Ana Maria Machado
Burrinho de presépio
- Recolhidas como a Virgem na lapinha! - ensinava irmã Vicência. - Vejam e aprendam. Ela está num êxtase de felicidade, no momento mais sublime de sua vida e não fica saltitando nem rindo à toa.
Glorinha olhava o presépio e achava que nunca ia aprender. Mais que as figuras humanas envoltas em mantos ao redor da palha da manjedoura, o que a atraía eram os bichos e as crianças, com suas promessas de movimento e alegria. O boi e o burro respirando para aquecer o bebê. Os camelos cobertos de arreios, levando presentes dos Reis Magos. Os carneirinhos peludos trazidos pelos pastores. O galo encarapitado no alto do telhado. Patinhos num lago feito de espelho, cercado de brotos de alpiste, verde verdade num cenário de papel, a simular caniços num brejo. Tudo em homenagem ao Menino Jesus que nascia, deitado no feno, agitando braços e pernas. Acima de tudo, a dança dos anjinhos pendurados junto à estrela, desenrolando uma faixa com seu cântico que parecia endereçado a ela, já que trazia seu nome: Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade.
Uma estatueta, porém, se destacava e chamava a atenção. Essa, sim, se movia mesmo: o burrinho que mexia a cabeça para cima e para baixo. Dizia amém para as orações, explicava a freira. Agradecia pelas esmolas, dissera o padre. Tinha uma ranhura, como um cofre. Cada vez que uma moeda caía lá dentro, ele assentia. Um modelo. Mostrava como é possível se portar bem. Em silêncio, concordando, sem estardalhaço.
Glorinha cresceu e aprendeu. Adulta, falava baixo. Olhava de banda, de soslaio, de esguelha. Ria à socapa, dissimulando qualquer desejo de bandeiras despregadas. Andava silenciosa, quase na ponta dos pés, a deslizar furtiva e chegar inesperada junto a qualquer grupo.
Ficou viúva cedo. Criou o filho sozinha, nos desertos do silêncio. Envolveu-o num amor onipresente mas guardado a sete chaves. Parco de carícias. Imune a derramamentos. Sub-reptício e encoberto. Feito de ternuras enviesadas, e disfarçado por artimanhas mudas.
Forjou em Gabriel um homem parecido com ela. Herdeiro de seus modos. Intenso e comedido. Trancado.
A máscara quase se derreteu no dia em que ele chegou do trabalho com meio sorriso implícito e um brilho recôndito nos olhos. Não parava mais em casa. Saía muito. Voltava tarde. Começou a cantar no chuveiro. Nunca tinham tempo suficiente para que ela pudesse, aos poucos, puxar o assunto e descobrir o que poderia estar lhe acontecendo. Não podia acreditar que apenas a perspectiva de uma promoção no emprego estava deixando o filho daquele modo, a ponto de saltitar de animação.
Foi tudo rápido demais. Parecia que, poucos dias depois, Gabriel já estava lhe apresentando Letícia. Toda sorrisos. Perfumada de capim-cheiroso. Cheia de perguntas e expectativas olho-no-olho pelas respostas. Vestido leve e colorido. Sandálias nos pés nus. Pele escandalosamente dourada do sol.
Um vulcão. Avalanche. Tsunami. O pacote completo: promoção no emprego, remoção para outra cidade, casamento imediato. E Gabriel tão feliz no meio daquilo tudo, que não era possível outra reação amorosa que não fosse ir a reboque dele, no embalo. Mas nem isso Glorinha conseguia manifestar. Apenas fazia o que fosse necessário, ajudava e se recolhia. Segurava os ímpetos de abraçar o filho, as palavras de saudade antecipada, a vontade de afagá-lo. E aguentava firme o desejo inconfessado de um dia dar o troco, se vingar daquela moça que, de uma hora para outra, levava embora seu bem mais precioso.
Quando o casal partiu, Glorinha ficou com seu vazio. Aprendeu a usar o computador para se comunicar com eles. Acompanhava de longe como podia. Comedida, dava apenas pequenas notícias do quotidiano.
Jamais deixou que desconfiassem do mundo invisível que guardava em si. A essa altura já o chamava, para si mesma, de seu inferno particular. De vez em quando, ele transbordava, escorrendo lentamente dos olhos. De início, uma ou outra gota, tímida. Depois, foram ficando habituais. Meia dúzia que fossem, para Glorinha eram cachoeiras ocultas. Continuava sem demonstrar a ninguém. Mas se comovia à toa quando sozinha - vendo a novela, ouvindo uma música, lendo um livro. Derramava o sumo de uma vida inteira de gestos represados.
As netas foram nascendo - uma, duas, três. Uma vez por ano vinham todos visitá-la. Uma ou outra vez, Glorinha foi passar umas semanas com eles. Mas nesse ano, pela primeira vez, viriam no Natal. E iam festejar na casa dela.
A avó quis uma festa completa. Com bacalhau, peru, castanhas, bolo, fios de ovos, muitas frutas. Uma árvore de Natal cheia de cores e brilhos. Presentes escolhidos com carinho. E um presépio, como nunca mais tinha feito, desde que Gabriel era criança. Mas esperou que as netas chegassem, para ajudar a montá-lo e arrumar a árvore. Parte da festa infantil.
Chegaram na própria semana do Natal. Logo vieram preparar tudo. Três meninas barulhentas, sem modos. Tagarelas e beijoqueiras em algazarra de pardais. Às voltas com imagens, bonequinhos, cartolina, papel crepom, tesoura, lápis de cor. Entre pulos, correrias, gargalhadas, sujando a sala de purpurina e pedacinhos de papel.
- Vem, vó, ver uma surpresa - chamou a mais velha.
Era a faixa que os anjos carregavam: Vó Glorinha e Deus nas alturas, e os pais na terra. Com boa vontade.
A avó teve de rir. De repente, se emocionou.
- Ih, pai. Você não disse que sua mãe não chora nunca? - estranhou a do meio.
E a mais moça:
_ É um milagre? Milágrimas de Natal.
Glorinha assentiu, calada. Como o burrinho que não havia no presépio. Sabendo que era vingança, não milagre.
Desforra da infância, que os anos cada vez trazem mais.
In.O Estadão
Imagem retirada da Internet: Presépio.