Ludovico Ariosto - Poema


ORLANDO FURIOSO



CANTO I (continuação)


19.
Diz ao pagão: - Cuidas que só a mim,
Mas maltratas comigo a ti também,
Que se agora combates bravo assim
Pelo sol que ardoroso te mantém,
Reter-me aqui que te aproveita enfim?
Pois quer me faças morto, quer refém,
De ti bem longe se achará a senhora
Que, enquanto aqui tardamos, foi-se embora.


20.
Se lhe queres também, será melhor
Procurares detê-la pela estrada
Antes que uma distância inda maior
A separe de nós em sua jornada.
Quando a alcançarmos, seja-lhe senhor
Quem, de nós dois, prevalecer na espada,
Pois penso, aliás, que toda esta detença
Só nos pode servir de perda imensa.


21.
Ao pagão a proposta não despraz:
Eis que adiada assim fica a tenção.
Retorna ao seio de ambos logo a paz,
Caem no olvido o ódio e a indignação.
Deixando as frescas águas para trás,
Que Rinaldo está a pé lembra ao pagão.
Roga-lhe, insta e faz pôr-se na garupa;
Só Angélica alcançar ora os preocupa.


22.
Como outrora eram bons os cavaleiros!
Rivais no amor, a fé os fazia diversos,
Doíam-lhes na carne inda os certeiros,
Duros golpes, recíprocos e adversos.
Mas iam juntos por selvas e carreiros,
sem temer ou nutrir planos perversos.
Sob quatro esporas voava pela estrada
O animal, até achá-la bifurcada.


23.
Aqui chegados, sem saber se ruma
Por uma trilha ou outra a dama bela
(Já que ao olhar sem diferença alguma
Frescas pisadas uma e outra revela),
Convêm em que Fortuna o mando assuma:
Esta segue Rinaldo, o hispano aquela.
Ferraú pelo bosque inteiro gira
Até o ponto alcançar donde partira.


24.
Ei-lo de novo junto da ribeira
No lugar onde o elmo se afundara.
De reavê-lo ao rio, tenta a maneira
(A dama reaver desesperara).
Da margem desce até a extrema beira
Onde a praia das águas se separa.
Mas debalde se esforça e as mãos meneia
Que o elmo bem fincado está na areia.


25.
De um galho desfolhado havia feito,
Para a fundo sondar, vara bem longa,
E do rio esquadrinha todo o leito
Que o varapau o braço lhe prolonga.
Mas enquanto se acresce seu despeito
Pela procura inútil que se alonga,
Das águas, até o peito se descobre,
Com rosto irado, um cavaleiro nobre.


26.
Salvo a cabeça, tinha o corpo armado
E erguia um elmo em sua destra mão.
Era esse mesmo o elmo procurado
De Ferraú, por tanto tempo em vão.
A Ferraú falou, muito agastado,
E disse: - Ó infiel perjuro! Ó cão!
Por que da perda enfim te lamurias
Se o elmo há largo tempo me devias?



Tradução de Pedro Garcez Ghirardi.




In. ARIOSTO, Ludovico. Orlando Furioso. Trad.: Pedro Garcez Ghirardi. São Paulo:Ateliê, 2002,p.55-57.
Imagens retiradas da Internet: livro

Ludovico Ariosto - Poema


ORLANDO FURIOSO



CANTO I (continuação)


13.

a Dama desviou a montaria
e foi-se a rédea solta pela mata,
Sem procurar a mais segura via,
Onde o arvoredo menos se dilata.
Tresloucada, a tremer, pálida, a guia
Dá ao palafrém, que a esmo as trilhas cata.
Acima e abaixo, a vasta selva inteira
Percorreu e foi ter a uma ribeira.


14.
Junto à ribeira Ferraú mostrou-se
Coberto de poeira e suor copioso.
O que da frente de batalha o trouxe
Foram ganas de água e de repouso.
Depois, a contragosto, lá ficou-se,
Porque, sobre estouvado, sequioso,
Das mãos caiu-lhe ao rio o elmo, ao beber,
E não mais o alcançava reaver.


15.
Com quantas forças tem, ergue clamor,
Posta em fuga, a donzela apavorada;
Salta o mouro, escutando tal rumor,
E a reconhece, logo na chegada.
Ainda que, por obra do temor,
Mostrasse a face pálida e turvada,
É aquela de quem vai buscando novas,
É angélica, não há querer mais provas.


16.
Cavaleiro cortês, quiçá rival
Dos primeiros no estimar igual beleza;
Se elmo lhe falta, o que inda o braço val
Logo à dama oferece por defesa.
A arma empunha e feroz corre aonde o mal
Suspeita então rinaldo tal surpresa.
Eram já os cavaleiros conhecidos
De vista e d'armas, desde tempos idos.


17.
Apeados ali, sem que lhes valha
Couraça ou malha miúda como escudo
(A espada de qualquer tão rijo talha
Quem em bigorna faria corte agudo),
Encetam crudelíssima batalha.
A dama ao palafrém manda contudo
Que aperte o pé, com quantas força tenha,
E em campos, matagais, assim se embrenha.


18.
Largo tempo forceja um por ter mão
Do outro, mas nenhum ao outro abala,
Pois ambos consumados mestres são
De perícia na espada, ao menejá-la.
Afinal o senhor de Montalvão
Dirige ao cavaleiro hispano a fala
Como alguém cujo peito se acha em fogo
Abrasador, que rompe em desafogo.


Tradução de Pedro Garcez Ghirardi.




In. ARIOSTO, Ludovico. Orlando Furioso. Trad.: Pedro Garcez Ghirardi. São Paulo:Ateliê, 2002,p.54-55.
Imagens retiradas da Internet

Ludovico Ariosto - Poema



ORLANDO FURIOSO



CANTO I

1.
Damas e paladinas, armas e amores,
As cortesias e as façanhas canto
Do tempo em que o mar d'África os rigores
Dos mouros trouxe, e França esteve em pranto;
Ira os movia e juvenis furores
De Agramante seu rei, disposto a tanto,
Que ousou vingar a morte de Troiano,
Em Carlos, rei e imperador romano.


2.
Hei de dizer de Orlando, juntamente,
O que nunca se disse, em prosa ou rima:
Que ficou, por amor, louco fremente,
Pondo a perder de homem cordato a estima;
Isto, se aquela que me faz demente
E o pouco engenho me corrói qual lima,
Assentir em poupar-me em tal medida,
Que eu possa dar a obra prometida.

3.
Dignai-vos, ó hercúlea prole Estense,
Ornamento e esplendor do tempo nosso,
Hipólito, aceitar, pois vos pertence,
A oferta do criado humilde vosso.
O que vos devo em grande parte vence
Quando co' o verbo e a pena pagar posso;
Nem por vos dar tão pouco ingrato sou,
Pois do que posso dar, tudo vos dou.

4.
Dentre os grandes heróis, se ora me ouvis,
Vereis lembrado o nome sobranceiro
Que de vossa linhagem foi raiz,
Rogério, de alta estirpe avô primeiro;
E se benignamente consentis
Em dar-me, por um pouco, ouvido inteiro,
Deixando por meu canto altos cuidados,
Seus feitos achareis aqui exaltados.


5.
De Angélica formosa enamorado
Ficara Orlando, e por amores seus
Em Tartária, Índia e Média havia deixado
Inumeráveis e imortais troféus.
Ei-lo agora retornado
Ao ocidente, ao pé dos Pirineus,
Aos arraiais de França e de Alemanha,
Convocados de Carlos à campanha,

6.
Para que os reis Marsílio e Agramante
Cara custasse a estulta confiança
Com que um de África todo o homem prestante
Trouxera armado com espada e lança,
E outro de Espanha se pusera adiante
Por oprimir o lindo chão de França.
Voltava então Orlando ao pátrio solo,
Mas logo a volta o pôs em desconsolo.


7.
Pois logo sua amada ali perdia:
Que o juízo humano tantas vezes erra!
Aquela pela qual lutado havia,
Da Eólia à Espéria, em tão renhida guerra,
Ora a perde entre amiga companhia,
Sem a espada brandir, em sua terra.
É sábio imperador quem, tendo em mira
Grave incêndio extinguir, assim lha tira.


8.
Desavença recente separara
Rinaldo e o conde Orlando, que é seu primo:
Da mesma dama, a formosura rara
Os abrasava, pela graça e o mimo.
Carlos, a quem o pleito desgostara,
Pois desss bravos lhe tolhia o arrimo,
A donzela, que aos dois indispusera,
Deu em custódia ao duque de Baviera;



9.
E em prêmio a reservou ao que se houvesse
Com mais valor naquela grã jornada,
Ao que mais infiéis ali abatesse
Pelo valor do braço e forte espada.
Mal fundada esperança, que fenece
Ao pôr-se em fuga a gente batizada.
Força é que então com outros mil se renda
O duque e, preso, deixe ao léu a tenda.


10.
Ali se achara dantes a donzela
Ao vencedor em prêmio prometida.
Durante o embate, ela subira à sela
E, sem que suspeitassem, foi partida.
Sentiu - veio um presságio esclarecê-la -
Que a Fortuna aos cristãos baldara a lida.
Assim, entrou num bosque, e num carreiro
Encontrou, vindo a pé, um cavaleiro.


11.
Vestia couraça e tinha na cabeça
O elmo; ao flanco, espada; à mão, escudo;
O bosque atravessava mais depressa
Que em prova de corrida aldeão rudo.
Tímida pastorinha não se apressa
De serpente a fugir bote sanhudo,
Como Angélica as rédeas desviou
Logo que caminhante divisou.


12.
Era esse paladim, nobre e galhardo,
Filho de Amon, senhor de Montalvão.
Tinha perdido seu corcel, Baiardo,
Pouco havia, em insólita ocasião.
Reconheceu a dama, e, como dardo,
O amor lhe trespassou o coração.
Vendo-lhe ao longe o angélico semblante
Caiu do amor nos laços nesse instante.




Tradução de Pedro Garcez Ghirardi.


In. ARIOSTO, Ludovico. Orlando Furioso. Trad.: Pedro Garcez Ghirardi. São Paulo:Ateliê, 2002,p.51-53.
Imagens retiradas da Internet

Sinésio Dioliveira - Poema

Viagem incomo(Dante)


Para o Amigo Chico Perna




Quão incomo(Dante)
É essa viagem metafísica
Pela vereda dual entre o céu e o inferno!

A comédia humana é sim divina.
E nela o demônio tem sido protagonista.
Deus está atrás das cortinas.

Os mitos impedem a demência de muitos homens.
Os poetas fogem à regra:
São loucos sublimes.
Não jogam pedra na lua
Mas lhe oferecem flores
E serenata com canto de pássaros.

Essa é a vereda tomada pelos poetas
para "entreter a razão"
e dar alegria ao "comboio de corda
que se chama coração".


Imagem retirada da Internet: Dante.

Alexandre O'Neill - Poema



Sei os teus seios.
Sei-os de cor.

Para a frente, para cima,
Despontam, alegres, os teus seios.

Vitoriosos já,
Mas não ainda triunfais.

Quem comparou os seios que são teus
(Banal imagem) a colinas!

Com donaire avançam os teus seios,
Ó minha embarcação!

Porque não há
Padarias que em vez de pão nos dêem seios
Logo p'la manhã?

Quantas vezes
Interrogaste, ao espelho, os seios?

Tão tolos os teus seios! Toda a noite
Com inveja um do outro, toda a santa
Noite!

Quantos seios ficaram por amar?

Seios pasmados, seios lorpas, seios
Como barrigas de glutões!

Seios decrépitos e no entanto belos
Como o que já viveu e fez viver!

Seios inacessíveis e tão altos
Como um orgulho que há-de rebentar
Em deseperadas, quarentonas lágrimas...

Seios fortes como os da Liberdade
-Delacroix-guiando o Povo.

Seios que vão à escola p'ra de lá saírem
Direitinhos p'ra casa...

Seios que deram o bom leite da vida
A vorazes filhos alheios!

Diz-se rijo dum seio que, vencido,
Acaba por vencer...

O amor excessivo dum poeta:
"E hei-de mandar fazer um almanaque
da pele encadernado do teu seio"
(Gomes Leal)

Retirar-me para uns seios que me esperam
Há tantos anos, fielmente, na província!

Arrulho de pequenos seios
No peitoril de uma janela
Aberta sobre a vida.

Botas, botirrafas
Pisando tudo, até os seios
Em que o amor se exalta e robustece!

Seios adivinhados, entrevistos,
Jamais possuídos, sempre desejados!

"Oculta, pois, oculta esses objectos
Altares onde fazem sacrifícios
Quantos os vêem com olhos indiscretos"
(Abade de Jazente)

Raimundo Lúlio, a mulher casada
Que cortejaste, que perseguiste
Até entrares, a cavalo, p'la igreja
Onde fora rezar,
Mudou-te a vida quando te mostrou
("É isto que amas?")
De repente a podridão do seio.

Raparigas dos limões a oferecerem
Fruta mais atrevida: inesperados seios...

Uma roda de velhos seios despeitados,
Rabujando,
A pretexto de chá...

Engolfo-me num seio até perder
Memória de quem sou...

Quantos seios devorou a guerra, quantos,
Depressa ou devagar, roubou à vida,
À alegria, ao amor e às gulosas
Bocas dos miúdos!

Pouso a cabeça no teu seio
E nenhum desejo me estremece a carne.

Vejo os teus seios, absortos
Sobre um pequeno ser


Imagem retirada da Internet: seios

Antônio Frederico de Castro Alves - Poema


Adormecida



Ses longs cheveux épars la couvrent sonie entière.
La croix de son collier repose dans sa main,
comme pour témoigner qu'elle a fait sa prière.
Et qu'elle va la faire en s'éveillant demain.

Alfred de Musset



Uma noite, eu me lembro... Ela dormia
numa rede encostada molemente...
Quase aberto o roupão.... solto o cabelo
e o pé descalço do tapete rente.

'Stava aberta a janela. Um cheiro agreste
exalavam as silvas da campina...
E ao longe, num pedaço do horizonte,
via-se a noite plácida e divina.

De um jasmineiro os galhos encurvados,
indiscretos entravam pela sala,
e de leve oscilando ao tom das auras,
iam na face trêmulos -beijá-la.

Era um quadro celeste!... A cada afago
mesmo em sonhos a moça estremecia...
Quando ela serenava... a flor beijava-a...
Quando ela ia beijar-lhe... a flor fugia...

Dir-se-ia que naquele doce instante
brincavam duas cândidas crianças...
A brisa, que agitava as folhas verdes,
fazia-lhe ondear as negras tranças!

E o ramo ora chegava ora afastava-se...
Mas quando a via despeitada a meio,
pra não zangá-la... sacudia alegre
uma chuva de pétalas no seio...

Eu, fitando esta cena, repetia
naquela noite lânguida e sentida:
«Ó flor! -tu és a virgem das campinas!
Virgem! -tu és a flor de minha vida!...».


Imagem retirada da Internet: adormecida

Wender Montenegro - Poema


Manoel de Barros

delírios do verbo ou arapucas de pegar Manoel



ao poeta Manoel de Barros



1

as manhãs me imensam

como em Ungaretti

arroios me gorjeiam de esplendor

lá onde as árvores se garçam

e o sol brinca de arvorecer

2

a palavra cansanção tem ardimentos

e o menino descalço nem aí

pois lhe escuda a voz dos passarinhos

esse moleque arteiro estica o sol

carrega o cenho do peru no grito

3

bicho danado é maracujá

engole a voz das ateiras

as mangueiras roubam o sol do chão

e o pé de mastruz

enverdece os ossos da avó

4

mosca de manga

se agiganta no amarelo

como Van Gogh

borboletas adoçam a aridez dos cactos

e o sanhaçu assusta os mamoeiros

5

nas mãos do mar

a linha do horizonte tem cerol

lá, a pipa do céu cai mais depressa

quando as margens da tarde me anoitecem




Imagem retirada da Internet: Manoel de Barros

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