César Moro - Poema








(1903 - 1956)







Vens na noite com a fumaça fabulosa de tua cabeleira


Apareces
A vida é certa
O cheiro da chuva é certo
A chuva te faz nascer
E bater à minha porta
Oh árvore
E a cidade o mar que navegaste
E a noite se abrem a teu passo
E o coração volta de longe a mostrar-se
Até chegar à tua frente
E ver-te como a magia resplandecente
Montanha de ouro ou de neve
Com a fumaça fabulosa de tua cabeleira
Com as bestas noturnas nos olhos
E teu corpo de rescaldo
Com a noite que regas em porções
Com os blocos de noite que caem de tuas mãos
Com o silêncio que prende à tua chegada
Com o transtorno e o marulho
Com o vaivém das casas
E o oscilar de luzes e a sombra mais dura
E tuas palavras de avenida fluvial
Tão logo chegas e te foste
E queres pôr a flutuar minha vida
E apenas preparas minha morte
E a morte de esperar
E o morrer de te ver longe
E os silêncios e o esperar o tempo
Para viver quando chegas
E me rodeias de sombra
E me fazes luminoso
E me submerges no mar fosforescente onde acontece teu estar
E onde apenas dialogamos tu e minha noção escura e pavorosa de teu ser
Estrela desprendendo-se no apocalipse
Entre bramidos de tigres e lágrimas
De gozo e gemer eterno e eterno
Consolar-se no ar rarefeito
Em que te quero aprisionar
E girar pela pendente de teu corpo
Até teus pés cintilantes
Até teus pés de constelações gêmeas
Na noite terrestre
Que te segue acorrentada e muda
Trepadeira de teu sangue
Sustentando a flor de tua cabeça de cristal moreno
Áquario encerrando planetas e caldas
E a potência que faz com que o mundo siga em pé e guarde o equilíbrio dos mares
E teu cérebro de matéria luminosa
E minha adesão sem fim e o amor que nasce sem cessar
E te envolve
E que teus pés transitam
Abrindo marcas indeléveis
Onde se pode ler a história do mundo
E do porvir do universo
E esse ligar-se luminoso de minha vida
à tua existência.



Tradução de Floriano Martins.
In. Poesia Sempre. Nº 28, ano 15 Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 2008, p.29-30.
Imagem retirada da Internet: César Moro

José Inácio Vieira de Melo - Poema






14 de março
Dia Nacional da POESIA!








Posse


Encravo o meu punhal na tua pequenina porta,
encravo-o com todo gás, com toda força,
e ao realizar essa completa invasão
descubro que a tua pequenina porta
guardava e resguardava um imenso salão.




In. Roseiral. São Paulo: Escrituras, 2010, p.68.
Imagem retirada da Internet: Bu

Luís Quintais - Poema


















VISÕES DO MUNDO (1995)



Rua do Loreto. Todas as visões do mundo são parciais.
Como uma invenção de Vermeer
as traseiras de um edifício antigo
podem ser os limites da minha moldura.

Nada há de exaustivo
no olhar humano. A chaminé de tijolo tinge o céu
de um vermelho débil
que ele nunca teve.

Um universo de vozes,
infectos cheiros de cozinhas adjacentes, ruídos
que quebram o alheamento que sobre as fechadas
se perpetua.

Em baixo, uma varanda onde nunca está ninguém.
Nada sei da ausência que a varanda desvenda.
Do lado esquerdo, o parapeito alto confere-me a certeza
de que os meus domínios foram encontrados.

Neste perímetro de luz
procuro a consistência dos sentidos.
O território com que se abastece uma paixão descritiva,
o lastro da imaginação.


Imagem retirada da Internet: Rua do Loreto

João Cabral de Melo Neto - Poema
















O ferrageiro de Carmona


Um ferrageiro de Carmona,
que me informava de um balcão:
"Aquilo? É de ferro fundido,
foi a forma que fez, não a mão.

Só trabalho em ferro forjado
que é quando se trabalha ferro
então, corpo a corpo com ele,
domo-o, dobro-o, até o onde
quero.

O ferro fundido é sem luta
é só derramá-lo na forma.
Não há nele a queda de braço
e o cara a cara de uma forja.

Existe a grande diferença
do ferro forjado ao fundido:
é uma distância tão enorme
que não pode medir-se a gritos.

Conhece a Giralda, em Sevilha?
De certo subiu lá em cima.
Reparou nas flores de ferro dos quatro jarros das esquinas?

Pois aquilo é ferro forjado.
Flores criadas numa outra
língua.
Nada têm das flores de forma,
moldadas pelas das campinas.

Dou-lhe aqui humilde receita,
Ao senhor que dizem ser poeta:
O ferro não deve fundir-se
nem deve a voz ter diarréia.

Forjar: domar o ferro à força,
Não até uma flor já sabida,
Mas ao que pode até ser flor
Se flor parece a quem o diga.


Imagem retirada da Internet: Ferreiro

Olavo Bilac - Poema
















Inania verba



Ah! quem há-de exprimir, alma impotente e escrava,
O que a boca não diz, o que a mão não escreve
- Ardes, sangras, pregada à tua cruz e, em breve,
Olhas, desfeito em lodo, o que te deslumbrava...

O Pensamento ferve, e é um turbilhão de lava:
A forma, fria e espessa, é um sepulcro de neve...
E a Palavra pesada abafa a Idéia leve,
Que, perfume e clarão, refulgia e voava.

Quem o molde achará para a expressão de tudo
Ai! quem há-de dizer as ânsias infinitas
Do sonho e o céu que foge à mão que se levanta

E a ira muda e o asco mudo e o desespero mudo
E as palavras de fé que nunca foram ditas
E as confissões de amor que morrem na garganta


Imagem retirada da Internet: Caminho da Palavra

Olavo Bilac - Poema
















Olha-me!



Olha-me! O teu olhar sereno e brando
Entra-me o peito, como um largo rio
De ondas de ouro e de luz, límpido, entrando
O ermo de um bosque tenebroso e frio.

Fala-me! Em grupos doudejantes, quando
Falas, por noites cálidas de estio,
As estrelas acendem-se, radiando,
Altas, semeadas pelo céu sombrio.

Olha-me assim! Fala-me assim! De pranto
Agora, agora de ternura cheia,
Abre em chispas de fogo essa pupila...

E enquanto eu ardo em sua luz, enquanto
Em seu fulgor me abraso, uma sereia
Soluce e cante nessa voz tranqüila!


Imagem retirada da Internet: Sarah Bernardet

Rosana Carneiro Tavares - Ensaio


Pet Shop / Mundo Cão*


Por Rosana Carneiro Tavares


Viver socialmente nos imprime uma necessidade de hipocrisia que vai muito além de qualquer conscientização de nosso papel social e de nossas ações orientadas por valores pessoais. Somos, na realidade, engolidos pelo nosso sistema. Somos todos hipócritas!

Não sabemos porque trabalhamos, porque compramos determinados produtos, porque nos divertimos, para que estudamos, enfim, não sabemos porque vivemos. Só sabemos que precisamos trabalhar, incansavelmente, para viver. Trabalhar até não podermos mais fazê-lo porque adoecemos ou porque morremos.

Temos uma imensa necessidade de adquirir as coisas que não podemos jamais parar. A televisão de 30 e tantas polegadas, tela plana, tela côncava, tela convexa. O celular cada vez menor, mais iluminado e estridente. O carro a cada dia mais redondo, hoje com uma antena no teto, no próximo ano ela vem no pára-choque, no outro em cima do retrovisor, enfim não podemos perder nenhuma oportunidade de aproveitar a evolução tecnológica que nossa sociedade nos proporciona.

Nessa busca desenfreada esquecemo-nos de procurar entender o sentido das coisas. Acreditamos que sabemos o que queremos e que temos liberdade para fazer nossas escolhas. Temos absoluta certeza de que somos livres, de que podemos fazer o que quisermos de nossas vidas. Podemos optar por trabalhar ou não, por participar de alguma mobilização social ou não, enfim podemos escolher entre viver ou morrer!

Somos tão livres que podemos escolher desistir de nos integrarmos ao nosso sistema social e, ao invés de produzir incansavelmente e consumir desenfreadamente, podemos “optar” por passar a viver das benesses daqueles que têm. E nessa crença de total liberdade e autonomia a sociedade se divide, uma parte detém o poder, a riqueza, o saber, enquanto a outra fica subjugada a essa.

É assim, a gente trabalha, e trabalha para manter o poder daquele que já o detém, não nos apropriamos do nosso trabalho, pois quem colhe os frutos é o outro. E, ainda assim, acreditamos que somos livres até para julgar aquele que não está inserido no mercado, aqueles que são marginalizados, como por exemplo os “loucos” , que “são um peso para a nossa sociedade e estão insuflando nosso sistema de saúde”.

É essa a nossa sociedade, onde as pessoas desesperadamente buscam se incluir, lutam pelo quinhão que acham que lhe é de direito, excluem aqueles que não o fazem, e não se julgam responsáveis pelo caos social instalado no mundo moderno. Todos responsabilizam o Estado para políticas inclusivas. O Estado toma essa responsabilidade para si, com programas e mais programas de combate à exclusão e acredita que está combatendo. E assim nós vamos “vivendo”, pagando nossos impostos e delegando ao Estado as responsabilidades sociais. As pessoas no poder de Estado acreditando que sua colaboração está sendo dada. Os excluídos, à medida que se fortalecem, vão criando movimentos sociais de pressão para sua inclusão nesse sistema. E a hipocrisia se firma, nesse modelo de sociedade solitária, quem se inclui, exclui.

E nós vamos trabalhando, trabalhando desenfreadamente, repetidamente pensando em nossos finais de semana e nossos dias de folga como sendo nosso lugar ao sol. E não nos permitimos, nem nesses momentos, o desfrute do lazer por mero prazer. Tomamos um chá “para relaxar”, andamos de bicicleta “para termos saúde por mais tempo”, ouvimos música “para combater o estresse”, e ainda, se nada disso não nos trouxer um sentimento de adaptação a esse mundo, podemos contar com as fluoxetinas, sertralinas e benzodiazepínicos da “vida”. Essa é uma vida normal, quem não se adapta a ela é louco, e aos loucos nós já demos a sentença: serão trancafiados em uma instituição qualquer, por inadaptação ao caos.




*Título tomando de empréstimo a Zeca Baleiro, cantor maranhense.

Rosana Carneiro Tavares é Doutoranda em Psicologia(PUCGoiás); Mestre em Psicologia (UCG); Especialista em Saúde Mental (UCG); Especialista em Psicologia do Trânsito (UniUberaba) e Bacharel e Licenciada em Psicologia (UCG). Professora da Fundação Universidade do Tocantins. Autora do Livro Olhares:Experiência da CAPS. Goiânia: Kelps, 2009, do qual este ensaio faz parte.

Imagem retirada da Internet:Bebê.

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