A Revista Banzeiro, após uma breve pausa, retoma suas atividades para apresentar o conto Nós Amamos Maria, do Escritor James Frederico Rocha Coelho. Este conto faz parte do livro de contos História Civilizadas - que será lançado dia 25 de setembro, sexta feira, às 20h, na Biblioteca do Sesc Centro - Rua 15, esquina com a Rua 19. James Frederico nasceu em Carolina, Maranhão, em 1960; em 1989, publicou o Romance Quarto 16.
Editora América - Ilustrações de Polly Duarte |
NÓS AMAMOS MARIA
Anos depois estavam ali os três, na
confluência de mar e água doce, no litoral norte, mais duas crianças, de seis e
quatro anos, fazendo um turismo barato mas feliz, e como não se podia chamar
aquilo de casal, as pessoas que se aproximavam, sempre e quase naturalmente
entendiam se tratar de um casal e mais um cunhado, ou amigo, ou colega de
trabalho. Certo é que estavam juntos há doze anos e nem as descobertas recíprocas
do triângulo, as dificuldades de dinheiro ou o tédio eventual comprometeram o
amor que os dois sentiam por Maria e ela por eles. Entre os dois, Ênio e João,
no entanto, só uma amizade respeitosa e a admiração também recíproca por terem
aceitado viver daquele modo.
Começou quando muito tempo antes
Ênio e Maria desceram quinze andares pelas escadas de um prédio, numa
sexta-feira perto da meia noite, depois de se esfalfarem nos aparelhos da
academia que funcionava na cobertura, ele para emagrecer, ela pra definir um
corpo que já era definido por natureza, excesso de vaidade somente, ele diria
anos depois. Estavam juntos há um mês,
mas mal sabiam o nome um do outro quando Maria convidou-o para almoçar com ela
no sábado, no apartamento dela.
Quando Ênio chegou, chegara antes
porque tomariam uns drinques ou umas cervejas, deparou-se com o outro na
cozinha preparando o peixe defumado. Apresentados, ele estranhou a situação,
mas permaneceu calado e as conversas fluíram para a própria experiência de cada
um na academia, as dificuldades em alugar um imóvel, a política, um pouco de
música, pois estavam ouvindo boas músicas, mas ninguém perguntou e ninguém
comentou quem era João.
Depois do almoço, quando João
desapareceu quarto a dentro e Ênio associou tamanha intimidade a alguém que
fosse irmão, primo ou um velho amigo que morasse com Maria há anos, Maria,
deitada no sofá, pés pra cima, contou que estavam juntos há anos, e que tinha
por João uma admiração e um sentimento que igual só fora despertado nela por ele,
Ênio. Por educação, Ênio tomou mais um ou dois drinques e uma cerveja ao final,
para matar o calor, e confuso decidiu que tinha que ir embora, precisava sair
dali para entender alguma coisa, o mínimo que fosse.
Dali por diante continuou a
encontrar Maria na academia, a sair juntos vez em quando, de dia ou na noite,
amando-se cada vez mais, mas calados com relação àquele sábado em que almoçaram
juntos no apartamento dela.
Aos poucos entre Ênio e Maria foi
surgindo uma cumplicidade que precisava mais do que corpo e sexo. Procuraram
juntos o imóvel que ele ia comprar, acompanharam de perto a mãe dele quando
viera à cidade para se tratar de uma doença, foram a duas creches onde ela
fazia uma busca meticulosa de uma criança para adotar, mas voltar ao apartamento
dela ele não voltara.
A Maria que havia por debaixo
daquele corpo quase musculoso tratava Ênio com uma candura que ele nunca
encontrara em ninguém, nem na própria mãe, mas brigavam às vezes quando ela
exigia que ele buscasse o que queria com mais determinação e disciplina, e
aquilo para ele era muito chato e o irritava ao extremo, pois ela sabia que não
estavam juntos e nunca ficariam juntos e nem ele mesmo sabia porque insistiam
naquilo quando sabia que ela morava com João, que placidamente, qual um corno
budista, se é que isso existe, compreendia perfeitamente que eles mantivessem
aquele relacionamento.
Agora, olhando para as duas
crianças remexendo na areia e o mar azul belíssimo a perder de vista,
compreendia ou chegava perto de compreender que eles dois, Maria e João, não
fizeram muita coisa para atraí-lo para eles, apenas viveram com um amor calado
e simples, lá deles, levando a vida sabendo dos desejos de melhorar e deixando
claro, sem palavras porém, porque essas são perigosas, que estavam expostos à
vida tão quanto uma planta do mato, que sabe que terá que seguir em frente,
faça chuva ou faça sol, e que não obstante isso, viverá, procurando ser feliz a
seu modo, porque não tem escolha.
O ciúme fez parte a certa altura,
até João ser atropelado e Maria pedir socorro, porque tinha seu dia a dia, seu
trabalho e precisava que alguém, pelo menos duas vezes por semana ficasse ali,
acompanhando João no seu apartamento, ainda imobilizado e tomando remédios com
hora certa. Foi naquela experiência que começou sua imersão na vida daqueles
dois seres humanos que cada vez mais penetravam a sua, sem que fizessem esforço
algum pra isso. Ela uma mistura de duas mulheres bíblicas, Débora e Ester, dona
de casa e juíza, ele um homem simplório e trabalhador, que sonhava em ter
filhos, mas era estéril. Sem que fosse dito uma palavra sequer, agressiva ou
violenta, o ciúme perdera o sentido, pois os projetos sobravam e aos poucos
tomavam a frente do palco e invadiam o camarim e se tornavam a iluminação, o
som, a marcação e até mesmo a divulgação do teatro dos três – um filho que
passou a ser desejo comum do trisal, os primeiros dias que Ênio dormiu no
apartamento deles, as crises pontuais de depressão que curava na cozinha deles,
preparando comidas suas, de sua terra, que mostrava com orgulho para os dois.
Ênio não podia se lembrar
exatamente do dia em que falaram da economia de um apartamento único para os
três, seria um apartamento maior e mais confortável mas com um custo muito
menor e mais de acordo com a renda de cada um deles.
No apartamento grande, à véspera de
fins de semana ou algum feriado, ouviam música sentados um pouco largados nas
imensas cadeiras de descanso do terraço – sim, agora tinham apartamento de
terraço. O sexo também não era uma complicação, embora tivessem sido muito
sérios os desencontros do começo, pois o desejo pode capturar a todos no mesmo
instante. Mas implicitamente, na alma, ajustaram os modos de matar o desejo com
Maria, e as brigas homéricas que tiveram duas ou três vezes e que obrigaram Ênio
a sair de casa e dizer para si que estava cansado daquilo e que não voltaria,
foram brigas que tiveram a desimportância que ele constatou com o passar do
tempo, quando Maria, duas semanas depois ligou, e João ligou, e ele voltou,
voltou porque precisavam seguir em frente, porque agora ele fora o ungido para
fazer um filho em Maria – agora já tinham dois – e fora o escolhido para
preparar a festa de casamento dos três, que seria para os amigos muito íntimos,
porque a lei não permitia aquilo.
Casaram-se numa fazenda alugada,
numa igrejinha muito pequena, uma capela mesmo, ofertada pelo dono a Santo
Antônio. Desceram o declive que dava na capela ao pé de uma cerca antiga,
percorrendo uma trilha que os amigos preparam com pó de serragem
artificialmente colorida. A autoridade que os casou não tinha a autoridade
comum dos códigos, apenas a autoridade de um casal, um homem e uma mulher, que
se tornaram grandes amigos deles, e eram orientadores de Maria e Ênio na
academia – João detestava academia e cultivava uma barriguinha inexpugnável de
chopp e descaso com o corpo. Aquele casal separou dois ou três textos de
crenças diferentes, muitas músicas, belas músicas, nacionais e internacionais.
No final voltaram para a varanda quilométrica da fazenda, onde serviram comida
e bebida, com fartura. A partir dali Ênio compreendeu a suficiência de Maria
para os dois e mais à frente descobriu que as brigas mais feias eram entre João
e Maria ou entre ele e Maria, pois entre ele e João acharam instintivamente de
conduzir uma relação bem humorada, de um respeito que, sem ser distante, fora
cavado dentro da própria intimidade.
Agora estava ali, naquele fim de
tarde praiano, ela deitada numa cadeira de náilon, João pulando as ondas com
uma das crianças e alguns vizinhos de mesas, mais argutos, procurando entender
o que estava acontecendo ali. Ênio pediu a Deus que eles ficassem na boa paz e
compreendessem que não havia qualquer necessidade de compreender o que acontecia entre eles.