Goiamérico Felício - Poema







Brasigóis Felício










AÇOUGUE DAS ALMAS


A cidade planeja nossa morte:
máquina de nervos e ódio
a cidade nos tritura
do olho até os ossos.
O surdo ruído
de suas máquinas insones:
a cidade gane, executando
suas crianças.

A vida, presente nas coisas,
é de uma eternidade fragílima
e no tempo monetário foi transformada
em solidão e tédio.
A cidade, máquina de aço e ruídos
perfura a vida com seu ódio
até o fim dos ossos.


In. Hotel do Tempo.Brasigóis Felício.Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/Massao Ohno, 1981,p.82.
Imagem retirada da Internet: Indústria.

Murilo Mendes - Poema









Murilo Mendes








Corte transversal do poema



A música do espaço pára, a noite se divide em dois pedaços.
Uma menina grande, morena, que andava na minha cabeça,
fica com um braço de fora.
Alguém anda a construir uma escada pros meus sonhos.
Um anjo cinzento bate as asas
em torno da lâmpada.
Meu pensamento desloca uma perna,
o ouvido esquerdo do céu não ouve a queixa dos namorados.
Eu sou o olho dum marinheiro morto na Índia,
um olho andando, com duas pernas.
O sexo da vizinha espera a noite se dilatar, a força do homem.
A outra metade da noite foge do mundo, empinando os seios.
Só tenho o outro lado da energia,
me dissolvem no tempo que virá, não me lembro mais quem sou.


In: MENDES, Murilo. Poesias, 1925/1955. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1959
Imagem retirada da Internet: Anjo Safado

Alberto da Cunha Melo - Poema





Alberto da Cunha Melo








FORMAS DE ABENÇOAR




Fique aqui mesmo, morra antes
de mim, mas não vá para o mundo.
Repito: não vá para o mundo,
que o mundo tem gente, meu filho.


Por mais calado que você
seja, será crucificado.
Por mais sozinho que você
seja, será crucificado.


Há uma mentira por aí
chamada infância, você tem?
Mesmo sem a ter, vai pagar
essa viagem que não fez.


Grande, muito grande é a força
desta noite que vem de longe.
Somos treva, a vida é apenas
puro lampejo do carvão.


No início, todos o perdoam,
esperando que você cresça,
esperando que você cresça
para nunca mais perdoá-lo.


Imagem retirada da Internet - Criança.

Alberto da Cunha Melo - Poema





Alberto da Cunha Melo





Filho e neto de poetas, José Alberto Tavares da Cunha Melo nasceu na cidade de Jaboatão dos Guararapes, em 1942.Sociológo,jornalista e poeta integrante da Geração 65 da literatura pernambucana, publicou em 1966 o seu primeiro livro de poemas, Círculo cósmico. Como sociológo, atuou durante onze anos na Fundação Joaquim Nabuco. Como jornalista, foi editor do Commercio Cultural e da revista Pasárgada. Também colaborou com o Jornal da tarde, de São Paulo, onde publicou textos na seção Arte pela arte, e manteve a coluna Marco Zero, na revista Continente Multicultural, do Recife.Foi vice-presidente da União Brasileira dos Escritores de Pernambuco, na sua primeira gestão, e Diretor de Assuntos Culturais da Fundarpe.Em vida, publicou 16 livros, sendo 13 de poesias, e participou de 33 antologias poéticas, duas delas internacionais, com destaque para Os cem melhores poetas brasileiros do século, organizada pelo jornalista e escritor José Nêumanne Pinto, e 100 anos de poesia. Um panorama da poesia brasileira no século XX, organizada por Claufe Rodrigues e Alexandre Maia.Na década de 1990, o livro Yacala é publicado em Portugal, pela Universidade de Évora, com prefácio do crítico literário e professor da Universidade de São Paulo, Alfredo Bosi.Em 2003, o seu livro Meditação sob os lajedos foi considerado um dos dez melhores livros publicados no Brasil, por um júri composto por 400 especialistas do Prêmio Portugal Telecom de Literatura Brasileira.Em 2007, o livro O cão de olhos amarelos foi agraciado com o prêmio Poesia 2007 da Academia Brasileira de Letras.Em 2007, ainda, poucos meses antes de falecer, participou da Antologia Poética 2007, do grupo virtual Poetas Independentes, com cinco poemas, inclusive um inédito dedicado a Dom Hélder Câmara, Cancioneiro Para o Terceiro Mundo, sendo essa a sua última publicação em vida.Alberto da Cunha Melo faleceu aos 65 anos, às 19:35 horas do dia 13 de outubro de 2007, no Recife, sendo sepultado no Cemitério Morada da Paz, na cidade do Paulista.Segundo o Jornal do Commercio, do Recife, o poeta deixou uma vasta e consistente obra, de profunda preocupação com a existência humana.Fonte:Clóvis Campêlo




Especulação imobiliária



Os mais belos jardins do mundo
serão, para sempre, os baldios,
nos lotes, esperando preço,
e, de romantismo, vazios

onde nascem plantas estranhas,
ninguém sabe de quais entranhas:

as anti-rosas e anti-orquídeas
e as hastes verdes soluçantes,
entre trepadeiras ofídias,

todas, no esplendor do abandono,
e ameaçadas por seu dono.

(Abril de 2003)



In.O cão de olhos amarelos. São Paulo: A Girafa, 2006,p.104.
Imagem retirada da Internet: Lote Baldio

Francisco Perna Filho - Poema








Francisco Perna Filho






Meus olhos são enormes,
dão conta do mundo.
Para silenciar-me,
coloco-me dentro deles.





Imagens retiradas da Internet: 1 e 2

Fernando Pessoa (Ricardo Reis) - Poema






Fernando Pessoa








Deixemos, Lídia



Deixemos, Lídia, a ciência que não põe
Mais flores do que Flora pelos campos,
Nem dá de Apolo ao carro
Outro curso que Apolo.

Contemplação estéril e longínqua
Das coisas próximas, deixemos que ela
Olhe até não ver nada Com seus cansados olhos.
Vê como Ceres é a mesma sempre

E como os louros campos intumesce
E os cala prás avenas Dos agrados de Pã.
Vê como com seu jeito sempre antigo
Aprendido no orige azul dos deuses,

As ninfas não sossegam Na sua dança eterna.
E como as heniadríades constantes
Murmuram pelos rumos das florestas
E atrasam o deus Pã. Na atenção à sua flauta.

Não de outro modo mais divino ou menos
Deve aprazer-nos conduzir a vida,
Quer sob o ouro de Apolo Ou a prata de Diana.
Quer troe Júpiter nos céus toldados.

Quer apedreje com as suas ondas
Netuno as planas praias E os erguidos rochedos.
Do mesmo modo a vida é sempre a mesma.
Nós não vemos as Parcas acabarem-nos.

Por isso as esqueçamos Como se não houvessem.
Colhendo flores ou ouvindo as fontes
A vida passa como se temêssemos.
Não nos vale pensarmos No futuro sabido

Que aos nossos olhos tirará Apolo E nos porá longe de
Ceres e onde Nenhum Pã cace à flauta
Nenhuma branca ninfa.
Só as horas serenas reservando
Por nossas, companheiros na malícia
De ir imitando os deuses Até sentir-lhe a calma.

Venha depois com as suas cãs caídas
A velhice, que os deuses concederam
Que esta hora por ser sua Não sofra de Saturno
Mas seja o templo onde sejamos deuses
Inda que apenas, Lídia, pra nós próprios
Nem precisam de crentes Os que de si o foram.


Imagem retirada da Internet: Flores Amarelas.

Fernando Pessoa (Alberto Caeiro) - Poema











Fernando Pessoa








Olá, Guardador de Rebanhos


"Olá, guardador de rebanhos,
Aí à beira da estrada,
Que te diz o vento que passa?"

"Que é, vento, e que passa,
E que já passou antes,
E que passará depois.
E a ti o que te diz?"

"Muita cousa mais do que isso.
Fala-me de muitas outras cousas.
De memórias e de saudades
E de cousas que nunca foram."

"Nunca ouviste passar o vento.
O vento só fala do vento.
O que lhe ouviste foi mentira,
E a mentira está em ti."


In Athena, nº 4. Lisboa: Jan. 1925.
Imagem retirada da Internet: www.olhares.com O Guardador de Rebanhos


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