma estranha rima nos trópicos.


A ação narrativa incide, na segunda parte, sobre Bouckman, o Jamaicano. Líder sem o encanto de Mackandal, suas ações são alimentadas pelo eco das ideias que promoveram a Revolução Francesa. Monsieur Lenormand de Mezy, em visita a cidade do Cabo, descobre que “a assembleia constituinte, integrada por uma chusma liberaloide e enciclopedista, concordara que se concedessem direitos políticos aos negros, filhos de manumissos”. Tudo parecia anunciar a revolta dos escravos, o que não demora a ocorrer. A rebelião, entretanto, não obtém êxito. A cabeça de Bouckman, fincada no mesmo lugar da morte de Mackandal, é testemunha inerme da violenta perseguição e extermínio dos sobreviventes.


Arrastado pela fuga de Mezy para Santiago de Cuba, Ti Noel descobre, horrorizado, o embarque de cães enviados a ilha de São Domingos com a finalidade de devorar os negros rebeldes. De Mezy compartilha uma vida social marcada pela degradação: “Um vento de licenciosidade, de fantasia, de desordem, soprava na cidade”. Nobres e colonos fugitivos montam, com um tesouro de ruínas, uma versão decadente do poder colonial reduzido agora ao reino do salve-se quem puder. Ti Noel também encontra nas igrejas espanholas um mundo próximo ao da magia do vodu: “Os ouros do barroco, as cabeleiras humanas dos Cristos, o mistério dos confessionários repletos de ornamentos, o cão dos dominicanos, os dragões esmagados por santos pés, o porco de Santo Antão, a cor parda de São Benedito, as Virgens negras (...) tinham uma força envolvente, um poder de sedução pela pompa, pelos símbolos, atributos e signos, parecidos com o que se desprendia dos altares do houmforts consagrados a Damballah, o Deus Serpente”.


O narrador introduz no relato Paulina Bonaparte, irmã de Napoleão e esposa de Leclerc, enviado no comando de uma expedição de 25.000 soldados com o intuito de acabar com a rebelião dos jacobinos negros. Inicialmente simpática à realidade americana e numa proximidade cúmplice com o escravo Solimán, entra em pânico após a morte do marido, vitimado por um estranho vômito negro. O retorno apressado de Paulina para a Europa simboliza a derrota definitiva dos franceses: “Agora os Grandes Loas favoreciam as armas negras. Ganhavam as batalhas aqueles que tivessem deuses guerreiros para invocar. Ogún Badagrí guiava as cargas de arma branca contra as últimas trincheiras da Deusa Razão”.


Na terceira parte do livro, Ti Noel regressa ao Haiti na condição de homem livre, pois a revolução de Jean-Jacques Dessalines triunfara com o auxílio de “Loco, Petro, Ogum Ferraille, Brise-Pimba, Caplaou-Pimba, Marinette Bois-Cherche e todas as divindades da pólvora e do fogo”.


Ti Noel, subitamente dono da fazenda do antigo senhor, espanta-se com os pomposos uniformes napoleônicos dos soldados negros. O assombro é maior ao descobrir o luxo de Sans-Souci, a residência predileta de Henri Christophe. O soberano, em um esforço radical para livrar-se do peso da mística africanista, cria uma côrte com aparência francesa e abraça o catolicismo com fervor. A incursão a Sans-Souci foi desastrosa para Ti Noel, novamente escravizado, trabalha na construção da Cidadela de La Ferrière, símbolo da megalomania do monarca. Ti Noel é salvo das garras da tirania graças à rebelião contra o despotismo do rei. Sem saída, abandonado por todos, o ex-cozinheiro coroado suicida-se.


Um dos saqueadores do Palácio de Sans-Souci, o velho Ti Noel, na parte final do livro, volta à antiga moradia de Lenormand de Mezy, preenchendo os escombros com os produtos do saque. Sua tranquilidade, porém, é interrompida pela chegada dos agrimensores, expressão da nova realidade política haitiana: os mulatos republicanos haviam formado uma nova casta opressora que espalhava o terror no campo e obrigava os camponeses a buscarem refúgio nas montanhas. Exausto de tanta miséria e opressão, Ti Noel adquire as propriedades mágicas de Mackandal, transforma-se em ave, garanhão, vespa, formiga, ganso e abutre, convertendo-se em habitante invencível do reino da magia.


Na famosa introdução ao romance, considerada por Emir Rodriguez Monegal o “prólogo do novo romance latino-americano”, a preocupação com a documentação e a verdade histórica dos acontecimentos não apaga a consciência de que o fictício formula uma realidade além do factual, alcançando, por vezes, graças ao artifício, à deformação e ao insólito, uma proximidade visceral da experiência humana. O “real maravilhoso”, a controversa proposta apresentada por Carpentier no prólogo, ultrapassa os limites do romance; a iluminação e o alargamento promovidos pela proposição estética transformam o Haiti em metonímia da América. Pouco importa se o maravilhoso é um conceito europeu, ou se Carpentier projeta na expressão seu passado surrealista. O reino deste mundo, assim como Os passos perdidos e O recurso do método, é uma obra-prima cuja força não se esgota apenas na prodigiosa fusão temática de elementos oriundos de culturas diversas, mas brota de uma barroca arquitetura textual erguida com maestria por um olhar impensável fora do universo americano.

20:10 - 19/03/2010

Sinopse do livro
Recriação incomparável dos acontecimentos que precederam a independência haitiana até um Haiti em pleno período republicano a transição de colônia francesa governada por brancos para uma nação negra regida pelo primeiro monarca coroado no Novo Mundo. Estimulado pela prodigiosa história original e valendo-se de um magistral domínio dos recursos narrativos, Carpentier recria nesta obra um mundo exuberante, descomedido e legendário, inaugurando o que foi chamado de real maravilhoso (ou realismo mágico).


Imagem retirada da Internet: Alejo Carpentier

José Gomes Sobrinho - Poema









Eu sou daqui



Eu sou daqui

Como sou de todos os lugares

onde vivi


Eu sou de Palmas

cidade que eu gostaria

que tivesse mais alma


Que mostrasse nas janelas

um pouquinho da saudade

que precisa ser coberta

pela mais pura amizade


Eu sou daqui

como ainda sou de todos os lugares

onde fui (e sou!) amado


Quando eu me for

para onde for

quero deixar muito vivo

o meu recado de amor


Eu sou daqui sou dali

serei de todos os lugares

onde me abram os braços

e me abracem com calor


Mas sei que sou

- principalmente -

desta Palmas que precisa

- com urgência -

derrubar os muros frontais

de suas casas

e avizinhar-se

dando-se muito mais

amado-se muito mais.



In. Fio de Prumo

Imagem retirada da Internet: Palmas

Francisco Perna Filho - Crônica


A dor da gente é dor de menino acanhado
Menino-bezerro pisado no curral do mundo a penar
Que salta aos olhos igual a um gemido calado
A sombra do mal-assombrado é a dor de nem poder chorar
Moinho de homens que nem girimuns amassados
Mansos meninos domados, massa de medos iguais
Amassando a massa a mão que amassa a comida
Esculpe, modela e castiga a massa dos homens normais
(Raimundo Sodré)



O Silêncio dos Inocentes*




Por Francisco Perna Filho



Uma das coisas mais abjetas praticadas pelo ser humano é a tortura, seja ela física ou psicológica. Ato desumano, covarde, perverso e indigno. Atenta contra o que há de mais caro ao ser humano, sua liberdade.

Pelo menos é praxe na história universal que as torturas atendam a fins vários, mas, primordialmente, o que se sobressai é a de retirar do torturado confissões sobre algo que ele sabe ou que supostamente poderia saber sobre pequenos delitos ou sobre crimes mais graves.

Os métodos são vários, utilizados desde muito pela humanidade, como o fez a igreja Católica naquilo a que chamou de santa inquisição - na Idade Média - quando utilizou toda forma de aparelhos de tortura, como alicates, tesouras, garras metálicas para destroçar seios e mutilar órgãos genitais, barras de ferro aquecidas e chicotes. Os métodos eram vários, o que importava era a eficácia para obter informações sobre bruxaria, satanismo e outras loucuras inimagináveis. Tudo em nome de um deus que não era o nosso.

Há notícias de que o padre dominicano Bernardo Guy (Bernardus Guidonis, 1261-1331) escreveu o livro Liber Sententiarum Inquisitionis (Livro das Sentenças da Inquisição) no qual descreve vários métodos utilizados para obter confissões dos acusados, tanto físicos como psicológicos, dentre os quais o de obrigar a vítima a ingerir urina e excrementos.

Se na Idade Média as práticas beiravam ao rudimentar, na modernidade ganharam sofisticação, como as câmaras de gás ou os campos de concentração, criados pela bestial figura de Adolf Hitler. Nas ditaduras espalhadas pelo mundo, milhares de pessoas sucumbiram nas mãos carniceiras de hediondas figuras. No nosso País não foi diferente, milhares de estudantes, pais e mães de família foram maltratados, torturados e mortos em nome de um regime de exceção.

Dos métodos utilizados pelos torturadores brasileiros, alguns chocaram e ainda chocam a todos, como seguem: Choque elétrico, Pau-de-arara, Cadeira de dragão, Afogamento, Telefone, Palmatória, Espancamento, Esbofeteamento, Empalamento, Queimadura com cigarros, Geladeira, Mordida de cachorro, Coroa de Cristo, Violação sexual, Arrancamento de dentes, Injeções de éter subcutâneas, Arrancamento de unhas, Soro da “verdade” (Pentotal), Fuzilamento simulado, Ameaça de morte (à própria pessoa, filhos, companheiros etc), Assistir à tortura de companheiros, Aplicar torturas em companheiros, Desorganização temporo-espacial.

Como se vê, a bestialidade humana se supera a cada tempo, às vezes nos pega de surpresa, nos deixando estarrecidos, como foi o caso da menina L. de 12 anos, torturada aqui em Goiânia pela “empresária” Sílvia Calabresi, 42, que, sem sombras de dúvidas, conhecia muito bem os métodos medievais de tortura descritos acima. O que choca, além do ato covarde da tortura, é a frágil figura torturada, sozinha, indefesa, obrigada a toda forma de humilhação e dor.

O que choca é saber dos gritos silenciosos desta criança, das dores da alma que persistirão por toda vida. O que choca é a indiferença de tantas pessoas à dor desse ser tão fragilizado. Oh, Deus! Pelo menos o que se tem lido sobre tortura é que os torturadores buscam, a qualquer preço, a confissão de suas vítimas, confissão de algum delito, de alguma trama. E dessa pobre criancinha, que confissão ela buscava obter?

Fora brutalmente maltratada, alijada do que se tem de mais caro, o direito à infância e à liberdade. Não estudava, passava dias sem comer, trabalhava até 1h40 da madrugada, retomando o trabalho doméstico às 5h. Viveu todo tipo de humilhação, inclusive métodos medievais, como ingerir fezes e urina de cachorro. Era constantemente amarrada, queimada com ferro elétrico, tinha as unhas mutiladas, a língua mutilada, era amordaçada, sendo obrigada a ficar por horas com um pano, dentro da boca, embebido por pimenta, a mesma que lhe era aplicada nos olhos.

Como deve ter sofrido esta menininha, meu Deus. Como deve ter clamado por socorro, silenciosamente. Uma coisa me chamou atenção, o paradoxo do ato: ao mesmo tempo em que torturava, que buscava não sei que tipo de confissão, tapava a boca da menina, não permitindo que ela falasse. Arrancava-lhe pedaços da língua. Por pouco não tivemos mais um serial killer, pela forma como vinha agindo, consciente dos seus atos, já havia torturado outras crianças, agora era só intensificar as sessões de tortura, até não se contentar mais com a dor física, buscando a morte.

Transtorno? Transtornados ficamos nós, ao assistirmos boquiabertos ao sadismo dessa besta, dessa psicopata, que, ajudada pela empregada doméstica, Vanice Maria Novaes, 23, cometera tamanha brutalidade. O que impressiona é que a empregada doméstica em vez de defender a criança das atrocidades da patroa, age contrariamente, e também passa a torturar a sua igual, o que nos remete a Machado de Assis, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, no Capítulo LXVIII / O Vergalho , quando um ex-escravo, Prudêncio, açoita outro em praça pública e, questionado pelo antigo patrão sobre o porquê daquele ato, recebe com resposta: “É um vadio e um bêbado”, a essa fala, segue a seguinte reflexão de Brás Cubas:

(...)Logo que meti mais dentro a faca do raciocínio achei-lhe um miolo gaiato, fino, e até profundo. Era um modo que o Prudêncio tinha de se desfazer das pancadas recebidas, transmitindo-as a outro. Eu, em criança, montava-o, punha-lhe um freio na boca e desancava-o sem compaixão; ele gemia e sofria. Agora, porém, que era livre, dispunha de si mesmo, dos braços, das pernas, podia trabalhar, folgar, dormir, desagrilhoado da antiga condição, agora é que ele se desbancava: comprou um escravo, e ia-lhe pagando, com alto juro, as quantias que de mim recebera. Vejam as subtilezas do maroto!(...)

Recorremos à ficção na tentativa de uma compreensão do real, mas não há compreensão quando os casos se multiplicam, como os maus tratos do aposentado Ovídio Martinelli, de 93 anos, que sofre do mal de Alzheimer, e foi espancado pelas suas “cuidadoras” Rosângela Pereira Coutinho, de 44 anos, e Patrícia Santos Alves, de 25. Cenas chocantes que nos deixam indignados, estarrecidos, sofridos, principalmente quando são cometidas contra seres tão frágeis e indefesos, e por saber-se que os atos não são praticados por estranhos, mas por pessoas tão próximas, que ainda ousamos chamar de próximos e sempre oferecemos a outra face.


* título deste texto foi tomado de empréstimo ao filme (Silence of The Lambs, The, 1991), dirigido por Jonathan Demme.

Este texto foi publicado originalmente na Revista Bula, por ocasião da bárbara notícia de tortura praticada pela "empresária" goiana Sílvia Calabresi, 42, contra a menor L., de 12 anos.
Imagem retirada da Internet: Tortura

Francisco Perna Filho - Poema







Para Rosana Carneiro Tavares







VISITAÇÃO



Quando os meus olhos
já cansados de tantas buscas,
amarrados por um certo tempo a uma linha qualquer
perdida no caos do porto,
eu, aflito e insone,
perpetuando as mágoas
de um marinheiro afoito ante o mar tão caudaloso,
revivo nos teus olhos a paz tão procurada
e deposito no teu corpo a agonia de tantas noites perdidas,
na incessante procura de quem habita os bares de fuga e
canto.

E eu, um homem só,
sem coragem de voz
e congelado na inércia deste apartamento,
aliviado pelo barulho insípido da chuva que chora
compassadamente,
na compreensão dos gritos e soluços,
que maquinalmente eu não consigo emitir,
uno-me aos teus passos
e no movimento do teu corpo redescubro a vida
há tanto desaconselhada ao meu irresoluto ser.

E agora,
com a paz que os teus olhos me trouxeram,
irmanada pela vida redescoberta no meu ser,
restabeleço-me com a força dos teus passos,
aos passeios de vento e vela,
e durmo o sono adolescente,
para reinventar uma nova manhã
de pesca,
barco
e mar.


In.Visgo Ilusório. Goiânia:Kelps/PucGoiás, 2009, p.35-36.
Imagem retirada da Internet: Cais do porto

Heloísa Buarque de Holanda - Entrevista


Esta entrevista com a professora e crítica literária Heloísa Buarque de Hollanda, concedida à publicitária Tainá Corrêa e aos escritores Carlos Willian Leite e Francisco Perna Filho, foi originalmente publicada no Jornal Opção e na Revista Bula.




ENTREVISTA COM HELOÍSA BUARQUE DE HOLANDA




Heloísa Helena Oliveira Buarque de Hollanda é ensaísta, escritora, editora, crítica literária e pesquisadora brasileira. É também Professora Titular de Teoria Crítica da Cultura da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, coordenadora do Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC/UFRJ) e da Biblioteca Virtual de Estudos Culturais (Prossiga/CNPq) e diretora da Aeroplano Editora Consultoria Ltda. Foi também Diretora da Editora da UFRJ e do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro.


Francisco Perna Filho – Passados vinte e oito anos da primeira edição da antologia “26 Poetas hoje” que, naquela época, foi tida como ousada ao propor, no seu prefácio, uma subversão da expressão intelectualizada; a recuperação do coloquial numa determinada dicção poética, bem como, um circuito de produção e distribuição independente. Para senhora, os resultados foram satisfatórios. Fale-nos um pouco sobre isso.

Heloísa Buarque de Hollanda - Para mim foram satisfatórios e ao mesmo tempo inesperados. Satisfatórios porque me interessava estimular o debate entre os pesquisadores e criadores de literatura sobre a quebra de paradigmas que se processava naquele momento em todas as áreas do conhecimento e da produção artística. E isso foi muito bom. Na repercussão crítica da antologia, fosse ela negativa ou positiva, discutiram-se como nunca as questões de valor, qualidade, tendências e relações da literatura com o mercado editorial e com a sociedade em geral. Inesperados porque aqueles poetas rebeldes e marginais de ontem entraram para o cânone literário.

Carlos Willian Leite – A poesia marginal foi mais um sintoma de uma época do que uma elaboração da linguagem. Passados 30 anos, por que continua existindo esse fascínio exagerado com os poetas malditos?


Heloísa Buarque de Hollanda - Porque a maldição é fascinantes mesmo. Ela contém uma taxa alta de resistência, de atuação fora da norma, de liberdade, que se oferece de forma irresistível para os criadores e para nós, pobres trabalhadores intelectuais com baixa expectativa de transformação a curto e médio prazos.

Francisco Perna Filho – Recentemente, o autor Bernardo Carvalho, no seu Romance Nove Noites, ao misturar ficção com fatos reais, demonstrou-nos quão tênue é a linha entre ficção e realidade, o que, para muitos, apesar do caráter verossímil, soaria como falso e provocaria um enfraquecimento do texto. Como a senhora vê isso?


Heloísa Buarque de Hollanda - Vejo a mistura de ficção e realidade, existente na obra de Bernardo de Carvalho, como a expressão de nosso cotidiano mais corriqueiro, que se encontra inserido, de forma irreversível, na cultura do espetáculo e do simulacro o que, do meu ponto de vista, fortalece ainda mais o texto de Nove Noites.

Carlos Willian Leite – A queda vertiginosa do nível intelectual dos escritores fez com que surgissem fenômenos como Paulo Coelho; qual sua opinião sobre ele e sobre o amesquinhamento da linguagem observado na última década?


Heloísa Buarque de Hollanda - Não há dúvida de que entramos numa sociedade de mercado. E nesse quadro a existência e o sucesso de autores como Paulo Coelho e inevitável. Querendo ser otimista (um velho traço meu), olhada da perspectiva do nosso mercado editorial, infelizmente ainda tão frágil, esse tipo de obra pode até ser avaliada como positiva.

Francisco Perna Filho – Ainda no aspecto da representação, olhando pela ótica aristotélica, é possível se falar em ética na poesia?

Heloísa Buarque de Hollanda - Acho que não só se pode, como nesse momento Bush, deve-se.

Carlos Willian Leite – O Rodrigo Petrônio disse que a maior parte da obra do Paulo Leminski oscila entre o fraco, o muito fraco e o péssimo. E que o romance Catatau é uma arapuca para otários. Concorda com ele?


Heloísa Buarque de Hollanda - Concordo não. Com o tempo foi ficando claro para mim que não há só uma régua para se medir o valor e a qualidade da produção artística. Leminski até hoje mobiliza um público de leitores jovens e não tão jovens, certamente porque expressou de forma bastante eficaz o ethos de seu momento geracional e político.

Tainá Corrêa – Me perdoe, até porque sei que já te perguntaram isso – mas o Bruno Tolentino é realmente necessário à poesia brasileira?


Heloísa Buarque de Hollanda - Eu não li o Bruno Tolentino então não posso responder a essa pergunta.

Carlos Willian Leite – Ainda existe vanguarda?


Heloísa Buarque de Hollanda -No sentido das vanguardas históricas dos anos 20 e 50, acho que não. Mas no sentido da expressão de um desejo radical de transformação da arte e da sociedade acho que sempre vai existir. Essa não morre nunca.

Tainá Corrêa – Quem foi o maior poeta marginal?


Heloísa Buarque de Hollanda - Carlos Drummond de Andrade, sem sombra de dúvida.

Francisco Perna Filho – Sendo a poesia um produto de difícil consumo, tanto do ponto de vista intelectual, quanto da acessibilidade (preços elevados dos livros). As antologias seriam uma boa saída para formação de novos leitores, apesar de elas provocarem um empobrecimento ao não permitirem um conhecimento mais aprofundado sobre o poeta ali representado?


Heloísa Buarque de Hollanda - É difícil responder a essa questão porque existem muitos tipos de antologias com projetos editoriais diferentes. Então falar de antologias de foram geral é muito complicado. Existem as antologias de grupos ou movimentos literários que marcam território (e algumas até tornam-se obras clássicas), existem aquelas de intenção político-literário que é a de intervir no debate intelectual que é a que eu faço, existem as facilitadoras, que reúnem “as mais belas poesias de todos os tempos” que são interessantes como divulgação e formação de leitores (que, quem sabe, passarão a ler os poetas por si), e tantas outras. O que acho interessante no gênero antologia é quando ela assume seu caráter autoral, não representativo, de montagem arbitrária, de trabalho de crítica literária (como a organizada por Manuel Bandeira, belíssima).

Carlos Willian Leite – O que sobrou do concretismo?


Heloísa Buarque de Hollanda - Pelo menos 40% do que é feito hoje.

Tainá Corrêa – Qual a distancia entre intertextualidade e o plágio?


Heloísa Buarque de Hollanda - a Tainá sempre faz perguntas provocativas. E eu gosto delas. Acho que nesse momento de crise da legislação dos direitos autorais, do debate sobre o creative commons, uma legislação que flexibiliza a proteção autoral na direção do suporte para criadores coletivos, ou como é mais conhecida para a “pirataria criativa”, que se propaga cada vez mais especialmente na música e nas vanguardas das artes plásticas, o assunto se desloca para a pergunta: até onde a própria noção de autor vai se sustentar nesse misterioso século XXI.

Francisco Perna Filho – A senhora, pelo representativo papel que exerce e pela respeitabilidade granjeada ao longo desses anos como Professora e Crítica Literária, ao propor um espaço para poesia marginal nas antologias que organizou, possibilitou também que essa poesia fosse inserta no espaço da crítica, tornando-a aceita. A senhora acha que é esse um dos caminhos para nova crítica?


Heloísa Buarque de Hollanda - A crítica tem seu poder no campo intelectual. O uso desse poder não pode ser (e raramente o é) inocente.

Carlos Willian Leite – Na introdução da antologia Esses Poetas, você diz que há uma tendência a minimizar atritos por parte dos poetas, que essa geração é mais da negociação e da articulação, por quê?


Heloísa Buarque de Hollanda - Porque essa é a forma de se fazer arte e política nesse momento no qual o “inimigo” está um pouco em toda parte, onde as forças artísticas, políticas e econômicas estão mais dispersas e flexibilizadas, onde, portanto, a estratégia do confronto tem pouca eficácia.

Tainá Corrêa – Como está sua editora – a Aeroplano?


Heloísa Buarque de Hollanda - O nome da minha editora foi escolhido como homenagem ao poema “Aeroplano” de Luiz Aranha, publicado num número da Klaxon, porque expressava o fascínio com os sinais de futuro. E é por aí que formato minha linha editorial. Um compromisso com as tendências, com os novos debates, com o registro dos pontos de mudança na série cultural. Então eu adoro esse trabalho. Mas infelizmente essa linha editorial não dá lucro e eu não posso viver da editora…

Carlos Willian Leite – Alguém disse que o Francisco Alvim foi uma farsa criada pela Folha de São Paulo e que ele seria o Jeca Tatu da poesia brasileira. Qual a sua opinião sobre o poeta diplomata?


Heloísa Buarque de Hollanda - Acho o Chico um grande poeta moderno, dono de uma linguagem poética de fina ironia que conseguiu, em sua geração, mais do que qualquer outro, captar as nuances de seu tempo.

Carlos Willian Leite – Quais poetas compõem a sua estante?


Heloísa Buarque de Hollanda - Drummond, Manuel Bandeira, Cabral, Murilo Mendes, Joaquim Cardozo, e, a partir dos anos 70, praticamente todos os que foram lançados.

Tainá Corrêa – O jornalista americano Michael Kepp disse, em artigo recente, publicado pela revista Super Interessante, que existe um endeusamento epidêmico de Chico Buarque. Qual é sua opinião sobre o livro Estorvo e o que separa o compositor do escritor?


Heloísa Buarque de Hollanda - É uma vergonha, mas não li o Estorvo.

Carlos Willian Leite – Como é carregar o peso do sobrenome Buarque de Holanda?


Heloísa Buarque de Hollanda - Nenhum. Me sinto muito feliz em participar desse clã que tantas colaborações importantes deu à cultura brasileira.

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