Ecce Homo


Como vimos, foi em 15 de outubro de 1888 que Friedrich Wilhelm Nietzsche começou escrever "Ecce Hommo". Nesta obra, o filósofo teve a preocupação intelectual de contar todo o processo de construção dos seus livros: um por um. Um trabalho exaustivo e belo; uma espécie de síntese de sua vida. O livro foi concluido em tempo recorde, ficando pronto em novembro de 1888.








Nietzsche aos 17 anos



Hoje, veremos mais um trecho de Hecce Homo



(...)



Meu pai morreu aos trinta e seis anos; era terno, afável e mórbido, como um ser predestinado a desaparecer; foi mais uma benéfica recordação da vida do que a própria vida. No mesmo ano em que a sua força vital declinou, também a minha começou a baixar: no meu trigésimo sexto ano de vida, desci ao mais ínfimo ponto da minha vitalidade – vivia ainda, sem dúvida, mas sem ver três passos à minha frente. Então – era o ano de 1879 – renunciei ao cargo de professor em Basileia, vivi durante o Verão como uma sombra em Saint-Moritz e, no Inverno seguinte, o mais pobre de sol da minha vida, como uma sombra em Naumburg. Foi o meu ponto mais baixo: apareceu então «O viandante e a sua sombra». Eu era na altura entendido em sombras... No Inverno seguinte, o meu primeiro Inverno em Génova, aquela doçura e espiritualização, condicionada porventura por uma extrema pobreza de sangue e de músculos, suscitou a «Aurora». A plena claridade e serenidade, e até a exuberância do espírito, que a obra mencionada espelha,compaginam-se em mim não só com a mais profunda fraqueza fisiológica, mas até com um excesso do sentimento de dor. No meio dos martírios que consigo trouxe uma ininterrupta dor de cabeça, durante três dias, com penosos vómitos, possuía uma clareza de dialéctico par excellence e pensava friamente em coisas para as quais, em melhores condições de saúde, não sou um alpinista suficientemente subtil e frio. Sabem porventura os meus leitores até que ponto tenho a dialéctica por sintoma de décadence: no caso de Sócrates. – Todas as perturbações doentias do intelecto e até aquele semi-torpor que se segue à febre, são coisas que até hoje me permaneceram totalmente estranhas, acerca de cuja natureza e frequência só me informei através do estudo. O meu sangue corre devagar. Jamais alguém em mim conseguiu constatar a febre. Um médico, que durante muito tempo me tratou como doente dos nervos, acabou por dizer: «Não! Não há nada nos seus nervos, eu é que começo a ficar nervoso». Há, sem lugar para dúvidas, uma qualquer degeneração local, mas indetectável; não é nenhuma doença de estômago organicamente condicionada embora, como consequência do esgotamento geral, se depare com a mais profunda fraqueza do sistema gástrico. A própria doença dos olhos, que de vez em quando se aproxima perigosamente da cegueira, é só efeito, e não causa: de modo que quando aumenta a força vital também se intensifica de novo o poder visual. – Uma longa, demasiado longa série de anos significa em mim a cura – mas, infelizmente, significa também ao mesmo tempo recaída, ruína, periodicidade de uma espécie de décadence. Depois disto tudo, precisarei talvez de dizer que sou perito em questões de décadence? Soletrei-as para a frente e para trás. Até mesmo aquela arte de filigrana da apreensão e da compreensão em geral, aquele tacto para as nuances, aquela psicologia de «visão dos recantos» e tudo o que aliás me é peculiar foi então aprendido, é esta a prenda verdadeira daquele tempo em que tudo em mim se apurou, a observação e ainda todos os órgãos da observação. Lançar um olhar desde a óptica do enfermo aos conceitos e valores mais sãos e, de novo, inversamente desde a plenitude e da autocerteza da vida abundante ao trabalho secreto dos instintos de décadence – eis o que foi o meu mais longo exercício, a minha genuína experiência, e nisso tornei-me um mestre. Está agora em meu poder, tenho mão para inverter perspectivas: primeira razão por que só a mim será talvez possível em geral uma «transmutação dos valores».



Ecce Hommo. Tradução de Lourival de Queiroz Henkel. Ediouro, s/d.
Imagem: Nietzsche aos 17 anos - Photography by Ferdinand Henning in Naumburg, beginning of June 1862. - http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/d/da/Nietzsche_1862b.JPG

Ecce Homo


NIETZSCHE (Friedrich), filósofo alemão (Rökken, perto de Lutzen, 1844 — Weimar 1900). Estudante em Bonn e Leipzig, e amigo de Richard Wagner, lecionou em Bale de 1869 a 1878. Morreu louco. Foi em 15 de outubro de1888 que o criador do Zaratustra tomou da pena para escrever o Ecce Hommo.







Por que Sou Tão Sábio

1



A verdadeira felicidade de minha existência, talvez a sua singularidade, consiste no seu destino: eu, para exprimi-lo em forma enigmática, como meu pai, já estou morto; como minha mãe, ainda vivo e envelheço. Esta dupla origem, que procede, de certo modo, do degrau superior e ao mesmo tempo do degrau inferior da vida, do que já está decadente, e de algo que começa agora, explica melhor do que qualquer outra razão esta mentalidade, esta independência e tudo quanto se relacione ao problema geral da vida, que constitui uma das minhas mais distintas qualidades. Para intuir com indícios da subida e da descida, eu sou dotado de uma sensibilidade maior do que qualquer outra que fosse dado ao homem ter; eu sou o mestre por excelência, conheço um e outro, sou um e outro.

(...)



In.Ecce Hommo. Ediouro, s/d.

Aforismo















Seguimos com mais dois aforismo do jesuíta espanhol Baltasar Gracián (1647). Os aforismos aqui postados fazem parte do livro A Arte da Prudência, considerado um dos grandes livros de sabedoria universal.




Maestria nas palavras e nos atos

Abre caminho em toda parte, e ganha de antemão
o respeito. Influencia tudo:a prática das virtudes,
o orar, até o andar, o olhar, o querer. É uma gran-
de vitória cativar o coração dos outros. A lideran-
ça não nasce de uma audácia tola nem de um en-
fadonho divertimento mas de autoridade superi-
or ajudada pelo mérito.





Não ser afetado


Quanto mais talento, menos afetação. Trata-se de um defeito vulgar, que desmerece e é tão maçante aos outros quanto é incômodo a quem a pratica. Faz-nos sofrer de preocupação, pois é um tormento ter de manter as aparências. As maiores qualidades perdem seu mérito por causa da afetação, pois serão julgadas como sendo fruto do artifício em vez de uma graça natural, e o mais agradável do que o artificial. Os afetados serão tidos como faltos dos talentos que afetam. Quanto melhor você é em algo, mais deve ocultar seus esforços, de modo que a perfeição pareça ocorrer naturalmente. Não se deve, tampouco, para fugir da afetação fingir não tê-la. O homem prudente não deve nunca demonstrar mais que conhece os próprios méritos; a displicência desperta a atenção dos outros. Duplamente grande é quem tem todas as qualidades, mas nenhuma em sua própria opinião. Percorre seu próprio caminho até chegar ao aplauso.




In. A Arte da Prudência. São Paulo: Martin Claret, 2002. p.70-71.
Imagem: St. Mattew and the Angel, 1661. (Musée du Louvre, Paris, France) Rembrandt van Rijn. - 1606-1669 -




A Arte da Prudência - Aforismos











Neste mês de agosto, para reflexão e deleite, postarei textos de grandes pensadores. Para começar, vamos conhecer alguns aforismo do jesuíta espanhol Baltasar Gracián (1647). Os aforismos aqui postados fazem parte do livro A Arte da Prudência, considerado um dos grandes livros de sabedoria universal. Baltasar Gracián nasceu em Belmonte de Calatayud a 8 de janeiro de 1601 e morreu em Tarazona, Espanha, em 6 de dezembro de 1658.





Caráter e inteligência

São os pólos que fazem luzir os predicados.
outra é apenas meia felicidade. Não basta
ser inteligente; é preciso também ter o
caráter apropriado. O tolo fracassa por
desconsiderar sua condição, posição,
origem, amizades.


Conhecimento e coragem se alternam na grandeza.


Sendo imortais, imortalizam. você é o tanto quanto sabe, e
se for sábio capaz de tudo. Homem sem saber, mundo às es-
curas. Discernimento e força; olhos e mãos. Sem valor,
a sabedoria é estéril




In. A Arte da Prudência. São Paulo: Martin Claret, 2002, p.25-26

Tão simples






Francisco Perna Filho



São simples as coisas,

alegres e tristes,

como nós.

Trazem o sabor

e o olhar

de quem lhes dá atenção.

São de cores variadas,

como o pensamento.

Vagam livre,

não sonham,

apenas

vivem.


Imagem:http://www.magiazen.com.br/wp-content/uploads/2009/02/pedras.png

Do Presente


Francisco Perna Filho













Noites

com semelhança de iguais,

sem nunca serem.

Sonhos,

séculos de incertezas.

Não se recicla o tempo.

Não se enclausura os sóis.

Onde estão os iguais?

A verdade pode ser partidária do dia ou da noite,

do ontem ou do hoje.

O amanhã a quem interessará?

Peitar o mundo,

derrubar os encantos

são tarefas de hoje.






In. Refeição. Goiânia: Kelps, 2001, p.113.
Foto by Francisco Perna Filho. Caminito de la Boca. Buenos Aires-2009.






Duplo




Francisco Perna Filho










Faz frio,
fina a pele fica,
o filho dorme.
Há calma,
são secretos os sonhos.
A mulher suspira,
liberta de tudo revela esperança
nos graciosos gestos.
O sono não vem,
invento palavras.
Meus olhos coalhados secam a noite.
Barcos invadem minha sala,
aviõs-de-guerra sobrevoam a minha cabeça.
Caminhos me levam para fora de mim,
viajo.
Não há como entender.
Pessoas conversam,
olho,
nada vejo.
Pássaros libertam-se-lhes os cantos.
Voo.
O filho chora,
faz frio.
Há uma escuridão perpetuada.
Manhã pesada.
Sou pura distração:
afastado de toda racionalidade
observo os pés do sofá.
Alguns passos, passo pela porta do quarto
e contemplo o meu corpo
petrificado no espelho da sala.
Reflito um abraço e vou dormir.



In. Refeição. Goiânia:Kelps, 2001, p. 118-119.

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