Jádson Barros Neves - Foto: Facebook - Perfil do autor“Eu contemplava uma fotografia de Steve McCurry, que mostra um peregrino na aldeia de Tagong, no Tibet, coberto por um ponche e com um pedaço de pano vermelho na altura da cabeça, o que lhe dá o aspecto de um galo gigante, seguido por um cavalo e passando lentamente por várias casas abandonadas. Era de madrugada, eu olhava a figura e me veio o título do livro. ” |
CONSTERNAÇÃO: possibilidades para um título
Justificando o porquê de
seu livro de contos (14, no total) intitular-se “Consternação”, o escritor
tocantinense Jádson Barros Neves explica: “Eu ouvia a música ‘Fado Tropical’,
de Chico Buarque e olhava a tarde pela janela de minha casa, quando o título me
caiu nas mãos.” E outra vez tentando justificar o título gesticula, e fala
sumido: “Eu contemplava uma fotografia de Steve McCurry, que mostra um
peregrino na aldeia de Tagong, no Tibet, coberto por um ponche e com um pedaço
de pano vermelho na altura da cabeça, o que lhe dá o aspecto de um galo
gigante, seguido por um cavalo e passando lentamente por várias casas abandonadas.
Era de madrugada, eu olhava a figura e me veio o título do livro. ” Depois, ele
se cala num silêncio que parece trazer outros silêncios de outras tardes ou
madrugadas das várias cidades onde morou no Brasil.
Qualquer definição dada a
“Consternação” nasce direcionada ao fiasco, pela abertura que o livro
apresenta. É costume, ao se nomear um livro de contos, extrair o título de um
conto para se intitular o livro. Geralmente se usa aquele conto de maior peso.
Porém, qual conto escolher nessa constelação de 14 contos que o talentoso e
premiado escritor Altair Martins, numa resenha brilhante, classificou como “o
autor que, entre nós, melhor domina a luz no espaço narrativo”?
Cabe, assim, outra
explicação fornecida pelo escritor: a de um título aglutinante, pois o
sentimento de consternação permeia todos os textos, seja como expressão
angustiosa dos narradores, anseios das personagens ou reflexo no leitor.
No conto “A toalha”, o
narrador, sem memória e diante do inescrutável, alinhava explicações para os
fenômenos sobrenaturais que assediam o lugarejo onde vive: “Devíamos ter aberto
as portas para os cães. Eu tinha talhado as portas das casas, bem sólidas, para
que as pessoas se trancassem da noite. (Portas) Servem para fechar casas,
tornar perdidos os homens. Uma porta aberta, uma ameaça; fechada, a proteção de
uma pequena república. As pessoas gostam de portas de todos os tipos, você
sabe.”
Da resenha escrita por
Altair Martins: “O de sempre é que tudo isso é bem feito, com uma justeza e
precisão onde se entrevê um Faulkner ou um Rulfo.” Justamente Rulfo, em cujos
contos o latido dos cães sinaliza a vida. A ausência, o desamparo, a morte. O
conto que abre o livro, “O cachorro e os cães”, sem cães, metaforiza a
apropriação degradante que a língua exerce até sobre aquele que é considerado o
mais confiável dentre os animais.
De modo insuficiente, a
confissão do narrador de “A toalha” poderia solidificar o “espírito” do livro.
Porém, o que dizer do conto onde um rapaz é obrigado a matar o próprio avô? Ou
do pistoleiro que desde o início tem o destino selado pela esposa, primeiro
quando é induzido por ela, em “Entre eles, os corrupiões”, a salvar o cunhado –
irmão dela – e depois em outro conto, quando é morto pela mesma pessoa que
salvou? E o que pensar do conto do homem
que, no futuro, vislumbra em silêncio uma infância de cuja existência não ter
certeza? Ou do rapaz que vende o pouco que possui para garantir três ou quatro
anos de vida sossegada a um cavalo que o sustentou a vida inteira? Todos os
textos mudam de aspecto (e até sentido), conforme a abordagem do leitor.
Cortázar, contista e
teorizador do conto, explica que há algumas constantes que fazem uma narrativa
ser um conto. Dois elementos essenciais, segundo ele, são a intensidade
(despojamento) e a tensão, entendida aqui como aquele jogo de palavras, imagens
e ideias que tornam o leitor cativo do texto. Com um perfeito equilíbrio entre
a tensão e intensidade, os contos de “Consternação” cumprem o papel a que se
propõem, além de serem habitados por histórias secretas, que muitas vezes
emergem com um final aberto, tornando-os lúdicos, passíveis de múltiplas
interpretações e (ou) recriações, “escondendo o que mostram e mostrando o que
escondem”.
Na tarde do lançamento do
livro, dia 16/11, na 59ª Feira do Livro de Porto Alegre, o escritor comentou
sobre a geografia do livro: “É uma realidade provisória, que tentei fixar no
tempo, usando a poesia dentro da narrativa. Nada disso existe mais. Talvez
nunca tenha existido realmente. Talvez eu tenha sonhado. Mas estive lá,
garanto.”
Sonhada ou não, vivida ou
não, a realidade é reinventada, recriada, com pistas falsas que desnorteiam
quem se aventura a cartografar os contos: a realidade criada, “suspensa do
solo”, como quer Jádson, tem essa finalidade, “de forma que o leitor sinta-se
andando na neblina, sem visão à frente. Caberá a ele, o leitor, encontrar o
próprio caminho na névoa.” Assim, sem doutrinar, o escritor estabelece o jogo
entre leitor e narrativa.
*Francisco Perna Filho é
Crítico Literário, Mestre em Estudos Literários – UFG e Poeta.
Texto originalmente publicado na edição de hoje, 5 de dezembro de 2013, no Jornal do Tocantins - Palmas - TO.
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