Francisco Perna Filho - Ensaio














Espaço e preconceito


Por Francisco Perna Filho


Há muito que ouço e leio julgamentos do tipo: “esses são poetas menores”, “aqueles são poetas maiores”. Fale-se muito, classifica-se sem critérios, abusa-se de chavões, mas consistentemente nada tem-se de concreto. Sobressaindo-se os ditos “Grandes” os “consagrados”, os “intocáveis”, donos de uma obra magistral. “A melhor de todas”. Já ouvi muito dos “ditos consagrados” e olha que as academias, os salões, as agremiações, estão cheios desses imortais indivíduos, tão sonhadores que nem tempo têm para a realidade.

Para a realidade literária, aquela que bate à porta, que clama para ser lida e ouvida. Aquela que está na rua, nas velhas cidades, na universalidade dos becos, no lirismo da despedida. Uma realidade que pulsa na Internet, nos blogs, nos fóruns e nas revistas eletrônicas.

Lembro-me de ouvir por aí, da boca de muitos intelectuais, que eles jamais escreveriam para blogs, para revistas eletrônicas, que isso seria rebaixar-se; que tais espaços não tinham a nobreza para comportar tamanha erudição e imortalidade. Que bobagem! Eu dizia e ficava observando, escrevendo, refletido. E vi quando as coisas começaram a mudar, quando os nossos intelectuais, os renomados, passaram a descobrir o alcance que tem a Internet. Descobriram que uma boa revista não se faz do dia para noite, é preciso paciência, seriedade, determinação e bom conteúdo.

A propósito do que estou dizendo, lembrei-me de Julio Cortázar, escritor argentino, numa entrevista concedida ao jornalista uruguaio Omar Prego, ao ser perguntado sobre as influências sofridas pelos autores latino-americanos, e a resistência deles em aceitar tais influências, principalmente quando os pais intelectuais eram, também, latino-americanos. E, mais ainda, a recusa desses escritores a escreverem o que consideravam como gêneros menores: romances policiais, rádionovelas e memórias.

A esse questionamento, que agora transcrevo, Julio Cortázar, inteligentemente, responde perguntando: “Será que isso não vem das falsas categorias de valores que existem na literatura, e em tantas outras coisas nesta vida? Porque em outro nível ocorre o caso de escritores que recusariam, horrorizados, um eventual convite para que escrevessem radionovelas. Porque consideram que a radionovela é um gênero secundário, insignificante, e eles não poderiam concordar em fazer uma coisa dessas. Raciocínio sumamente sofismático, porque tudo se resolveria fazendo boas novelas de rádio, que aliás existem(...)” E completa “(...)Em Cuba, por exemplo, mais de uma vez disse aos escritores cubanos, que se queixam de não serem editados, principalmente os jovens: “vocês se queixam porque não são editados, e na realidade vocês deveriam é tomar de assalto e se apropriar dos novos meios de comunicação cultural de Cuba, ou seja, o rádio e a televisão.” A resposta é sempre a mesma: “Ah, isso não, eu sou poeta”, ou: “Eu sou romancista.” Consideram indigno pôr a mão em outros meios de comunicação”. Pena não ter ele, Cortázar, durado para contemplar, estupefato, a explosão que é a Internet. Talvez dissesse, como diria meu pai, Um colosso!

Rompido o preconceito, abertas as portas da interatividade, muitos questionamentos surgem, suscitados pelo espaço democrático que temos nos espaços virtuais, um desses questionamentos diz respeito ao que foi colocado logo atrás a respeito da fala de Cortázar e do que mencionei no início deste texto: o quanto somos preconceituosos quando o assunto é arte, principalmente literatura e, mais ainda, quando essa literatura é brasileira.

Há algum tempo, na Revista Bula, travou-se uma discussão sobre o valor de alguns críticos, como Harold Bloom: se ele tem ou não tem competência ou se é um mero modismo inventado pela mídia, como também o fora “Claude Levy Straus”. Depois disso, para atender a uma amiga, doutoranda, do Carlos Willian (Editor da Bula), vieram as batidas listas: “melhores obras”, “maiores autores”(aqui entraria Julio Cortázar, que era altíssimo, e que recebeu de Juan Rulfo, o seguinte comentário: “Tem um coração tão grande que Deus necessitou fabricar um corpo para acomodar esse coração.”), dos “melhores filmes”. Há uma repetição, as mesmas obras, os mesmos autores, algo muito fechado, desconsiderando o quanto de coisa maravilhosa existe na Literatura universal, na Literatura Brasileira Universal. Todas as obras citadas nessas listas têm o seu valor, são grandes, sim, mas se considerarmos que são listas pessoais, são tão iguais, mas tão iguais que parecem não permitir que se fale de outras obras.

Pensemos, por exemplo, em E.T.A. Hoffmann, Juan Carlos Onetti, Franz Kafka, Carlos Fuentes, Ruan Rulfo, Autran Dourado, Murilo Rubião, Willian Faulkner, Alenjo Carpentier, e, claro, Gerardo Mello Mourão, autor do grande poema épico “Os Peãs”; do tão maravilhoso: “Invenção do Mar”; e do mais musical deles: “Cânon & Fuga”, do qual transcrevo poema a seguir e aproveito para encerrar parte desta reflexão:

O que as sereias diziam a Ulisses na Noite do mar


Sobre a frase musical de Ivar Frounberg “Was sagen
die Sirenen als Odysseus vorbei segelte”


Ninguém jamais ouviu um canto igual
Ao canto que te canto
Escuta: as ondas e os ventos se calaram e a noite e o mar
Só ouvem minha voz – a noite e o mar e tu
Marinheiro do mar de rosas verdes:
Virás: é um leito de rosas e lençóis de jasmim – e ao ritmo
De teu corpo entre a cintura e as ancas
Mais o lençol de aromas de meu corpo
Em monte de pétalas desfeito:
E dormirás comigo
E os que dormem com deusas
Deuses serão
Vem dormir comigo
E comigo
e todas as sereias.
Todas as deusas se entregam
ao amante que um dia possuiu uma deusa
e então todas as fêmeas dos homens
Helenas, Briseidas e a Penélope tua
hão de implorar às Musas – e as Musas a Eros e Afrodite
a volúpia de uma noite contigo.
Não partas!
Se partires
As velas de tua nau serão escassas
Para enxugar-te as lágrimas – e nunca
Nunca mais tocarás a pele das deusas
Nunca mais a virilha das fêmeas dos homens
E nunca mais serás um deus
E nunca mais a melodia de uma canção de amor
Dos hinos do himineu:
Abelhas mortas para sempre irão morar
Na pedra do jazigo de cera
De teus ouvidos cegos.
Mas vem
E vem dormir comigo
E comigo
E minhas mãos irmãs e todas
As sereias do mar
As sereias da terra
E as sereias dos céus.


Este texto foi originalmente publicado na Revista Bula. Agora eu o republico com algumas atualizações.
Imagem retirada da Internet: Máquina de Escrever.

Francisco Perna Filho - Ensaio




















Via crucis


O ápice do amor é a morte, diz George Bataille no seu livro O Erotismo, pois, segundo ele, para que uns tenham vida, é preciso que outros seres morram, e isso só se dá no paroxismo do amor, aqui entendido como a força de Eros: vida, em oposição a Thanatos, morte.

Se a morte é a única certeza que nós temos com relação ao futuro, o que nos parece óbvio, a ausência que ela provoca pode ser relativa, ou melhor, o que se supõe como fim, pode ser apenas o começo de uma perpetuação.

O corpo é vital para o espírito aqui na terra. A terra é o espelho desse corpo quando tudo se acaba. Viver, sofrer, seguir em frente, eis o que o sentimento de vitalidade nos provoca, já que as paredes são apenas ilusões, barreiras materiais para onde correm os homens.

O que sabemos da vida, a não ser que a possuímos até perdê-la? Melhor dizendo, como encaramos o nosso dia-a-dia e refletimos o nosso modo de existir? Não estaríamos distantes demais daquilo que seria considerado ideal para um ser humano?

Quantas vidas ainda teremos de viver? Quantas catástrofes teremos de presenciar? Quantos pilantras teremos de eleger para que consigamos entender o verdadeiro sentido da nossa existência? Talvez milhares, porquanto o homem parece não querer enxergar o lastro de destruição por ele deixado.

Pensemos nas guerras, na fome, no tráfico de seres humanos. Pensemos do poder de potência dos negociadores de armas, nos obtusos governos que se alastram pelo mundo afora. Pensemos na exploração sexual de crianças e adolescentes, nos desvios do dinheiro público, nas licitações fraudulentas, nos traficantes de drogas, soldados da destruição.

Muita coisa ruim tem tentado se perpetuar no mundo, mas as almas de boa vontade, os anjos da boa nova têm insistido nas ações que valorizam o ser humano, têm buscado a preservação da vida, a valorização da solidariedade, o amor incondicional entre os povos.

Talvez o que tenhamos feito tenha sido pouco, mas não em vão. Cada olhar de apoio, cada palavra de encorajamento, cada gesto de solidariedade, tudo isso tem uma importância imensurável, tudo isso é capaz de transformar vidas, tanto de quem doa quanto de quem recebe. São gestos como esses que nos dão a dimensão do que é ser verdadeiramente humano, a força de Eros em toda sua plenitude, com toda a sua força, para o reaprendizado de existências.


Este texto foi originalmente publicado naRevista Bula.
Imagem retirada da Internet: Eros e Thanatos, Sergey Ignatenko (d.n.: 1975)

Rubem Braga - Crônica













O Pavão




Eu considerei a glória de um pavão ostentando o esplendor de suas cores; é um luxo imperial. Mas andei lendo livros, e descobri que aquelas cores todas não existem na pena do pavão. Não há pigmentos. O que há são minúsculas bolhas d'água em que a luz se fragmenta, como em um prisma. O pavão é um arco-íris de plumas.

Eu considerei que este é o luxo do grande artista, atingir o máximo de matizes com o mínimo de elementos. De água e luz ele faz seu esplendor; seu grande mistério é a simplicidade.

Considerei, por fim, que assim é o amor, oh! minha amada; de tudo que ele suscita e esplende e estremece e delira em mim existem apenas meus olhos recebendo a luz de teu olhar. Ele me cobre de glórias e me faz magnífico.

Rio, novembro, 1958


In. Ai de ti, Copacabana, Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1960, pág. 149
Imagem retirada da Internet: Pavão

Leo Lynce - Poema


LEO LYNCE
(1884 — 1954)

Cylleneo Marques de Araujo Valle nasceu em Pouso Alto, hoje Piracanjuba, em 29 de junho de l884, e morreu em Goiânia, no dia 7 de julho de 1954. Filho de João Antônio de Araújo Vale e de Eponina Marques de Araújo Vale. Após as primeiras letras com a mãe, seguiu, em 1894, para o Seminário Episcopal de Santa Cruz, em Vila Boa (GO). Em 1896, no entanto, foi morar com o avô materno em Bela Vista de Goiás. Tinha 16 anos quando publicou o jornal O Fanal, todo ele manuscrito. Em 1905, adotou o pseudônimo de Leo Lynce, anagrama de seu verdadeiro nome que o tornou conhecido nacionalmente.
Em 1908, entrou na vida política, elegendo-se deputado estadual. Em 1909, acossado pela Revolução, deixa Goiás, indo para Uberaba (MG). Ao retornar para Goiás, em 1910, tornou-se Guarda-Livros nas cidades de Alemão (Palmeiras) e Jataí. Em 1913, foi Diretor da Escola de Aprendizes e Artífices de Goiás Velho. No ano seguinte, voltou ao seu segundo mandato parlamentar. Em 1915, iniciou sua carreira de advogado provisionado, participando de um movimento que visava a criação de uma escola livre de Direito, na qual se matriculou.
Mudou-se, em 1920, para Urutaí, como Secretário da Fazenda Modelo. Em 1925, quando se formou em Direito, na Faculdade de Direito de Goiás Velho, renunciou ao mandato de deputado, passando a advogar em Campo Formoso (Orizona), Bonfim (Silvânia) e Vila Boa (Goiás Velho). Foi nomeado, em 1927, Juiz de Direito de Santa Cruz de Goiás. Em 1930, tornou-se Juiz de Direito de Pires do Rio. Em 1938, foi para Bela Vista de Goiás, como Juiz de Direito. Em 1939, aposentou-se da Magistratura Goiana e no dia 29 de abril participou da fundação da Academia Goiana de Letras, ocupando a Cadeira nº 11, cujo Patrono é Rodolfo da Silva. Em 1999, pelo livro Ontem foi aclamado, por um seleto júri, organizado pelo jornal O Popular, o autor de melhor poesia brasileira produzida em Goiás.
A. R. Jubé diz que a poesia de Leo Lynce “é típica de transição, em que as tendências e os gestos se interpenetram ou se alternam, revelando uma liberdade espiritual e expressional pouco comum em seu tempo, ainda que por vezes se mostre preso às contingências de uma herança acadêmica”.
Bibliografia: Ontem, 1928; Romagem sentimental, s/d; Rabiscos, s/d; Poesia quase completa, 1997, editora UFG, organização de Darcy França Denófrio. (fonte Antônio Miranda.)




NA ESTAÇÃO DA ROÇA

— Lá vem o trem...
Ninguém apeia
na Estação da roça.
Quer harmonia de face!
Que lindos olhos de brasileira
numa janela de primeira classe!
Na curva, adiante, o trem arqueia,
e uma luva de pelica
— tributo da simpatia de um minuto —
sacode adeuses para alguém que fica...
triste e sozinho, na Estação da roça...
Foi, talvez, a felicidade que passou...


Imagem retirada da Internet: primeiro trem.

Antônio Nobre - Poema

Antônio Nobre nasceu na cidade do Porto a 16 de Agosto de 1867, numa família abastada. Passou a sua infância em Trás-os-Montes e na Póvoa de Varzim. Em 1888 matriculou-se no curso de Direito da Universidade de Coimbra, mas não se inseriu na vida estudantil coimbrã, reprovando por duas vezes. Optou então por partir, em 1890, para Paris onde frequentou a Escola Livre de Ciências Políticas (École Libre des Sciences Politiques, de Émile Boutmy), licenciando-se em Ciências Políticas no ano de 1895. Durante a sua permanência em França familiarizou-se com as novas tendências da poesia do seu tempo, aderindo ao simbolismo. Foi também em Paris que contactou com Eça de Queirós, na altura cônsul de Portugal naquela cidade, e escreveu a maior parte dos poemas que viriam a constituir a colectânea Só, que publicaria naquela cidade em 1892. O livro de poesia Só, que seria a sua única obra publicada em vida, constitui um dos marcos da poesia portuguesa do século XIX. Esta obra seria, ainda em sua vida, reeditada em Lisboa, com variantes, lançando definitivamente o poeta no meio cultural português. Aparecida num período em que o simbolismo era a corrente dominante na poesia portuguesa coeva, Só diferencia-se dos cânones dominantes desta corrente, o que poderá explicar as críticas pouco lisonjeiras com que a obra foi inicialmente recebida em Portugal. Apesar desse acolhimento, a obra de António Nobre teve como mérito, juntamente com Cesário Verde, Guerra Junqueiro, Antero de Quental, entre outros, de influenciar decisivamente o modernismo português e tornar a escrita simbolista mais coloquial e leve. No seu regresso a Portugal decidiu enveredar pela carreira diplomática, tendo participado, sem sucesso, num concurso para cônsul. Entretanto adoece com tuberculose pulmonar, doença que o obriga a ocupar o resto dos seus dias em viagens entre sanatórios na Suíça, na Madeira, passando por New York, pelos arredores de Lisboa e pela casa da família no Seixo, procurando em vão na mudança de clima o remédio para o seu mal. Vítima da tuberculose pulmonar, faleceu na Foz do Douro, a 18 de Março de 1900, com apenas 33 anos de idade, em casa de seu irmão Augusto Nobre, reputado biólogo e professor da Universidade do Porto. Deixou inédita a maioria da sua obra poética. Apesar da morte prematura, e de só ter publicado em vida uma obra, a colectânea Só, António Nobre influenciou os grandes nomes do modernismo português, como Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, deixando uma marca indelével na literatura lusófona. Fonte: wikipedia




Memória

Ora isto, Senhores, deu-se em Trás-os-Montes,
Em terras de Borba, com torres e pontes.

Português antigo, do tempo da guerra,
Levou-o o Destino pra longe da terra.

Passaram os anos, a Borba voltou,
Que linda menina que, um dia, encontrou!

Que lindas fidalgas e que olhos castanhos!
E, um dia, na Igreja correram os banhos.

Mais tarde, debaixo dum signo mofino,
Pela lua-nova, nasceu um menino.

Ó mães dos Poetas! sorrindo em seu quarto,
Que são virgens antes e depois do parto!

Num berço de prata, dormia deitado,
Três moiras vieram dizer-lhe o seu fado

(E abria o menino seus olhos tão doces):
"Serás um Príncipe! mas antes... não fosses."

Sucede, no entanto, que o Outono veio
E, um dia, ela resolve ir dar um passeio.

Calçou as sandálias, tocou-se de flores,
Vestiu-se de Nossa Senhora das Dores:

"Vou ali adiante, à Cova, em berlinda,
António, e já volto..." E não voltou ainda.

Vai o Esposo, vendo que ela não voltava,
Vai lá ter com ela, por lá se quedava.

Ó homem egrégio! de estirpe divina,
De alma de bronze e coração de menina!

Em vão corri mundos, não vos encontrei
Por vales que fora, por eles voltei.

E assim se criou um anjo, o Diabo, a lua;
Ai corre o seu fado! a culpa não é sua!

Sempre é agradável ter um filho Virgílio,
Ouvi estes carmes que eu compus no exílio.

Ouvi-os vós todos, meus bons Portugueses!
Pelo cair das folhas, o melhor dos meses.

Mas, tende cautela, não vos faça mal...
Que é o livro mais triste que há em Portugal!


In. Presença da Literatura Portuguesa: O Simbolismo. Antônio Soares Amora. 5ª ed.Rio de Janeiro: Difel.s/d,p.48-9.
Imagem retirada da Internet: Antônio Nobre.

José Castelo - Crônica




J.D. SALINGER (1919-2010)

O assombro que nunca termina



Por José Castello em 2/2/2010



A morte é sempre absurda, mas a morte de J.D. Salinger transforma o absurdo em uma noção insuficiente. Salinger foi um dos casos extremos de escritores engolidos pela própria obra. Arredio, invisível, ele se escondeu dentro de seus escritos e por isso foi não só um escritor genial, mas um personagem inesquecível.

Pensamos em Salinger, que viveu longos anos recluso em uma fortaleza de Cornish, EUA, e, imediatamente, pensamos em Holden Caulfield, o narrador de O apanhador no campo de centeio, seu romance mais célebre. Salinger seguiu à risca as instruções deixadas por Caulfield nas últimas linhas do romance: "A gente nunca devia contar nada a ninguém. Mal acaba de contar, a gente começa a sentir saudade de todo mundo."

O silêncio, para ele, era uma tentativa de escapar do sofrimento.

Sua vida de ermitão parece ter algo a ver com seu envolvimento com o zen budismo. Jerome David (o nome que se esconde sob o J.D.) nunca negou suas inquietações metafísicas, que seus livros, em um estilo debochado e cruel, transformaram em agonia.

A fuga interminável de Salinger – que sua morte, agora, interrompe – carregava, ainda, uma dose de ironia. Com ela, criticou o comodismo, a repetição, o tédio que marcam a vida do americano comum. O estilo desleixado e nervoso que cultivou, talvez na esperança de não ser amado, porém, se voltou contra ele.

Sensação de desafogo

Seu melhor biógrafo, Ian Hamilton (Em busca de J.D. Salinger, Casa Maria Editorial, 1990), o definiu assim: "Ele era famoso por não querer ser famoso."

Quando lançou O apanhador, refugiou-se na Inglaterra porque não suportaria ter seu herói dividido – fatiado –com gente estranha.

A revista Time se espantou: "Ele consegue entender a cabeça de um adolescente sem ter uma." Recordo a sensação de desafogo que senti quando, nos anos 60, em plena adolescência, descobri seus livros. Isso não tem nada de espantoso porque milhares de outros leitores, em todo o mundo, experimentaram o mesmo assombro. O que realmente espanta é que esse assombro nunca termine. Até hoje, de cabelos brancos, nos assustamos com Salinger.

A opção pelo silêncio

A morte de J.D. Salinger se torna mais absurda porque, tendo se oferecido em sacrifício ao mundo da ficção, sua morte é, de certa forma, a morte da própria ficção. Mais absurda ainda porque, de certa maneira, ela perpetua aquilo que o sustentou em vida: o silêncio.

Salinger poderia repetir, sem vacilar, a célebre tirada de Holden Caulfield: "Se eu fosse pianista, ia tocar dentro de um armário."

Não suportava a ideia de que pudessem ouvi-lo, e ele mesmo não suportava se ouvir.

Sua morte consagra essa opção pelo silêncio, através da qual se esforçou para morrer em vida. A ficção também morre um pouco, não só porque Salinger foi um escritor extraordinário, mas porque, escondido atrás das palavras, ele se tornou parte inseparável de seus livros. Não contava, provavelmente, com isso: a partir de agora, cada vez que lermos suas ficções, ele retornará.



In.Observatório da Imprensa: Reproduzido de O Globo, 29/1/2010.
Imagem retirada da Internet: J.D.Salinger.

Cassiano Ricardo - Poema


João, o Telegrafista


João telegrafista.
Nunca mais que isso,
estaçãozinha pobre
havia mais árvores pássaros
que pessoas.
Só tinha coração urgente.
Embora sem nenhuma
promoção.
A bater a bater sua única
tecla.





Elíptico, como todo
telegrafista.
Cortando flores preposições
para encurtar palavras,
para ser breve na necessidade.
Conheceu Dalva uma Dalva
não alva sequer matutina
mas jambo, morena.
Que um dia fugiu — único
dia em que foi matutina —
para ir morar cidade grande
cheia luzes jóias.
História viva, urgente.

Ah, inutilidade alfabeto Morse
nas mãos João telegrafista
procurar procurar Dalva
todo mundo servido telégrafo.
Ah, quando envelhece,
como é dolorosa urgência!
João telegrafista
nunca mais que isso, urgente.


Por suas mãos passou mundo,
mundo que o fez urgente,
elíptico, apressado, cifrado.
Passou preço do café.
Passou amor Eduardo
VIII, hoje duque Windsor.
Passou calma ingleses sob
chuva de fogo. Passou
sensação primeira bomba
voadora.
Passaram gafanhotos chineses,
flores catástrofes.
Mas, entre todas as coisas,
passou notícia casamento Dalva
com outro.

João telegrafista
o de coração urgente
não disse palavra, apenas
três andorinhas pretas
(sem a mais mínima intenção simbólica)
pousaram sobre
seu soluço telegráfico.

Um soluço sem endereço — Dalva —
e urgente.


Publicado no livro Poemas murais, 1947/1948 (1950).
In: RICARDO, Cassiano. Poesias completas. Pref. Tristão de Athayde. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1957. p.517-51
Imagem retirada da Internet: telegrafista.

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