Uma Temporada no Inferno*


Por Francisco Perna Filho




Todas as guerras são abomináveis, traços de bestialidade e incerteza; transgressoras da liberdade e da razão, retalhos de humanidade. Todas as guerras são martírios, segregadoras da alma humana; violento atentado ao espírito; disseminadoras de um ódio gratuito.

Por mais lógica que se possa imaginar ao se declarar uma guerra, ela nos soará sempre paradoxal: não há violência que nos conserte; não há martírio que nos redima.

Toda guerra é imposta, autoritária, ditatorial. Toda ditadura é deprimente, olhar deturpado da realidade, sentimento ameaçador e covarde. Discurso ideológico e sectário; monólogo opressor.

Toda guerra é violenta, e a violência não é local, municipal, estadual ou globalizada. Não é assunto jurisdicional, é ontológica. Alguns a manifestam mais branda, perseguindo, retaliando, alijando; outros, dela são membros, como um braço, uma perna. A ela pertencem e, para esses, a vida é um risco feito a lápis na mão de um deus pagão. Ninguém se salva.

De todas as formas de violência, a infantil é inaceitável, é irremediável, deixa marcas na alma, é ferida que não se cura, transtorna o ser e, quase sempre, dele não se desprega. É na infância que apuramos o olhar para as coisas do mundo. Que definimos as cores do nosso por vir: muitas vezes quente, muitas vezes frias, outras tantas matizadas, quantas sem luz. A violência que pare a violência, como um espelhamento. Lembremos de Mohammed, o prematuro, nascido sob os “auspícios” da Guerra do Iraque; de Intizar, criança que perdeu os braços, também no Iraque, após ser atingido por uma bomba americana, fruto da bestialidade de Bush. Lembremos de Hiroshima, seis de agosto de 1945, às 08:15 da manhã, o piloto de um avião B-29, Paul Tibbets lança a primeira bomba atômica, deixando um lastro de destruição; a cena é repetida em Nagasaki, nove de agosto, com a bomba “Fatman”. Lembremos a cena daquela criança nua, desesperada. Lembremos do Kosovo, uma outra criança chorando, sobre os escombros, a morte dos pais; e agora, numa foto comovente de Segei Dalzhenko, vimos uma criança ensangüentada, desesperada, fugindo dos seqüestradores da Escola de Beslan, na Ossélia do Norte, Rússia.

Não há como se calar, fechar os olhos, diante de tanta barbárie, de tanto medo que nos oprime, da insegurança que invadiu os nossos lares, já que as ruas há muito foram tomadas, brutalizadas, esquecidas.

Há muita dor nos nossos corações, transtornados que estão pela impotência ante o espetáculo a que assistimos: nas ruas de São Paulo, quando mendigos são brutalmente assassinados; no Rio de Janeiro, as balas que se encontram com os seus alvos, porquanto os homens é que estão perdidos. Em Brasília, a violência pública em muitos setores, e a privada? quem não se lembra do índio Galdino “ludicamente” queimado? Uma repetição bárbara e inquisitorial, como em Joana D’Arc. Em Goiânia, quanto crimes insolúveis. Não há mais distinção de classes; não se respeita mais autoridade constituída, todos sentem a mesma dor. Todos pela morte tornam-se iguais.

É uma imensa tristeza que nos massacra, a impotência que nos dói no fundo da alma, um grito desesperado de socorro, sem ter para onde correr, fugir. Quanto mais nos afastamos, mais nos vemos refletidos nessas cenas de barbárie, mais temerosos ficamos, ao protagonizar espetáculos tão brutais.

O que nos resta? Talvez a imagem desesperada das crianças de Beslan, em pânico, tentando sobreviver de rosas, como relataram após serem libertas dos seus algozes. As flores que brotam do caos, como em de Ferreira Gullar, Poema Sujo: Num cofo no quintal na terra preta cresciam plantas e rosas (como pode o perfume nascer assim?). Talvez nos reste os livros, a educação pela palavra, a poesia como motor de toda transformação.



P.S.: Este texto foi escrito por ocasião da tomada de uma escola em Beslan, na Ossétia do Norte, por terroristas, no dia 03 de setembro de 2004, quando inúmeras crianças foram feitas reféns, e, para sobreviverem, se alimentaram com pétalas de rosas.

* Título tomado de empréstimo a Jean Arthur Nicolas Rimbaud, poeta francês (1859-1891).

Imagem:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiA0gXd-nh5sAvLhs94rxUko61F8NhzB2I2GpS95-WUlT8nG08Cx4Wv1U3zsAQf6tTvNi_1ya4i7XmOzK1ysxJZpVeZCVuk056XEt9qzYymhAdc76tmjigLkk1rS-t0BYC1JAD8SGBbpPkQ/s1600-h/Criança+na+guerra.jpg

A Droga da Vagina

Por Francisco Perna Filho



O título acima parece pejorativo e, numa primeira leitura, muitos ficarão indignados, dirão que é falta de respeito, que eu não gosto da coisa, que isso tudo não passa de complexo, de machismo e outras coisitas mais.

Não é nada disso, eu só estou reproduzindo uma notícia veiculada num jornal de Goiânia, a história de uma jovem senhora que, para satisfazer o seu marido, que cumpre pena no CEPAIGO, foi pega com 360 gramas de haxixe, muito bem guardados, sabe aonde? Na vagina! Isso mesmo, ou como diriam os antigos, na bainha.

Até o ano de 1700, o termo “vagina” era empregado para falar de tudo o que era “bainha”, “invólucro”, “casca”, e que os soldados, portanto, a usavam a tiracolo, para guardar (enfiar) suas espadas. Só bem mais tarde, na Renascença, é que o termo vagina passou a denominar o tubo ou bainha na qual se encaixava a espada masculina, o pênis. [1]

Pensemos, se sexo vicia, causa dependência, imagine sexo com droga, em altas doses. Droga comprimida, pronta para causar desatinos, droga sob a saia, paliativo para uma droga de vida, entre grades e desilusões. Dessa forma, sexo torna-se perigoso, além do vício, dá cadeia. Daí o título desta crônica:

A Droga da Vagina, para sintetizar o dilema de uma jovem senhora compenetrada, que, com um simples abrir e fechar de pernas, pariu um rio de angústia.

Angústia que se repete em várias partes desse nosso país, quando mulheres desconsiderando o amor-próprio, submissas, exploradas e maltratadas se veem abandonadas de toda sorte: os filhos sucumbiram ao crime, o marido, há muito encarcerado, rumina os poucos momentos de uma liberdade fugidia, porque esperança não há, como pudemos constatar no Fantástico, há algum tempo, o documentário Falcão, os Meninos do Tráfico, a história da história de uma falta de perspectiva, crianças perdidas no tráfico, natimortos, pois o único sonho que lhes resta é o de vir a ser bandido. Matar ou morrer não importa, outros sempre virão. São autômatos de uma guerra urbana, e as suas histórias são escritas com metralhadoras, fuzis AR-15 e pistolas, não aprenderam, como muitos homens da política, a cultuar belas palavras e encantadoras mentiras, com as quais se escondem e, como mágicos, sobrevivem ilesos aos trovões madrugadores.


[1] PEREIRA J., Luiz Costa. Com a Língua de Fora, São Paulo:Angra, 2002,p.53

Pontos de Fuga*




Por Francisco Perna Filho




Algumas leituras nos são fundamentais, por nos situarem no tempo e no espaço e contribuírem para a nossa formação, não permitindo que se faça na realidade o imaginário perverso, e nem o bestial na sensatez. Quantas já nos aliviaram a dor alma e nos livraram do sono letal da ignorância, quando em imensas noites alimentaram as manhãs vindouras e os seguros passos de novas caminhadas.

Sobre elas, como bem o fez Hélio Pólvora no seu livro de ensaio ‘O Espaço Interior‘ (Editora da Universidade do Mar e da Mata, 1999), depois de ensaiar sobre a literatura universal, dedicou um capítulo às suas leituras e as de sua geração: ‘O que a minha geração leu’ – permitindo-nos um passeio saboroso pelo que há de mais diverso e importante na literatura universal: “A minha geração leu muito. Claro, a tevê só chegou quando éramos adultos. Para matar o tempo, que sempre resiste e acaba nos matando, segundo a lição de Machado de Assis, tínhamos apenas a Rádio Nacional, com os seus programas de auditório e dramatização de romances e contos, à base de uma parafernália de efeitos especiais. Sobrava tempo para leituras, devaneios. O livro foi companheiro diário, amigo sem rosto e sobretudo amigo fiel”.

Tal exposição, ao mesmo tempo em que nos fala de um espaço não muito longínquo, também nos dá a dimensão da formação de um dos nossos maiores contistas do Brasil, quando revela as “Leituras ao acaso, sem a ordem cronológica das escolas e dos movimentos literários”, nos mostrando a capacidade que cada indivíduo, pelas suas eleições, tem de autoformar-se, bastando apenas um despertar, para que o mundo se faça inteiro e, irrepreensivelmente, nos dê as respostas que tanto buscamos nesses dias tão atribulados.

A literatura universal está cheia de relatos das mais diversas “experiências iniciáticas” como foi o caso de Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, François Mauriac, todos eles, de alguma maneira, trazem lembranças agradáveis das primeiras leituras, quase sempre adquiridas na infância, ao passo que avaliam o quanto elas foram fundamentais para que eles chegassem onde chegaram.

Todos têm uma história para contar, apoiados que estão nas suas experiência vividas e lidas, como é o caso do Escritor e Jornalista Inglês Graham Greene (Pontos de Fuga, Record, 1980), ao relatar magistralmente as suas leituras de mundo: Haiti, Vietnam, Praga, Paraguai, Quênia, África, numa demonstração de que a precisão da vida está em enfrentá-la.

Todos nós temos os nossos pontos de fuga, como no título de Greene, quando incisivamente fixamos os nossos olhos para além do horizonte empobrecido que nos maltrata. Talvez aí esteja a saída para os nossos dramas, sem que precisemos de mártires, como as crianças libanesas, os chorosos massacres da violência urbana, e tantos outros que se perderam pelos Parques do mundo.

Por tudo isso é que eu me pergunto: o que a minha geração leu ou está lendo, nesse exato momento? E os outros? De que motivação precisamos para começar a ler, para ensaiar o primeiro capítulos das nossa experiências? Pode ser que, como muitos dizem, livro no Brasil seja coisa para elite, para ricos. Mas eu me pergunto, e as bibliotecas públicas? E o esforço individual? E a experiência dos nossos grandes escritores que, muitas vezes, por situações várias, tiveram de criar alternativas, lendo o que lhes chegava às mãos, tomando emprestado, fazendo cooperativas, criando salas de leitura.

Para quem quer começar, existem inúmeras maneiras e, talvez, este texto seja um começo. Que tal conhecer Hélio Pólvora, Graham Greene, Sartre, Hugo de Carvalho. Que tal fazer um passeio pela Grande Goiânia e conhecer as suas bibliotecas. Que tal escrever a sua própria história.




* Título tomado de empréstimo a Graham Greene.
Foto by Rosana Carneiro Tavares. Buenos Aires, junho de 2009.

Manuel Cofiño - Conto


Manuel Cofiño - (1936 - 1987) - Escritor cubano, nascido em Havana, situado entre os maiores expoentes do realismo socialista de Cuba, é autor de contos e romances, valendo destacar: 1979 - Um trecho de mar e uma janela (histórias).1975 - Quando o sangue parece fogo (romance). 1971 - A última mulher e a próxima batalha (romance), com este romance recebeu o Prêmio Casa de las Américas. 1969 - Hora de Mudança (romance).



Um Trecho de Mar e uma Janela


Porque sempre há um livro, um sorriso, uma folha levada pelo vento, um trecho de mar e uma janela – sempre haverá uma recompensa. Conheci-a no acampamento Maravilha Vermelha. Comandante de uma brigada. Entusiasta, incansável, e além do mais, o que causava também admiração, era o fato de não ter medo das rãs que abundavam naquele terreno tão barrento.

Diariamente, eu a via subir agilmente na carreta, e aos domingos lavar sua roupa, sob o flamboyant. Durante o temp

o em que ficamos ali, conversamos umas dez ou doze vezes. Eu gostava da sua maneira de dizer as coisas. Pois o amor e as palavras ardem e se apagam, saltam e se procuram como sementes e cinzas. Era isso o que ela queria dizer. E era como se limpasse as palavras, esfregando-as contra a vida.

Os homens foram transferidos e ela ficou ali com suas companheiras. Lembro-me que ao despedir-me, disse: Bem. Fico alegre em saber que você existe.

Poucos meses depois, encontrei-a em frente ao Copelia, imprudentemente parada numa esquina, com o cabelo um tanto sujo e despenteado. Por um momento,

acreditei-me diante de uma visão. É que eu a via como não a vira antes (e não era apenas a maneira de se vestir, mas todo o conjunto de sua pessoa). Ficou nervosa, começou a fazer movimentos cômicos, canhestros.. Levavam ambas as mãos um monte de livros, vestia um pulôver verde e calças de mescla. Seus olhos ressaltavam de uma maneira estranha. Depois, voltamos a nos encontrar por diversas vezes.

Um dia chamei-a, e ela veio. Empurrou a porta deste quarto tristíssimo e nele entrou como uma canção. Não vou contar nossa história. Nem falar de sua voz, do seu olhar, da surpreendente luminosidade de sua presença. Não era bonita mas vibrava como um instrumento vivo, e esmagava a tristeza com carícias: Afugentar, arrancar a tristeza porque ela é uma árvore estéril e frondosa, dizia e me beijava. E dizia também: O amor é uma flor rara, delicada, demora a desabrochar, dura pouco para logo despetalar-se. As outras flores são resistentes, nascem em qualquer lugar, onde bem querem, crescem sozinhas, não necessitam de cuidados. E colocava seus beijos em meus lábios. E a luz, a manhã, o sonho e a verdade logo se punham a mover-se ao mesmo tempo.

Quando chegava, este pequeno quarto se povoava de sons (ela dizia que eram pássaros e flores), mas a verdade é que o ar se punha em seu lugar, entre murmúrios. Tirava a roupa como estivesse dando suas vestes de presente ao vento. Como esquecer a alegria do seu corpo, a flexibilidade de sua cintura, seus seios, seus sumos e sabores!

Era uma criadora de sonhos e de verdades. Descalça, beijava o chão, os azulejos partidos do pátio. Amava as latas enferrujadas onde cresciam gerânios, as paredes descascadas, o ruído da chuva sobre o zinco, o trecho do mar na janela. Falava de pardais e de disparos, de incendiar a tristeza. Ia de um lado para outro, ajeitando e arrumando vasilhas e cascos, seu corpo cantava e suas canções subiam pelas paredes. Gostava do cheiro do alho e da couve-flor; fazia brilhar, quando os lavava, os pratos e os copos. Conseguia fazer tudo sem esforço, como se suas mãos dominassem as necessidades cotidianas. Não fazia perguntas. Tinha respostas sem perguntas e, à vezes, fazia do silêncio sua voz.

Como esquecer sua cabeça inclinada, a queda dos seus cabelos sobre os ombros? Esse algo que tinha e que não se pode explicar, que jamais poderá ser descrito ou ser dito, porque seria como tentar mostrar o coração da chuva. Em seu olhar, a manhã surgia espontaneamente, como água. Água de companhia ao despertar. Em seu corpo, o tempo era diminuto, miúdo, frágil. Dizia: o amor são dois corpos amarrados com corda louca, um martírio-prazer fugaz, intenso, fulminante. Mexer com o amor é como mexer com o fogo, dizer-lhe que não arda. O amor é um problema, ou lhe dão em excesso ou não lhe dão nenhum, e nasce e morre e não somos nem eternos, nem puros. E sufocava meus prostestos com seus lábios. Então, falava sobre a opressão familiar, a incompreensão dos pais, a aurora de uma nova época, a luta para construí-la. E havia nela alguma coisa que sempre estivera comigo.

É preciso esquecer as coisas fracas, os pensamentos melancólicos. A vida é uma música severa, grave. E eu a contemplava falando, vendo-a nua, sentada na cama, com a cabeça apoiada sobre os joelhos e as mãos cruzadas sobre as pernas encolhidas.

Eu nunca estava certo de que ela voltaria no dia seguinte, ou dentro de um mês ou de uma semana. Não gostava que as coisas estancassem. Às vezes passava semanas sem aparecer, ia ao amor total e não ao nosso cantinho, ia para o campo fazer a vida com as mãos, acariciar a terra, os frutos e as folhas..

Voltava ágil e inquietante. As faces ardendo, os cabelos queimados pelo sol e a alegria chispando nos olhos. Cansada de bom cansaço, trazia beijos silvestres e um sorriso amplo e trêmulo. Dizia que o trabalho é a mais bela alegria da vida. E a luz, a manhã, o sonho e a verdade punham-se a se mover ao mesmo tempo.

Mas um dia não amanheci mais em seu olhar. Perdi a gravidade de sua carne entusiasta, a sábia saliva dos seus lábios, as unhas de suas mãos diligentes, o perfumado esplendor dos seus cabelos. Deixou um vazio repleto de lembranças, lições e silêncios. Com qual vestido ela se foi? Não sei, alguma coisa se quebrou, evaporou-se, fez-se sombra e luz ao mesmo tempo.

Aqui sobrevive sua presença, no que ela elegeu para ser lembrada. Neste quarto ficou dela um ligeiro perfume, uma voz no vento, uma canção cantando nas paredes, um ar, o ruído da chuva sobre o zinco, uma folha esquecida, a luz entrando pela janela e o chilrear de um copo limpando a tristeza.

Ensinou-me a ver diferente? Não sei. Mas se algum de vocês a vir, transmita-lhe meus agradecimentos. Porque ela me deixou a recompensa: um livro, um sorriso, quatro paredes repletas de canções, um trecho de mar e uma janela.




In.Contos de Amor Cubanos. Organização Imeldo Ávarez (org.). Trad.: Joel Silveira. Rio de Janeiro: Record.

Imagem: http://aredenarede.com/pt/images/stories/eu-queria-ser-amor-geisa.jpg

Hugo de Carvalho Ramos - Ninho de Periquitos


Hugo de Carvalho Ramos nasceu na Cidade de Goiás, no Largo do Chafariz, a 21 de maio de 1895, e morreu na mesma cidade, no dia 12 de maio de 1921. Considerado um dos grandes nomes do conto brasileiro, escreveu seu único livro Tropas e Boiadas (1917), do qual o conto Ninho de Periquitos faz parte.




Ninho de Periquitos


ABRANDANDO A CANÍCULA PELO VIRAR DA TARDE, Domingos abandonou a rede de embira onde se entretinha arranhando uns respontos na viola, após farta cuia de jacuba de farinha de milho e rapadura que bebera em silêncio, às largas colheradas, e saiu ao terreiro, onde demorou a afiar numa pedra piçarra o corte da foice.

Era pelo Domingo, vésperas quase da colheita. O milharal estendia-se além, na baixada das velhas terras devolutas, amarelecido já pela quebra, que realizara dia antes, e o veranico, que andava duro na quinzena.

Enquanto amolava o ferro, no propósito de ir picar uns galhos de coivara no fundo do plantio para o fogo da cozinha, o Janjão rondava em torno, rebolando na terra, olho aguçado para o trabalho paterno.

-Não se esquecesse, o papá, dos filhotes de periquitos, que ficavam lá no fundo do grotão, entre as macegas espinhosas de “malícia”, num cupim velho do pé da maria-preta. Não esquecesse...

O roceiro andou lá pelos fundos da roça, a colher uns pepinos temporões; foi ao paiol de palha d’arroz, mais uma vez avaliando com a vista se possuía capacidade precisa para a rica colheita do ano; e, tendo ajuntado os gravetos e uns cernes da coivara, amarrava o feixe e ia já a recolher caminho de casa, quando se lembrou do pedido do pequeno.

- Ora, deixassem lá em paz os passarinhos.

Mas aquele dia assentava o Janjão a sua primeira dezena tristonha de anos; e pois, não valia por tão pouco amuá-lo.

O caipira pousou a braçada de lenha encostada à cerca do roçado; passou a perna por cima, e pulando de outro lado, as alpercatas de couro cru a pisar forte o espinharal ressequido que estralejava, entranhou-se pelo grotão-nesses dias sem pinga d’água-galgou a barroca fronteira e endireitou rumo da maria-preta, que abria ao mormaço crepuscular da tarde a galharada esguia, tôda atostada desde a época da queima pelas lufadas de fogo que subiam da malhada.

Ali mesmo, na bifurcação do tronco, assentada sobre a forquilha da árvore, à altura do peito, escancarava a boca negra para o nascente a casa abandonada dos cupins, onde um casal de periquitos fizera ninho essa estação.

O lavrador alçou com cautela a destra calosa, rebuscando lá por dentro os dois borrachos. Mas tirou-a num repente, surpreendido. É que uma picadela incisiva, dolorosa, rasgara-lhe por dois pontos, vivamente, a palma da mão.

E, enquanto olhava admirado, uma cabeça disforme, oblonga, encimada a testa duma cruz, aparecia à aberta do cupinzeiro, fitando-lhe, persistentes, os olhinhos redondos, onde uma chispa má luzia, malignamente...

O matuto sentiu uma frialdade mortuária percorrendo-o ao longo da espinha.

Era uma urutu, a terrível urutu do sertão, para a qual a mezinha doméstica nem a dos campos, possuíam salvação.

Perdido...completamente perdido...

O reptil, mostrando a língua bífida, chispando as pupilas em cólera, a fitá-lo ameaçador, preparava-se para novo ataque ao importuno que viera arrancá-lo da sesta; e o caboclo, voltando a si do estupor, num gesto instintivo, sacou da bainha o largo “jacaré” inseparável, amputando-lhe a cabeça dum golpe certeiro.

Então, sem vacilar, num movimento ainda mais brusco, apoiando a mão molesta à casca carunchosa da árvore, decepou-a noutro golpe, cerce quase à juntura do pulso.

E enrolando o punho mutilado na camisola de algodão, que foi rasgando entre dentes, saiu do cerrado, calcando duro, sobranceiro e altivo, rumo de casa, como um deus selvagem e triunfante apontando da mata companheira, mas assassina, mas perfidamente traiçoeira...


(RAMOS, Hugo de Carvalho. Tropas e Boiadas. Goiânia: Cultura Goiana, 1984,p. 69-70).

Fonte da imagem: http://hmalicia.sites.uol.com.br/viola.jpg

Otto Maria Carpeaux - Madame Bovary - Última Parte


Com esta parte do texto,chegamos ao final do estudo de Otto Maria Carpeaux sobre Madame Bovary, de Flaubert. Boa Leitura!




(...)




Daí em diante, o declínio é rápido. A cena na catedral de Ruão, entre Emma e Léon, é a peripécia para a catástrofe. Enfim, Emma, no leito de morte, entre as rotineiras frases untuosas do padre e as imbecilidades do livre-pensador Homais - é a paródia da catástrofe de uma tragédia grega.



Seria possível aprofundar a análise durante páginas e páginas, lembrando inúmeras relações escondidas e significações mais ofensivas. Madame Bovaryu é uma obra de arte quase sem par. E poderia ser um incomparável manual de arte de escrever romances. Mas não o tem sido. O modelo é difícil demais. Qualquer um não tem o temperamento de poder enclausurar-se em Croisset, como um monge no deserto, para elaborar obra daquelas. Flaubert tem tido poucos discípulos, entre os quais convém ressaltar os nomes de Henry James e James Joyce. Madame Bovary continua o mais alto exemplo de um romance como obra de arte.


A obra também continua muito lida. É uma pena, certamente, que muitos leitores não dediquem a necessária atenção à leitura. A história de Emma Bovary interessa e interessará sempre o mais perfeito, o mais inexorável "romance de adultério", com atenção especial àquelas poucas páginas que o Tribunal do Sena, em 1857, achou censuráveis. Mas a popularidade da obra também tem provocado oposição. Já houve quem achasse "inútil" o desperdício de tanta estilística para uma história tão vulgar. É que tewmos nós, hoje, com acontecimento quase rotineiros numa aldeia francesa em 1840? Quando do centenário do romance, em 1957, um crítico inglês deu à sua conferência comemorativa na BBC o título desdenhoso: "No Orchids for Mrs. Bovary". Esse equívoco, de considerar como morta a obra, parece-me sobremaneira incompreensivo.


Dos três grandes romancistas franceses do século passado - Balzac, Flaubert, Zola (Stendhal ocupa posição à parte) - nenhum está "antiquado". Os ambiente sociais, políticos, culturais daquela época já desapareceram; a esse respeito, suas obras têm valor de grandes, exaustivos e exatos romances históricos. Mas as consequências continuam e com elas tipos humanos criados por aqueles ambientes. Os homens e as mulheres aida são assim; e assim continuarão por muito tempo. Aqueles romances ainda são obras contemporâneas nossas. Essa dualidade de "histórico" e "contemporâneo" é a mesma que define as maiores obras de arte de todos os tempos, a Divina Comédia, as tragédia de Shakespeare, o romance de Cervantes. Não existem mais Florença medieval nem a Inglaterra elisabetiana nem a Espanha dos Filipes, mas os condenados do Inferno, Hamlet, Macbeth e Lear, Dom Quixote e Sancho Pança são nossos contemporâneos; encontramos seus iguais na rua. A mesma qualidade dual é a de Cousine Bette e Germinal, romances históricos e contemporâneos ao mesmo tempo, mas Madame Bovary é o maior entre eles.




FIM



In.Madame Bovary. Gustave Flaubert. Trad.: Sérgio Duarte. Rio de Janeiro:Ediouro, s/d, p.15-16.
http://www.doctormacro1.info/Images/Jones,%20Jennifer/Annex/NRFPT/Annex%20-%20Jones,%20Jennifer%20(Madame%20Bovary)_NRFPT_01.jpg


Otto Maria Carpeaux - Madame Bovary


Carpeaux prossegue revelando o estilo de Flaubert, desvelando toda simbologia de Madame Bovary. Amanhã, postarei a última parte deste belo estudo. Boa leitura!





(...)



Exato e colorido, sóbrio e musical, poético e prosaico: os termos são contraditórios. Nessas qualidades contraditórias do estilo de Flaubert refletem-se suas contradições íntimas de anti- romântico de burguês provinciano inimigo mortal da burguesia provinciana. Contradições dessas produzem uma tensão que pode ser, num artista altamente dotado, a fonte das mais altas qualidades artísticas. E Flaubert é, realmente, o maior artista em toda história da ficção em prosa.

Suas maiores vitórias estilísticas (e aquelas que custaram o mais árduo trabalho) são as nuanças. Dizer duas vezes a mesma coisa, com uma única ligeira diferença, que revela ao leitor atento que algo mudou ou vai mudar. Mas essas informações diferenciais não aparecem em seguida. As vezes estão separadas por páginas, por capítulos inteiros. Quem, ao ler a segunda frase, ligeiramente modificada, se lembra da primeira vez em que apareceu quase (mas só quase) idêntica, esse tem leitor tem estabelecido uma relação que escapa à leitura superficial. Dessa maneira constrói Flaubert a articulação da sua história. Para tornar esgura, ou digamos, ferrenha essa articulação, o romancista usa palavras-chave que voltam em determinados momentos, como os "leitmotivs" num drama musical de Wagner, Enfim, esses símbolos linguísticos formam feixes, cenas inteiras que têm valor de símbolos: são as cenas principais do romance.

A primeira página do livro descreve minunciosamente o chapéu ridículo de Charles Bovary, quando aluno do colégio. A página foi, pelos críticos contemporâneos, muito censurada, como "enfadonha" e "inútil". Ela pode ser enfadonha - como o próprio Charles Bovary - mas inútil não é. O ridículo desse chapéu é o símbolo da estupidez de quem o usa e tornar-se-á símbolo da estupidez do ambiente inteiro em que ainda aparecerão muitos outros chapéus ridículos: o boné "grego" que usa o farmacêutico Homais e o chapéu de castor do padre Bournisien e o chapéu"elegante" (mas já démodé) do don-juanesco Rodolphe, quando Emma o encontra no baile do castelo.

Esse baile em La Vaubyessard, oportunidade para Emma sair dos eixos do casamento, está rodeado de acidentes simbólicos. O buquê de casamento, última recordação material dos sonhos pré-maritais de Emma, é queimado: esse está prestes a acabar. No caminho para o castelo, o cãozinho de estimação pula do carro, corre para longe e não é mis visto nunca: Emma perderá o caminho. A ridícula estátua de gesso de um padre, no jardim dos Bovarys, é mutilada pela chuva e cai em pedaços: a perda do pé da estátua relaciona-se com a incompetência profissional de Charles Bovary e sua operação desastrosa no pé do aleijado de Hippolyte; a destruição gradual da estátua de pedra lembra a eliminação dos últimos resíduos da educação religiosa de Emma, agora pronta para a aventura com Rodolphe.

O ponto alto do romance são os "Comices agricoles", a exposição agropecuária com distribuição de prêmios aos criadores de gado. É uma sinfonia de palavras. Nas vozes médias, o murmúrio do diálogo amoroso entre Emma e Rodolphe, na tribuna de espectadores; nas vozes agudas, os estúpidos discursos oficiais do prefeito e de outros dignatários, exaltando o valor da agropecuária para a Pátria; o acompanhamento do baixo é o mugido do gado e osussurro do vento nas árvores - todas essas vozes harmoniosamente combinadas são como um resumo do romance.


(...)

Até amanhã!


In.Madame Bovary. Gustave Flaubert. Trad.: Sérgio Duarte. Rio de Janeiro:Ediouro, s/d, p.16.

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