Heleno Godoy - Poema





Feliz Natal !


Com este belo poema do professor, tradutor e poeta Heleno Godoy, quero desejar um Feliz Natal a todos os amigos leitores do Banzeiro Textual.





Noite de Natal



Quem se arriscaria, nesta noite,
a um novo palpite: encurtar asas
deste anjo rebelde, ampliar rotas
de pássaros migratórios? Mas de
que nos serviriam menos penas, rotas
outras, mais traiçoeiras, um sertão
e suas veredas revisitadas por um
olhar erroneamente cubista, pois
jamais fragmentada aquela linguagem,
tão grande em suas múltiplas veredas?
Que anjo não deixaria, nesta noite
e em todas as outras (pois temos de
aturá-lo), novas penas crescerem;
que pássaros (temos de admitir)
outras fáceis rotas não buscariam?
Reconheçamos também assim esta
noite: um encurtamento de toscas rotas,
um ampliar de duras penas, uma pluralidade
de visões integrativas, estas sim, cubistas,
no sertão e em todas as suas veredas.

Imagem retirada da Internet: Papai Noel.

Fiódor Mikhailovich Dostoiévski - Conto







Fiódor Dostoiévski
Фёдор Достое́вский
(1821-1881)










A árvore de Natal na casa de Cristo




Havia num porão uma criança, um garotinho de seis anos de idade, ou menos ainda. Esse garotinho despertou certa manhã no porão úmido e frio. Tiritava, envolto nos seus pobres andrajos. Seu hálito formava, ao se exalar, uma espécie de vapor branco, e ele, sentado num canto em cima de um baú, por desfastio, ocupava-se em soprar esse vapor da boca, pelo prazer de vê-lo se esvolar. Mas bem que gostaria de comer alguma coisa. Diversas vezes, durante a manhã, tinha se aproximado do catre, onde num colchão de palha, chato como um pastelão, com um saco sob a cabeça à guisa de almofada, jazia a mãe enferma. Como se encontrava ela nesse lugar? Provavelmente tinha vindo de outra cidade e subitamente caíra doente. A patroa que alugava o porão tinha sido presa na antevéspera pela polícia; os locatários tinham se dispersado para se aproveitarem também da festa, e o único tapeceiro que tinha ficado cozinhava a bebedeira há dois dias: esse nem mesmo tinha esperado pela festa. No outro canto do quarto gemia uma velha octogenária, reumática, que outrora tinha sido babá e que morria agora sozinha, soltando suspiros, queixas e imprecações contra o garoto, de maneira que ele tinha medo de se aproximar da velha. No corredor ele tinha encontrado alguma coisa para beber, mas nem a menor migalha para comer, e mais de dez vezes tinha ido para junto da mãe para despertá-la. Por fim, a obscuridade lhe causou uma espécie de angústia: há muito tempo tinha caído a noite e ninguém acendia o fogo. Tendo apalpado o rosto de sua mãe, admirou-se muito: ela não se mexia mais e estava tão fria como as paredes. "Faz muito frio aqui", refletia ele, com a mão pousada inconscientemente no ombro da morta; depois, ao cabo de um instante, soprou os dedos para esquentá-los, pegou o seu gorrinho abandonado no leito e, sem fazer ruído, saiu do cômodo, tateando. Por sua vontade, teria saído mais cedo, se não tivesse medo de encontrar, no alto da escada, um canzarrão que latira o dia todo, nas soleiras das casas vizinhas. Mas o cão não se encontrava alí, e o menino já ganhava a rua.

Senhor! que grande cidade! Nunca tinha visto nada parecido, De lá, de onde vinha, era tão negra a noite! Uma única lanterna para iluminar toda a rua. As casinhas de madeira são baixas e fechadas por trás dos postigos; desde o cair da noite, não se encontra mais ninguém fora, toda gente permanece bem enfunada em casa, e só os cães,às centenas e aos milhares,uivam, latem, durante a noite. Mas, em compensação, lá era tão quente; davam-lhe de comer... ao passo que ali... Meu Deus! se ele ao menos tivesse alguma coisa para comer! E que desordem, que grande algazarra ali, que claridade, quanta gente, cavalos, carruagens... e o frio, ah! este frio! O nevoeiro gela em filamentos nas ventas dos cavalos que galopam; através da neve friável o ferro dos cascos tine contra a calçada;toda gente se apressa e se acotovela, e, meu Deus! como gostaria de comer qualquer coisa, e como de repente seus dedinhos lhe doem! Um agente de policia passa ao lado da criança e se volta, para fingir que não vê.

Eis uma rua ainda: como é larga! Esmaga-lo-ão ali, seguramente; como todo mundo grita, vai, vem e corre, e como está claro, como é claro! Que é aquilo ali? Ah! uma grande vidraça, e atrás dessa vidraça um quarto, com uma árvore que sobe até o teto; é um pinheiro, uma árvore de Natal onde há muitas luzes, muitos objetos pequenos, frutas douradas, e em torno bonecas e cavalinhos. No quarto há crianças que correm; estão bem vestidas e muito limpas, riem e brincam, comem e bebem alguma coisa. Eis ali uma menina que se pôs a dançar com um rapazinho. Que bonita menina! Ouve-se música através da vidraça. A criança olha, surpresa; logo sorri, enquanto os dedos dos seus pobres pezinhos doem e os das mãos se tornaram tão roxos, que não podem se dobrar nem mesmo se mover. De repente o menino se lembrou de que seus dedos doem muito; põe-se a chorar, corre para mais longe, e eis que, através de uma vidraça, avista ainda um quarto, e neste outra árvore, mas sobre as mesas há bolos de todas as qualidades, bolos de amêndoa, vermelhos, amarelos, e eis sentadas quatro formosas damas que distribuem bolos a todos os que se apresentem. A cada instante, a porta se abre para um senhor que entra. Na ponta dos pés, o menino se aproximou, abriu a porta e bruscamente entrou. Hu! com que gritos e gestos o repeliram! Uma senhora se aproximou logo, meteu-lhe furtivamente uma moeda na mão, abrindo-lhe ela mesma a porta da rua. Como ele teve medo! Mas a moeda rolou pelos degraus com um tilintar sonoro: ele não tinha podido fechar os dedinhos para segurá-la. O menino apertou o passo para ir mais longe - nem ele mesmo sabe aonde. Tem vontade de chorar; mas dessa vez tem medo e corre. Corre soprando os dedos. Uma angústia o domina, por se sentir tão só e abandonado, quando, de repente: Senhor! Que poderá ser ainda? Uma multidão que se detém, que olha com curiosidade. Em uma janela, através da vidraça, há três grandes bonecos vestidos com roupas vermelhas e verdes e que parecem vivos! Um velho sentado parece tocar violino, dois outros estão em pé junto de e tocam violinos menores, e todos maneiam em cadência as delicadas cabeças, olham uns para os outros, enquanto seus lábios se mexem; falam, devem falar - de verdade - e, se não se ouve nada, é por causa da vidraça. O menino julgou, a princípio, que eram pessoas vivas, e, quando finalmente compreendeu que eram bonecos, pôs-se de súbito a rir. Nunca tinha visto bonecos assim, nem mesmo suspeitava que existissem! Certamente, desejaria chorar, mas era tão cômico, tão engraçado ver esses bonecos! De repente pareceu-lhe que alguém o puxava por trás. Um moleque grande, malvado, que estava ao lado dele, deu-lhe de repente um tapa na cabeça, derrubou o seu gorrinho e passou-lhe uma rasteira. O menino rolou pelo chão, algumas pessoas se puseram a gritar: aterrorizado, ele se levantou para fugir depressa e correu com quantas pernas tinha, sem saber para onde. Atravessou o portão de uma cocheira, penetrou num pátio e sentou-se atrás de um monte de lenha. "Aqui, pelo menos", refletiu ele, "não me acharão: está muito escuro."

Sentou-se e encolheu-se, sem poder retomar fôlego, de tanto medo, e bruscamente, pois foi muito rápido, sentiu um grande bem-estar, as mãos e os pés tinham deixado de doer, e sentia calor, muito calor, como ao pé de uma estufa. Subitamente se mexeu: um pouco mais e ia dormir! Como seria bom dormir nesse lugar! "mais um instante e irei ver outra vez os bonecos", pensou o menino, que sorriu à sua lembrança: "Podia jurar que eram vivos!"... E de repente pareceu-lhe que sua mãe lhe cantava uma canção. "Mamãe, vou dormir; ah! como é bom dormir aqui!"

- Venha comigo, vamos ver a árvore de Natal, meu menino - murmurou repentinamente uma voz cheia de doçura.

Ele ainda pensava que era a mãe, mas não, não era ela. Quem então acabava de chamá-lo? Não vê quem, mas alguém está inclinado sobre ele e o abraça no escuro, estende-lhe os braços e... logo... Que claridade! A maravilhosa árvore de Natal! E agora não é um pinheiro, nunca tinha visto árvores semelhantes! Onde se encontra então nesse momento? Tudo brilha, tudo resplandece, e em torno, por toda parte, bonecos - mas não, são meninos e meninas, só que muito luminosos! Todos o cercam, como nas brincadeiras de roda, abraçam-no em seu vôo, tomam-no, levam-no com eles, e ele mesmo voa e vê: distingue sua mãe e lhe sorrir com ar feliz.

- Mamãe! mamãe! Como é bom aqui, mamãe! - exclama a criança. De novo abraça seus companheiros, e gostaria de lhes contar bem depressa a história dos bonecos da vidraça... - Quem são vocês então, meninos? E vocês, meninas, quem são? - pergunta ele, sorrindo-lhes e mandando-lhes beijos.

- Isto... é a árvore de Natal de Cristo - respondem-lhe. - Todos os anos, neste dia, há, na casa de Cristo, uma árvore de Natal, para os meninos que não tiveram sua árvore na terra...

E soube assim que todos aqueles meninos e meninas tinham sido outrora crianças como ele, mas alguns tinham morrido, gelados nos cestos, onde tinham sido abandonados nos degraus das escadas dos palácios de Petersburgo; outros tinham morrido junto às amas, em algum dispensário finlandês; uns sobre o seio exaurido de suas mães, no tempo em que grassava, cruel, a fome de Samara; outros, ainda, sufocados pelo ar mefítico de um vagão de terceira classe. Mas todos estão ali nesse momento, todos são agora como anjos, todos juntos a Cristo, e Ele, no meio das crianças, estende as mãos para abençoá-las e às pobres mães... E as mães dessas crianças estão ali, todas, num lugar separado, e choram; cada uma reconhece seu filhinho ou filhinha que acorrem voando para elas, abraçam-nas, e com suas mãozinhas enxugam-lhes as lágrimas, recomendando-lhes que não chorem mais, que eles estão muito bem ali...

E nesse lugar, pela manhã, os porteiros descobriram o cadaverzinho de uma criança gelada junto de um monte de lenha. Procurou-se a mãe... Estava morta um pouco adiante; os dois se encontraram no céu, junto ao bom Deus.


Imagem retirada da Internet: Crianças exploradas.

Francisco Perna Filho - Poema



Francisco Perna Filho



NATAL


Eu nunca fiz um poema de Natal,

talvez por não sabê-lo,

embora compreenda sua simbologia.

Sei que o Cristo renasce em cada coração,

que as cidades se enchem de luzes coloridas e brilhantes,

que os homens tornam-se mais solidários e felizes.

Eu sei de tudo isso,

mas também sei dos homens empedernidos,

das mulheres maltratadas,

das crianças abusadas,

das trapaças,

e das sórdidas armações palacianas.

Eu sei de tanta coisa,

mas ainda sei tão pouco da vida,

talvez esteja aí a minha dificuldade para compor um poema natalino.

Seria fácil falar de presentes,

desejar votos de felicidades,

falar de abraços e sorrisos,

de manjedouras e presépios,

de um menino que nasce para salvação do mundo.

Talvez fosse simples assim,

mas a verdade se nos impõe cortante,

as cores, apesar indução midiática,

são de outras matizes, de menos brilho e bem doídas,

como no conto de Dostoievski “A Árvore de Natal na Casa do Cristo”,

ou no romance “O Caçador de Pipas”, de Khaled Hosseini,

ou, quem sabe, no absurdo de "A Metamorfose", de Franz Kafka.

Sei que num poema de Natal os leitores desejam cantatas,

louvores e muita alegria,

não havendo espaço para qualquer pensamento destoante

daquilo quem vem a ser bondade.

Tampouco para palavras que roubem a esperança de centenas de milhares de miseráveis

espalhados nas prisões,

nos campos de trabalho escravo,

nos hospitais e hospícios,

nos cárceres dos regimes totalitários.

Um poema de Natal

não comporta maldade,

estelionato,

usurpação.

Num poema de Natal

todos devem estar felizes,

solícitos e

amigáveis.

Por tudo isso,

é que eu sinto dificuldade em fazer um poema de Natal.

Para o ano que vem,

desejo que as coisas melhorem,

que a verdade consiga vencer os artifícios,

que os olhares possam refletir as almas,

que os homens consigam se dar as mãos,

que as crianças possam confiar nos pais,

e que os velhos tenham dignidade.

Para o ano que vem

eu não prometo um poema de Natal, ainda,

mas estou certo de que serei melhor,

que seremos melhores

em todos os aspectos.

Com tanta coisa para falar,

e o poema que não vem,

para este ano,

aproveito para dizer

que continuo acreditando no homem,

na sua bondade,

na sua criatividade,

no seu amor.

Aproveito para louvar a Deus,

na sua infinina sabedoria e nobreza,

que, apesar da maldade humana,

nunca abandona os seus filhos.

Aproveito para desejar um Feliz Natal!





domingo, 20 de dezembro de 2009



Imagem retirada da Internet:Natal.

Ana Maria Machado - Conto



Ana Maria Machado



Burrinho de presépio


Desde pequena tinha aprendido a se portar de maneira contida. As freiras faziam questão. Olhos baixos, fala mansa, gestos curtos. Às vezes era difícil segurar. E lá vinham bilhetinhos na sala de aula. Cochichos na fila ao final do recreio. Caretas, piscadelas e risos durante a missa na capela.

- Recolhidas como a Virgem na lapinha! - ensinava irmã Vicência. - Vejam e aprendam. Ela está num êxtase de felicidade, no momento mais sublime de sua vida e não fica saltitando nem rindo à toa.

Glorinha olhava o presépio e achava que nunca ia aprender. Mais que as figuras humanas envoltas em mantos ao redor da palha da manjedoura, o que a atraía eram os bichos e as crianças, com suas promessas de movimento e alegria. O boi e o burro respirando para aquecer o bebê. Os camelos cobertos de arreios, levando presentes dos Reis Magos. Os carneirinhos peludos trazidos pelos pastores. O galo encarapitado no alto do telhado. Patinhos num lago feito de espelho, cercado de brotos de alpiste, verde verdade num cenário de papel, a simular caniços num brejo. Tudo em homenagem ao Menino Jesus que nascia, deitado no feno, agitando braços e pernas. Acima de tudo, a dança dos anjinhos pendurados junto à estrela, desenrolando uma faixa com seu cântico que parecia endereçado a ela, já que trazia seu nome: Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade.

Uma estatueta, porém, se destacava e chamava a atenção. Essa, sim, se movia mesmo: o burrinho que mexia a cabeça para cima e para baixo. Dizia amém para as orações, explicava a freira. Agradecia pelas esmolas, dissera o padre. Tinha uma ranhura, como um cofre. Cada vez que uma moeda caía lá dentro, ele assentia. Um modelo. Mostrava como é possível se portar bem. Em silêncio, concordando, sem estardalhaço.

Glorinha cresceu e aprendeu. Adulta, falava baixo. Olhava de banda, de soslaio, de esguelha. Ria à socapa, dissimulando qualquer desejo de bandeiras despregadas. Andava silenciosa, quase na ponta dos pés, a deslizar furtiva e chegar inesperada junto a qualquer grupo.

Ficou viúva cedo. Criou o filho sozinha, nos desertos do silêncio. Envolveu-o num amor onipresente mas guardado a sete chaves. Parco de carícias. Imune a derramamentos. Sub-reptício e encoberto. Feito de ternuras enviesadas, e disfarçado por artimanhas mudas.

Forjou em Gabriel um homem parecido com ela. Herdeiro de seus modos. Intenso e comedido. Trancado.

A máscara quase se derreteu no dia em que ele chegou do trabalho com meio sorriso implícito e um brilho recôndito nos olhos. Não parava mais em casa. Saía muito. Voltava tarde. Começou a cantar no chuveiro. Nunca tinham tempo suficiente para que ela pudesse, aos poucos, puxar o assunto e descobrir o que poderia estar lhe acontecendo. Não podia acreditar que apenas a perspectiva de uma promoção no emprego estava deixando o filho daquele modo, a ponto de saltitar de animação.

Foi tudo rápido demais. Parecia que, poucos dias depois, Gabriel já estava lhe apresentando Letícia. Toda sorrisos. Perfumada de capim-cheiroso. Cheia de perguntas e expectativas olho-no-olho pelas respostas. Vestido leve e colorido. Sandálias nos pés nus. Pele escandalosamente dourada do sol.

Um vulcão. Avalanche. Tsunami. O pacote completo: promoção no emprego, remoção para outra cidade, casamento imediato. E Gabriel tão feliz no meio daquilo tudo, que não era possível outra reação amorosa que não fosse ir a reboque dele, no embalo. Mas nem isso Glorinha conseguia manifestar. Apenas fazia o que fosse necessário, ajudava e se recolhia. Segurava os ímpetos de abraçar o filho, as palavras de saudade antecipada, a vontade de afagá-lo. E aguentava firme o desejo inconfessado de um dia dar o troco, se vingar daquela moça que, de uma hora para outra, levava embora seu bem mais precioso.

Quando o casal partiu, Glorinha ficou com seu vazio. Aprendeu a usar o computador para se comunicar com eles. Acompanhava de longe como podia. Comedida, dava apenas pequenas notícias do quotidiano.

Jamais deixou que desconfiassem do mundo invisível que guardava em si. A essa altura já o chamava, para si mesma, de seu inferno particular. De vez em quando, ele transbordava, escorrendo lentamente dos olhos. De início, uma ou outra gota, tímida. Depois, foram ficando habituais. Meia dúzia que fossem, para Glorinha eram cachoeiras ocultas. Continuava sem demonstrar a ninguém. Mas se comovia à toa quando sozinha - vendo a novela, ouvindo uma música, lendo um livro. Derramava o sumo de uma vida inteira de gestos represados.

As netas foram nascendo - uma, duas, três. Uma vez por ano vinham todos visitá-la. Uma ou outra vez, Glorinha foi passar umas semanas com eles. Mas nesse ano, pela primeira vez, viriam no Natal. E iam festejar na casa dela.

A avó quis uma festa completa. Com bacalhau, peru, castanhas, bolo, fios de ovos, muitas frutas. Uma árvore de Natal cheia de cores e brilhos. Presentes escolhidos com carinho. E um presépio, como nunca mais tinha feito, desde que Gabriel era criança. Mas esperou que as netas chegassem, para ajudar a montá-lo e arrumar a árvore. Parte da festa infantil.

Chegaram na própria semana do Natal. Logo vieram preparar tudo. Três meninas barulhentas, sem modos. Tagarelas e beijoqueiras em algazarra de pardais. Às voltas com imagens, bonequinhos, cartolina, papel crepom, tesoura, lápis de cor. Entre pulos, correrias, gargalhadas, sujando a sala de purpurina e pedacinhos de papel.

- Vem, vó, ver uma surpresa - chamou a mais velha.

Era a faixa que os anjos carregavam: Vó Glorinha e Deus nas alturas, e os pais na terra. Com boa vontade.

A avó teve de rir. De repente, se emocionou.

- Ih, pai. Você não disse que sua mãe não chora nunca? - estranhou a do meio.

E a mais moça:

_ É um milagre? Milágrimas de Natal.

Glorinha assentiu, calada. Como o burrinho que não havia no presépio. Sabendo que era vingança, não milagre.

Desforra da infância, que os anos cada vez trazem mais.



In.O Estadão

Imagem retirada da Internet: Presépio.

Goiamérico Felício - Poema







Brasigóis Felício










AÇOUGUE DAS ALMAS


A cidade planeja nossa morte:
máquina de nervos e ódio
a cidade nos tritura
do olho até os ossos.
O surdo ruído
de suas máquinas insones:
a cidade gane, executando
suas crianças.

A vida, presente nas coisas,
é de uma eternidade fragílima
e no tempo monetário foi transformada
em solidão e tédio.
A cidade, máquina de aço e ruídos
perfura a vida com seu ódio
até o fim dos ossos.


In. Hotel do Tempo.Brasigóis Felício.Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/Massao Ohno, 1981,p.82.
Imagem retirada da Internet: Indústria.

Murilo Mendes - Poema









Murilo Mendes








Corte transversal do poema



A música do espaço pára, a noite se divide em dois pedaços.
Uma menina grande, morena, que andava na minha cabeça,
fica com um braço de fora.
Alguém anda a construir uma escada pros meus sonhos.
Um anjo cinzento bate as asas
em torno da lâmpada.
Meu pensamento desloca uma perna,
o ouvido esquerdo do céu não ouve a queixa dos namorados.
Eu sou o olho dum marinheiro morto na Índia,
um olho andando, com duas pernas.
O sexo da vizinha espera a noite se dilatar, a força do homem.
A outra metade da noite foge do mundo, empinando os seios.
Só tenho o outro lado da energia,
me dissolvem no tempo que virá, não me lembro mais quem sou.


In: MENDES, Murilo. Poesias, 1925/1955. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1959
Imagem retirada da Internet: Anjo Safado

Alberto da Cunha Melo - Poema





Alberto da Cunha Melo








FORMAS DE ABENÇOAR




Fique aqui mesmo, morra antes
de mim, mas não vá para o mundo.
Repito: não vá para o mundo,
que o mundo tem gente, meu filho.


Por mais calado que você
seja, será crucificado.
Por mais sozinho que você
seja, será crucificado.


Há uma mentira por aí
chamada infância, você tem?
Mesmo sem a ter, vai pagar
essa viagem que não fez.


Grande, muito grande é a força
desta noite que vem de longe.
Somos treva, a vida é apenas
puro lampejo do carvão.


No início, todos o perdoam,
esperando que você cresça,
esperando que você cresça
para nunca mais perdoá-lo.


Imagem retirada da Internet - Criança.

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