Cesário Verde - Poema




Cesário Verde





LOURA


Eu descia o Chiado lentamente
Parando junto às montras dos livreiros
Quando passaste irônica e insolente
Mal pousando no chão os pés ligeiros.

O céu nublado ameaçava chuva,
Saía gente fina de uma igreja;
Destacavam no traje de viúva
Teus cabelos de um louro de cerveja.

E a mim, um desgraçado a quem seduzem
Comparações estranhas, sem razão,
Lembrou-me este contraste o que produzem
Os galões sobre os panos de um caixão.

Eu buscava uma rima bem intensa
Para findar uns versos com amor;
Olhaste-me com cega indiferença
Através do lorgnon provocador.

Detinham-se a medir tua elegância
Os dandies com aprumo e galhardia;
Segui-te humildemente e a distância
Não fosses suspeitar que te seguia.

E pensava de longe, triste e pobre,
Desciam pela rua umas varinas
Como podias conservar-te sobre
O salto exagerado das botinas.

E tu, sempre febril, sempre inquieta,
Havia pela rua uns charcos de água
Ergueste um pouco a saia sobre a anágua
De um tecido ligeiro e violeta.

Adorável! Na idéia de que agora
A branda anágua a levantasse o vento
Descobrindo uma curva sedutora,
Cada vez caminhava mais atento.

Mas súbito parei, sentindo bem
Ser loucura seguir-te com empenho,
A ti que és nobre e rica, que és alguém,
Eu que de nada valho e nada tenho.

Correu-me pelo corpo um calafrio,
E tive para o teu perfil ligeiro
Este olhar resignado do vadio
Que fita a exposição de um confeiteiro.

Vi perder-se na turba que passava
O teu cabelo de ouro que faz mal;
Não achei essa rima que buscava,
Mas compus este quadro natural.


In. Biblio.

Imagem retirada da Internet: Loura.

Cesário Verde - Poema





Cesário Verde







CADÊNCIAS TRISTES


A João de Deus


Ó bom João de Deus, ó lírico imortal,
Eu gosto de te ouvir falar timidamente
Num beijo, num olhar, num plácido ideal;
Eu gosto de te ver contemplativo e crente,
O pensador suave, ó lírico imortal!

E fico descansada, à noite, quando cismo
Que tentam proscrever a sensibilidade,
E querem denegrir o cândido lirismo;
Porque o teu rosto exprime uma serenidade,
Que vem tranqüilizar-me, à noite, quando cismo!

O enleio, a simpatia e toda a comoção
Tu mostras no sorriso ascético e perfeito;
E tens o edificante e doce amor cristão,
Num trono de bondade, a iluminar-te o peito,
Que é toda a melodia e toda a comoção!

Poeta da mulher! Atende, escuta, pensa,
Já que és o nosso irmão, já que és o nosso mestre.
Que ela, ou doente sempre ou na convalescença,
E como a flor de estufa em solidão silvestre,
Ao tempo abandonada! Atende, escuta, pensa.

E, ó meigo visionário, ó meu devaneador
O sentimentalismo há de mudar de fases;
Mas só quando morrer a derradeira flor
E que não hão de ler-se os versos que tu fazes,
O bom João de Deus, ó meu devaneador!


In. Biblio.

Imagem retirada da Internet: João de Deus.

Cesário Verde - Poema





Cesário Verde




FLORES VELHAS


Fui ontem visitar o jardinzinho agreste,
Aonde tanta vez a lua nos beijou,
E em tudo vi sorrir o amor que tu me deste,
Soberba como um sol, serena como um vôo.

Em tudo cintilava o límpido poema
Com ósculos rimado às luzes dos planetas;
A abelha inda zumbia em torno da alfazema;
E ondulava o matiz das leves borboletas.

Em tudo eu pude ver ainda a tua imagem,
A imagem que inspirava os castos madrigais;
E as vibrações, o rio, os astros, a paisagem,
Traziam-me à memória idílios imortais.

Diziam-me que tu, no flórido passado,
Detinhas sobre mim, ao pé daquelas rosas,
Aquele teu olhar moroso e delicado,
Que fala de langor e de emoções mimosas;

E, ó pálida Clarisse, ó alma ardente e pura,
Que não me desgostou nem uma vez sequer,
Eu não sabia haurir do cálix da ventura
O néctar que nos vem dos mimos da mulher.

Falou-me tudo, tudo, em tons comovedores,
Do nosso amor, que uniu as almas de dois entes;
As falas quase irmãs do vento com as flores
E a mole exalação das várzeas recendentes.

Inda pensei ouvir aquelas coisas mansas
No ninho de afeições criado para ti,
Por entre o riso claro, e as vozes das crianças,
E as nuvens que esbocei, e os sonhos que nutri.

Lembrei-me muito, muito, ó símbolo das santas,
Do tempo em que eu soltava as notas inspiradas,
E sob aquele céu e sobre aquelas plantas
Bebemos o elixir das tardes perfumadas.

E nosso bom romance escrito num desterro,
Com beijos sem ruído em noites sem luar,
Fizeram-mo reler, mais tristes que um enterro,
Os goivos, a baunilha e as rosas-de-toucar.

Mas tu agora nunca, ah! nunca mais te sentas
Nos bancos de tijolo em musgo atapetados,
E eu não te beijarei, às horas sonolentas,
Os dedos de marfim, polidos e delgados...

Eu, por não ter sabido amar os movimentos
Da estrofe mais ideal das harmonias mudas,
Eu sinto as decepções e os grandes desalentos
E tenho um riso mau como o sorrir de Judas.

E tudo enfim passou, passou como uma pena
Que o mar leva no dorso exposto aos vendavais,
E aquela doce vida, aquela vida amena,
Ah! nunca mais virá, meu lírio, nunca mais!

Ó minha boa amiga, ó minha meiga amante!
Quando ontem eu pisei, bem magro e bem curvado,
A areia em que rangia a saia roçagante,
Que foi na minha vida o céu aurirrosado,

Eu tinha tão impresso o cunho da saudade,
Que as ondas que formei das suas ilusões
Fizeram-me enganar na minha soledade
E as asas ir abrindo às minhas impressões.

Soltei com devoção lembranças inda escravas,
No espaço construí fantásticos castelos,
No tanque debrucei-me em que te debruçavas,
E onde o luar parava os raios amarelos.

Cuidei até sentir, mais doce que uma prece,
Suster a minha fé, num véu consolador,
O teu divino olhar que as pedras amolece,
E há muito me prendeu nos cárceres do amor.

E cheio das visões em que a alma se dilata,
Julguei-me no teu peito, ó coração que dormes!
E foram embalar-me as águas da cascata
De búzios naturais e conchas multiformes.

Os teus pequenos pés, aqueles pés suaves,
Julguei-os esconder por entre as minhas mãos,
E imaginei ouvir ao conversar das aves
As célicas canções dos anjos teus irmãos.

E como na minha alma a luz era uma aurora,
A aragem ao passar parece que me trouxe
O som da tua voz, metálica, sonora,
E o teu perfume forte, o teu perfume doce.

Agonizava o Sol gostosa e lentamente,
Um sino que tangia, austero e com vagar,
Vestia de tristeza esta paixão veemente,
Esta doença, enfim, que a morte há de curar.

E quando me envolveu a noite, noite fria,
Eu trouxe do jardim duas saudades roxas,
E vim a meditar em quem me cerraria,
Depois de eu morrer, as pálpebras já frouxas.

Pois que, minha adorada, eu peço que não creias
Que eu amo esta existência e não lhe queira um fim;
Há tempos que não sinto o sangue pelas veias
E a campa talvez seja afável para mim.

Portanto, eu, que não cedo às atrações do gozo,
Sem custo hei-de deixar as mágoas deste mundo,
E, ó pálida mulher, de longo olhar piedoso,
Em breve te olharei calado e moribundo.

Mas quero só fugir das coisas e dos seres,
Só quero abandonar a vida triste e má
Na véspera do dia em que também morreres,
Morreres de pesar, por eu não viver já!

E não virás, chorosa, aos rústicos tapetes,
Com lágrimas regar as plantações ruins;
E esperarão por ti, naqueles alegretes,
As dálias a chorar nos braços dos jasmins!


In. Biblio.

Imagem retirada da Internet: Flores.


Cesário Verde - Poema





Cesário Verde







MANHÃS BRUMOSAS


Aquela, cujo amor me causa alguma pena,
Põe o chapéu ao lado, abre o cabelo à banda,
E com a forte voz cantada com que ordena,
Lembra-me, de manhã, quando nas praias anda,
Por entre o campo e o mar, bucólica, morena,
Uma pastora audaz da religiosa Irlanda.

Que línguas fala? A ouvir-lhe as inflexões inglesas,
- Na névoa, a caça, as pescas, os rebanhos! -
Sigo-lhe os altos pés por estas asperezas;
E o meu desejo nada em época de banhos,
E, ave de arribação, ele enche de surpresas
Seus olhos de perdiz, redondos e castanhos.

As irlandesas têm soberbos desmazelos!
Ela descobre assim, com lentidões ufanas,
Alta, escorrida, abstrata, os grossos tornozelos;
E como aquelas são marítimas, serranas,
Sugere-se o naufrágio, as músicas, os gelos
E as redes, a manteiga, os queijos, as choupanas.

Parece um rural boy! Sem brincos nas orelhas,
Traz um vestido claro a comprimir-lhe os flancos,
Botões a tiracolo e aplicações vermelhas;
E à roda, num país de prados e barrancos,
Se as minhas mágoas vão, mansíssimas ovelhas,
Correm os seus desdéns, como vitelos brancos.

E aquela, cujo amor me causa alguma pena,
Põe o chapéu ao lado, abre o cabelo à banda,
E com a forte voz cantada com que ordena,
Lembra-me, de manhã, quando nas praias anda,
Por entre o campo e o mar, católica, morena,
Uma pastora audaz da religiosa Irlanda.


In. Biblio.

Imagem retirada da Internet: Psiqué

Cesário Verde - Poema




Cesário Verde




NOITE FECHADA


Lembras-te tu do sábado passado,
Do passeio que demos, devagar,
Entre um saudoso gás amarelado
E as carícias leitosas do luar?

Bem me lembro das altas ruazinhas,
Que ambos nós percorremos de mãos dadas:
As janelas palravam as vizinhas;
Tinham lívidas luzes as fachadas.

Não me esqueço das cousas que disseste,
Ante um pesado templo com recortes;
E os cemitérios ricos, e o cipreste
Que vive de gorduras e de mortes!

Nós saíramos próximo ao sol-posto,
Mas seguíamos cheios de demoras;
Não me esqueceu ainda o meu desgosto
Nem o sino rachado que deu horas.

Tenho ainda gravado no sentido,
Porque tu caminhavas com prazer,
Cara rapada, gordo e presumido,
O padre que parou para te ver.

Como uma mitra a cúpula da igreja
Cobria parte do ventoso largo;
E essa boca viçosa de cereja
Torcia risos com sabor amargo.

A Lua dava trêmulas brancuras,
Eu ia cada vez mais magoado;
Vi um jardim com árvores escuras,
Como uma jaula todo gradeado!

E para te seguir entrei contigo
Num pátio velho que era dum canteiro,
E onde, talvez, se faça inda o jazigo
Em que eu irei apodrecer primeiro!

Eu sinto ainda a flor da tua pele,
Tua luva, teu véu, o que tu és!
Não sei que tentação é que te impele
Os pequeninos e cansados pés.

Sei que em tudo atentavas, tudo vias!
Eu por mim tinha pena dos marçanos,
Como ratos, nas gordas mercearias,
Encafurnados por imensos anos!

Tu sorrias de tudo: os carvoeiros,
Que aparecem ao fundo dumas minas,
E à crua luz os pálidos barbeiros
Com óleos e maneiras femininas!

Fins de semana! Que miséria em bando!
O povo folga, estúpido e grisalho!
E os artistas de ofício iam passando,
Com as férias, ralados do trabalho

O quadro interior, dum que à candeia,
Ensina a filha a ler, meteu-me dó!
Gosto mais do plebeu que cambaleia,
Do bêbado feliz que fala só!

De súbito, na volta de uma esquina,
Sob um bico de gás que abria em leque,
Vimos um militar, de barretina
E galões marciais de pechisbeque,

E enquanto ela falava ao seu namoro,
Que morava num prédio de azulejo,
Nos nossos lábios retiniu sonoro
Um vigoroso e formidável beijo!

E assim ao meu capricho abandonada,
Erramos por travessas, por vielas,
E passamos por pé duma tapada
E um palácio real com sentinelas.

E eu que busco a moderna e fina arte,
Sobre a umbrosa calçada sepulcral,
Tive a rude intenção de violentar-te
Imbecilmente, como um animal!

Mas ao rumor dos ramos e da aragem,
Como longínquos bosques muito ermos,
Tu querias no meio da folhagem
Um ninho enorme para nós vivermos.

E ao passo que eu te ouvia abstratamente,
O grande pomba tépida que arrulha,
Vinham batendo o macadame fremente,
As patadas sonoras da patrulha,

E através a imortal cidadezinha,
Nós fomos ter às portas, às barreiras,
Em que uma negra multidão se apinha
De tecelões, de fumos, de caldeiras.

Mas a noite dormente e esbranquiçada
Era uma esteira lúcida de amor;
Q jovial senhora perfumada,
O terrível criança! Que esplendor!

E ali começaria o meu desterro!...
Lodoso o rio, e glacial, corria;
Sentamo-nos, os dois, num novo aterro
Na muralha dos cais de cantaria.

Nunca mais amarei, já que não amas,
E é preciso, decerto, que me deixes!
Toda a maré luzia como escamas,
Como alguidar de prateados peixes.

E como é necessário que eu me afoite
A perder-me de ti por quem existo,
Eu fui passar ao campo aquela noite
E andei léguas a pé, pensando nisto.

E tu que não serás somente minha,
As carícias leitosas do luar,
Recolheste-te, pálida e sozinha,
A gaiola do teu terceiro andar!


In. Biblio.

Imagem retirada da Internet: Enamorados.

Rainer Maria Rilke - Poema


O torso arcaico de Apolo



Não conhecemos sua cabeça inaudita
Onde as pupilas amadureciam. Mas
Seu torso brilha ainda como um candelabro
No qual o seu olhar, sobre si mesmo voltado

Detém-se e brilha. Do contrário não poderia
Seu mamilo cegar-te e nem à leve curva
Dos rins poderia chegar um sorriso
Até aquele centro, donde o sexo pendia.

De outro modo erguer-se-ia esta pedra breve e mutilada
Sob a queda translúcida dos ombros.
E não tremeria assim, como pele selvagem.

E nem explodiria para além de todas as fronteiras
Tal como uma estrela. Pois nela não há lugar
Que não te mire: precisas mudar de vida.



Tradução: Paulo Quintela



Fonte:culturapara.arte

Imagem retirada da Internet: Apolo


Cesário Verde - Poema






Cesário Verde







SETENTRIONAL


Talvez já te não lembres, triste Helena,
Dos passeios que dávamos sozinhos,
À tardinha, naquela terra amena,
No tempo da colheita dos bons vinhos.

Talvez já te não lembres, pesarosa,
Da casinha caiada em que moramos,
Nem do adro da ermida silenciosa,
Onde nós tantas vezes conversamos.

Talvez já te esquecesses, ó bonina,
Que viveste no campo só comigo,
Que te osculei a boca purpurina,
E que fui o teu sol e o teu abrigo.

Que fugiste comigo da Babel,
Mulher como não há nem na Circássia,
Que bebemos, nós dois, do mesmo fel,
E regamos com prantos uma acácia.

Talvez já te não lembres com desgosto
Daquelas brancas noites de mistério,
Em que a Lua sorria no teu rosto
E nas lajes campais do cemitério.

Talvez já se apagassem as miragens
Do tempo em que eu vivia nos teus seios,
Quando as aves cantando entre as ramagens
O teu nome diziam nos gorjeios.

Quando, à brisa outoniça, como um manto,
Os teus cabelos de âmbar, desmanchados,
Se prendiam nas folhas dum acanto,
Ou nos bicos agrestes dos silvados.

E eu ia desprendê-los, como um pajem
Que a cauda solevasse aos teus vestidos,
E ouvia murmurar à doce aragem
Uns delírios de amor, entristecidos.

Quando eu via, invejoso, mas sem queixas,
Pousarem 'borboletas doidejantes
Nas tuas formosíssimas madeixas,
Daquela cor das messes lourejantes.

E no pomar, nós dois, ombro com ombro,
Caminhávamos sós e de mãos dadas,
Beijando os nossos rostos sem assombro,
E colorindo as faces desbotadas.

Quando Helena, bebíamos, curvados,
As águas nos ribeiros remansosos,
E, nas sombras, olhando os céus amados
Contávamos os astros luminosos.

Quando, uma noite, em êxtases caímos
Ao sentir o chorar dalgumas fontes,
E os cânticos das rãs que sobre os limos
Quebravam a solidão dos altos montes.

E assentados nos rudes escabelos,
Sob os arcos de murta e sobre as relvas,
Longamente sonhamos sonhos belos,
Sentindo a fresquidão das verdes selvas.

Quando ao nascer da aurora, unidos ambos
Num amor grande como um mar sem praias
Ouvíamos os meigos ditirambos
Que os rouxinóis teciam nas olaias.

E, afastados da aldeia e dos casais,
Eu contigo, abraçado como as heras,
Escondidos nas ondas dos trigais.
Devolvia-te os beijos que me deras.

Quando, se havia lama no caminho,
Eu te levava ao colo sobre a greda,
E o teu corpo nevado como arminho
Pesava menos que um papel de seda.

Talvez já te esquecesses dos poemetos,
Revoltos como os bailes do Cassino,
E daqueles byrônicos sonetos
Que eu gravei no teu peito alabastrino.

De tudo certamente te esqueceste,
Porque tudo no mundo morre e muda,
E agora és triste e só como um cipreste,
E como a campa jazes fria e muda.

Esqueceste-te, sim, meu sonho querido,
Que o nosso belo e lúcido passado
Foi um único abraço comprimido,
Foi um beijo, por meses, prolongado.

E foste sepultar-te, ó serafim,
No claustro das Fiéis emparedadas,
Escondeste o teu rosto de marfim
No véu negro das freiras resignadas.

E eu passo tão calado como a Morte
Nesta velha cidade tão sombria,
Chorando aflitamente a minha sorte
E prelibando o cálix da agonia,

E, tristíssima Helena, com verdade,
Se pudera na terra achar suplícios,
Eu também me faria gordo frade
E cobriria a carne de cilícios


In.Biblio.

Imagem: Helena.

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